05/09/2011

E ESTA, HEM?

1. Esta cabeça

Antes que comece a dar em doido, tenho de pôr a cabeça em ordem. Hoje dei por mim a falar com as pedras da calçada e com os pombos pousados nas estátuas, a questionar a viagem toda, se estarei ou não a desperdiçar o meu tempo, e porque raio perco dias e paciência em lugares tão pouco interessantes... mas calma! Jorge Vassallo, tu tem calma, não te arrelies, arruma lá as ideias.

Primeiro avança mais uma hora, nos ponteiros do relógio. Já estamos noutro fuso horário. Agora são mais três que Moscovo - mais seis que Lisboa. Se calhar é por isso que estás desorientado. Jet lag.

Respira fundo.

O horizonte - olha para o horizonte.

Isto é o teu trabalho. Dias chatos no escritório - toda a gente tem.

Mas quem é que disse isto? Que voz estranha é esta, toda esganiçada, uma voz que só eu oiço, uma voz dentro da minha cabeça que se atreve a dar-me conselhos através das palavras que eu próprio escrevo no teclado? Fui eu? Fui eu que escrevi isto?

Estou a enlouquecer. Estou, definitivamente, a ficar maluco.

Voltando ao dia chato no escritório: nem é uma má ideia, vistas bem as coisas. Um dos objectivos desta aventura - para além da descoberta pessoal de uma parte do mundo que me é completamente nova, e da curiosidade/paixão que sempre tive por esta viagem mítica - é preparar o terreno para o programa que a nomad vai lançar para o Verão de 2012. Decidir onde vale a pena parar, perceber a dinâmica dos comboios, os ritmos de viagem, as dificuldades, os truques, as manhas.

Como seria de esperar, nem todos os lugares merecem uma paragem na aventura do ano que vem.

Nizhni Novgorod - concerteza que não.

Tobolsk - nem pensar.

Omsk - pode até ter algum encanto... mas não me cheira.

2. Esta cidade

Passei o dia a passear pela cidade - a segunda maior da Sibéria, fundada em 1719. Deixei a mochila grande na estação, fui a pé até ao centro, vi alguns edifícios, visitei isto-e-aquilo, cumprimentei o Lenine de cada vez que passava por uma estátua dele (há algumas, em Omsk) e até o convidei para almoçar, mas ele ignorou-me, ficou com aquela cara de bronze a olhar para o infinito, com uma pomba pousada na cabeça, a fingir que não me estava a ouvir. Mais fica.

Almocei - e almocei bem, admito. Ainda "brinquei aos blogs" durante um par de horas e depois voltei para a rua - ao som de música clássica nas colunas de som instaladas nos candeeiros -, mas sem vontade nenhuma de ver mais nada. Tirei fotos a uma estátua muito engraçada de um trabalhador do esgoto, surpreendi-me com alguns grafittis, tentei esconder-me do sol que insistia em perseguir-me e caminhei ao longo do rio Om (que, apesar do nome remeter imediatamente para a Índia, em comum só tinha a cor castanha). E, no fim de tanta passeata, descobri uma praia simpática com uma esplanada e uma banca onde podia dar uns tiros.

Como não sou grande adepto de armas, sentei-me na esplanada a escrever. Arrumei algumas ideias, brinquei com o photoshop e fiz o novo visual do blog, afastei uma data de abelhas que não paravam de me chatear, planeei os próximos dias... e fiz as pazes com a viagem.

Estou:

- com algum medo do me espera, em Tomsk.

- curioso com a paragem seguinte, o lago Baikal.

- ansioso por chegar à Mongólia.

























Voltei relativamente cedo para a estação. Jantei numa tenda, fartei-me de jogar sudoku no telemóvel, adiantei alguns textos... e finalmente chegou o comboio.

3. Esta cabine

Quando entrei no meu compartimento, estava uma russa da minha idade, morena, muito gira, sentada a ler; e um homem um pouco mais velho, a dormir na parte de cima de um dos beliches.

Murmurei um tímido "boa noite", ela levantou os olhos e não me disse nada. Sentei-me a olhar para a paisagem, o comboio arrancou. Dizem que o percurso que vou percorrer esta noite, de Omsk a Novosibirsk, é o de maior tráfego ferroviário do mundo. O que, para mim que vou a dormir, é-me igual ao litro. É como a paisagem em redor. A Espepe Baraba. Supostamente uma das mais inóspitas, já reclamou centenas de vidas, provoca alucinações e miragens, isto-e-aquilo, perigos e horrores... mas como disse, vou a dormir. É-me indiferente.

Lá fora: escuro como breu.

Aqui dentro: um homem a dormir, uma mulher a ler - e eu, a jogar sudoku no telemóvel. E eis que, de repente, estava eu a tentar perceber onde colocar o número 3 naquele conjunto de quadradinhos, oiço um inglês impecável:

"Close your eyes."

Olho para a morena sentada à minha frente, que imediatamente me faz sinal com o indicador para eu me virar para o outro lado, acrescentando:

"I'm gonna change clothes, now."

E esta, hem?

4 comentários:

Tareca disse...

Força Jorge! Embora numa situação diferente, conheço bem esse sentimento "o que é que estou aqui a fazer...", mas são esses finais hilariantes, como o da tua crónica, que nos dāo força para continuar....
Estás no bom caminho! Bjs

Anónimo disse...

Estive uma série de dias sem vir ao computador e gostei imenso de ler estes ultimos dias apesar de tu achares que não têm nada de interessante... Um grande beijinho e vai em frente
Bjs Tia Guida

Clara Amorim disse...

Afinal valeu a pena, hem?
Aliás, parece ser a tónica desta viagem... Quando tudo parece estar a desmoronar-se, surprise, surprise!!! :))

patricia disse...

"Close your eyes."
isto agora prometia mais...

Quanto à loucura, quando a atingires, poderás almoçar com os Lenines de bronze :)

ainda te faltam muitas calçadas. keep walking... :)