21/03/2016

O NOVO REGIME

Em jeito de homenagem ao Dia Mundial da Poesia (que se celebra hoje), passo a transcrever um poema que uma vez vi escrito no Museu do Genocídio, em Phnom Penh.

É da autoria de Sarith Pou, um sobrevivente do regime sanguinário dos Khmers Vermelhos, responsável nos anos setenta pelo extermínio de quase dois milhões de pessoas (um terço da população do Camboja, na altura), devido às suas políticas de "limpeza cultural", perseguição e porque simplesmente não era permitido a ninguém o acesso aos cuidados mais básicos.

Um tempo em que tudo era proíbido.

"Reza" assim, o poema chamado "The New Regime":

 
No religious rituals.
No religious symbols.
No fortune tellers.
No tradicional healers.
No paying respect to elders.
No social status. No titles.

No education. No training.
No school. No learning.
No books. No library.
No science. No technology.
No pens. No paper.

No currency. No bartering.
No buying. No selling.
No begging. No giving.
No purses. No wallets.

No human rights. No liberty.
No courts. No judges.
No laws. No attorneys.

No communications.
No public transportation.
No private transportation.
No traveling. No mailing.
No inviting. No visiting.
No faxes. No telephones.

No social gatherings.
No chitchatting.
No jokes. No laughter.
No music. No dancing.

No romance. No flirting.
No fornication. No dating.
No wet dreaming.
No masturbating.
No naked sleepers.
No bathers.
No nakedness in showers.
No love songs. No love letters.
No affection.

No marrying. No divorcing.
No martial conflicts. No fighting.
No profanity. No cursing.

No shoes. No sandals.
No toothbrushes. No razors.
No combs. No mirrors.
No lotion. No make up.
No long hair. No braids.
No jewelry.
No soap. No detergent. No shampoo.
No knitting. No embroidering.
No colored clothes, except black.
No styles, except pyjamas.
No wine. No palm sap hooch.
No lighters. No cigarettes.
No morning coffee. No afternoon tea.
No snacks. No desserts.
No breakfast [sometimes no dinner].

No mercy. No forgiveness.
No regret. No remorse.
No second chances. No excuses.
No complaints. No grievances.
No help. No favors.

No eyeglasses. No dental treatment.
No vaccines. No medicines.
No hospitals. No doctors.
No disabilities. No social diseases.
No tuberculosis. No leprosy.

No kites. No marbles. No rubber bands.
No cookies. No popsicle. No candy.
No playing. No toys.
No lullabies.
No rest. No vacations.
No holidays. No weekends.
No games. No sports.
No staying up late.

No newspapers.
No radio. No TV.
No drawing. No painting.
No pets. No pictures.
No electricity. No lamp oil.
No clock. No watches.

No hope. No life.
A third of the people didn't survive.
The regime died.

11/03/2016

ENCONTROS EM MRAUK OO

Os monumentos e as paisagens à volta de Mrauk Oo eram impressionantes, sem dúvida - mas aqui como em quase todos os lugares são as pessoas que dão vida ao "postal", que contam histórias e que enquadram o Tempo e o Espaço numa ideia. Ou várias.

Aqui:

É o míudo-monge que veio da Índia e que estava fascinado com a minha tatuagem em hindi; é o velhote que me fez uma longa e emocionada oração quando lhe dei algum dinheiro; são as mulheres que a cantar carregavam troncos em cima da cabeça; é a criança espantada por ver um cara-pálida nas imediações da sua aldeias; são os miúdos "pendurados" numa carrinha de caixa aberta com hip-hop "aos berros", simplesmente às voltas pela vila; é a mulher do mercado a querer fazer conversa mas sem saber uma palavra de inglês.

Encontros.

Breves instantes que cada um regista à sua maneira, ou como lhe dá mais jeito no momento:







Destinos que se cruzam com mais ou menos interacção, alguns só de raspão, sorrisos trocados e pouco mais; outros com conversa à mistura, um eventual potencial de "um bocadinho mais".

Já vi grandes amizades nascerem assim.







10/03/2016

MRAUK OO EM 30 CLICKS

Já descrevi aqui as peripécias no autocarro, já partilhei a minha conversa com as mulheres chin e a viagem de barco no rio Lemro, até já partilhei um ou outro click no facebook e no instagram... mas falta falar da principal razão que fez viajar até este cantinho remoto do Myanmar, já muito perto da fronteira com o Bangladesh.

Mrauk Oo.

Conta a lenda que vivia aqui uma macaca que casou com um pavão, os dois tiveram um filho (um homem nascido de um ovo!) e ele cresceu e transformou-se num poderoso príncipe, que mandou construir uma cidade junto à selva... e deu-lhe o nome de "Ovo da Macaca", ou seja, Mrauk Oo.

Hoje em dia Mrauk Oo é uma vila pacata no estado Rakhine, no oeste do Myanmar, um lugar onde as mulheres carregam diariamente vasilhas de água em cima da cabeça, as vacas pastam calmamente pelos campos... e há casinhas de madeira e bambu espalhadas à volta de pequenos rios... e uma colecção de ruínas capaz de fazer inveja a muitos "patrimónios da humanidade" que por aí andam.

Mrauk Oo foi a capital de um dos últimos reinos Arakaneses durante mais de trezentos anos, entre os sécs. XV e XVIII. Chegou a ter uma população de quase duzentas mil pessoas e deve muito do seu sucesso à proximidade com a Baía de Bengala, que permitiu que se tornasse um importante entreposto comercial entre vários reinos birmaneses com os indianos, persas, árabes, holandeses e - quem mais? - portugueses.

Mas histórias e História à parte, deixem-me partilhar aqui alguns clicks que fiz durante os dias que aqui passei, montado numa bicicleta alugada, "armado" com uma máquina fotográfica emprestada... que dias bons!

Ficam 30 clicks que, espero, convençam um ou outro viajante a fazer a este desvio. Vale a epopeia da ida-e-volta, isso garanto.




























Mrauk Oo não faz parte do roteiro da viagem à Birmânia que organizo com a Nomad... mas quem sabe, um dia.

08/03/2016

À CONVERSA COM AS MULHERES CHIN

Conta a lenda que há muito, muito tempo, os reis e os príncipes Rakhine tinham por hábito raptar mulheres das aldeias, para fazerem delas suas escravas. Uma vez que a beleza das raparigas de etnia Chin era lendária, as aldeias nas margens do rio Lemro e nas encostas do Monte Victoria eram constantemente "visitadas" por emissários reais - pelo que os Chin tiveram de encontrar uma solução para tornar as suas mulheres mais feias.

Assim nasceu a tradição de tatuar os rostos das mulheres Chin.

"Tinha oito, nove anos quando fiz isto", diz-me a mais conversadora das quatro mulheres sentadas ao meu lado, todas de cara marcada com uma espécie de teia de aranha, a boca avermelhada com o bétel que têm por hábito mascar. Temos um tradutor, claro - um jovem missionário chin que fala um inglês impecável, voluntário a dar aulas na escola da aldeia construída por benfeitores italianos.

Esta conversa passou-se há uma semana, quando estava em Mrauk Oo - mas confesso que estava a guardar a história para o Dia da Mulher.

Fui dar uma volta pelas aldeias Chin, num tour com mais três pessoas - os outros estrangeiros que entraram no "meu" autocarro, acabámos por ficar os quatro na mesma guesthouse. Saímos de manhãzinha de Mrauk Oo e começámos por visitar o Pagoda de Kothaung, a maior das ruínas da região - e provavelmente a mais famosa-, construído em 1553 e cujo nome significa "Santuário das 90.000 imagens".

É um lugar espectacular, fez-me lembrar Borobudur.



Daqui continuámos estrada fora até chegarmos a uma aldeia piscatória nas margens do rio Lemro, onde nos esperava o pequeno barco que nos levou a passear. Foram quase duas horas "para cima", visitámos três aldeias, almoçámos e ainda tivemos tempo de nadar no rio, tão limpo que os locais bebem a sua água.


Mas voltando à conversa com as mulheres Chin, o motivo principal que nos levou a fazer este tour, e obviamente a razão de ser desta crónica:

"Deitaram-me de costas, o rosto virado para cima, a cabeça apertada entre os joelhos da tatuadora. Eu estava aterrorizada, mas sabia que tinha de ser, a maior parte das mulheres da minha aldeia era tatuada... e eu tinha que cumprir a tradição. Demorou dois dias, foi horrível, por sorte não tive nenhuma infecção."

Confesso que estava um bocadinho céptico, antes de me juntar a este passeio. Normalmente não alinho em tours que vão ver "as tribos", pois custa-me fazer parte do circo de turistas que se comportam como se estivessem num zoo humano. Não costumo ir ver as "mulheres-girafa", por exemplo. Aliás: a própria "alcunha" já remete para o tal zoo, pois na verdade o nome da etnia é Padaung. Enfim: normalmente não as vou ver no Lago Inle (e nunca as fotografei) pois sei que são deslocadas das aldeias originais para lugares onde estão turistas, além de que o dinheiro que eventualmente geram não vai necessariamente para elas, mas para os "empregadores". Outra razão é de que muitas miúdas Padaung são "incentivadas" (o que pode ser uma forma simpática de dizer "forçadas") a manter a tradição, mas sempre com o olho no dólar do turista. Dito isto, claro que também eu sou curioso - e depois de debater o assunto com os meus companheiros de viagem e com o senhor que nos ia levar a passear, decidimos ir. A prática de tatuar os rostos é hoje proibida, estas são as últimas mulheres tatuadas, vivem nas próprias aldeias onde cresceram e têm um gosto genuíno em partilhar as suas histórias. E se começar a "descambar", combinámos entre os quatro, podemos sempre voltar para trás.

Não descambou.

Ainda ameaçou, ao início. Na primeira aldeia as mulheres falavam pouco e todas tinham um pequeno negócio de tapeçaria, que aproveitavam para vender aos turistas. Genuíno, pertinente, ainda sem chocar demasiado - mas o primeiro passo para "descambar".

Enfim: conversámos um pouco mas sem tradutor era difícil muita conversa, por isso demos uma volta na aldeia, cada um comprou uma peça feita por elas... e confesso que saímos dali com sentimentos mistos, por um lado sabíamos que estávamos a ajudar, por outro isto pode ser o início do tal zoo. Neste momento há pouco mais de mil pessoas por ano a visitar estas aldeias. É pouco... mas já é alguma coisa.
 


Continuámos. Se na segunda aldeia for assim, se calhar mais vale voltar para Mrauk Oo.

Mas não foi.

Na segunda aldeia fomos recebidos pelo John, um jovem missionário de etnia Chin - curiosamente, a maioria dos Chin é cristão - que falava um inglês impecável e que nos ajudou numa das conversas mais interessantes que tive nos últimos tempos.

Sentámo-nos à sombra de uma casa de bambu - nós quatro, o tradutor, o guia e os miúdos que nos trouxeram de barco, e ainda quatro mulheres Chin e uma data de crianças curiosas. Conversámos, almoçámos, conversámos... fizemos todas as perguntas que nos lembrámos de fazer, elas responderam com um gosto imenso e aparentemente genuíno por partilharem a sua cultura com estranhos.



Explicaram-nos como tudo começou por ser uma forma de tornar as mulheres feias, mas ao longo dos tempos tornou-se numa característica de beleza, e alguns homens Chin nem consideravam casar com uma mulher não-tatuada.

"Casei por amor, não por conveniência. O meu marido dizia que eu era corajosa e bonita. Mas eu acho que sou feia, para ser honesta."

E, no entanto, quando lhe pergunto sobre a relação das netas com o facto da avó ser tatuada:

"Por mim eram todas tatuadas, também. A tradição devia ser cumprida, faz parte da nossa identidade. Mas agora é proíbido."

O ritual de tatuar o rosto das raparigas Chin começou a perder força com a chegada de missionários cristãos, há alguns séculos; e acabou por ser banido nos anos 60, pelo Conselho Revolucionário que governou o país entre 1962 e 1974.

Dos cento e trinta grupos étnicos que vivem no Myanmar, mais de cinquenta são Chin - e cada um se identifica com um padrão diferente. Nestas aldeias que visitei as mulheres têm uma espécie de teia de aranha no rosto... mas há tribos que usam apenas umas linhas a atravessar cada bochecha, outras fazem desenhos com pontos, círculos, ou combinações de vários destes estilos.

As tatuagens eram feitas antes das raparigas atingirem a puberdade, entre os nove e os doze anos, e o ritual era, como se pode calcular, doloroso... e muito perigoso. Algumas miúdas morriam com infecções. O líquido "injectado" na pele era feito de uma mistura de cortiça de pinheiro queimada com folhas de um feijoeiro... e quando não era de boa qualidade acabava por desaparecer, o que obrigava a repetir o processo.

A família tinha de pagar qualquer coisa à tatuadora: podia ser um porco ou outro animal, algum dinheiro, bebidas. Acreditava-se também que um sumo tradicional ajudava a diminuir a dor... ou seja, cá para mim aquilo tinha álcool ou mesmo alguma "erva mágica".

Foi uma tarde muito interessante, no mínimo. Não só aprendi um pouco sobre este bocadinho de mundo que não conhecia, como partilhámos histórias pessoais e rimos juntos. Uma das senhoras contou-nos, por exemplo, sobre a primeira vez que veio um estrangeiro à aldeia. Passou o dia a tirar-lhes fotografias, ela até já estava com medo porque não sabia que máquina era aquela que ele lhe apontava.

"Mas agora estou habituada", admite.

"E não se chateia?"

"Nada disso. É normal as pessoas terem curiosidade, nunca viram. Além disso, graças aos turistas já temos um tanque de água na aldeia, uma escola nova e mais alguma infra-estruturas. Antes dos turistas virem ninguém queria saber de nós."

Na despedida, quando uma das senhoras me segurou nas mãos e eu lhe desejei uma longa vida, ela pediu ao John para ele me dizer que ia rezar por mim, quando visitasse o templo.

Na terceira aldeia, abdicámos de ir "ver as mulheres tatuadas". A experiência com o John e as quatro mulheres tinha sido muito completa, não precisávamos de alimentar o lado mais voyeur do passeio. Em vez disso demos uma volta rápida à aldeia e no regresso ao barco perguntámos se era possível tomar banho no rio.

"Claro que sim!"

Acabámos o tour a nadar no rio de água límpida, antes do regresso a Mrauk Oo. Voltámos com a "alma cheia": o banho final, a paisagem à nossa volta, a vida das aldeias no rio... e, acima de tudo, a conversa com o John e as mulheres Chin, e o confronto com a fatalidade de uma tradição que, por muito singular que seja, tem os dias contados. Quando estas mulheres se juntarem aos seus antepassados... isto acaba. E, se pessoalmente posso ter alguns sentimentos contraditórios, na qualidade de autor deste blog fico satisfeito por partilhar um bocadinho do que aprendi... e de fazer assim uma pequena homenagem a estas mulheres que já passaram por muito.


Votos de um feliz Dia das Mulheres!