Estávamos a ouvir música russa há quase uma hora. Pelo menos,sempre que eu acordava. A primeira hora de viagem, passei-a a dormir agitadas sestasde cinco minutos, intervaladas por momentos de nervosismo provocados portravagens bruscas, guinadas no volante, buracos, lombas... ou simplesmenteporque a posição não me permitia dormir muito tempo.
Mas voltanto ao tema que serve de arranque a esta crónica: amúsica. Não estava atento, mas tenho quase a certeza que foi sempre músicarussa. Não me lembro de reconhecer nenhum som familar... até que... derepente... um assobio... sim, esta eu conheço:
Here's a little song Iwrote
You might want to sing it note for note
Don't worry, be...
You might want to sing it note for note
Don't worry, be...
E não é que o gajo desliga o rádio? Não vão as pessoascomeçar a ter ideias.
Sorrisos é que não.
Vá-se lá entender os russos.
Estou dentro de uma marshrutka. Desta vez a paisagem lá foranão são os vales e as montanhas da Geórgia, mas a planície da Sibéria. E dolado de dentro - isto cá dentro é sempre um filme. :)
Neste caso, o filme nem tem um argumento muito interessante.Pouco se passou no percurso Novosibirsk/Tomsk, para além de alguns sobressaltoscom a irrepreensível condução do nosso driver. Mas os actores. Os personagens.
Passo a apresentar os meus silenciosos companheiros deviagem. E quando escrevo silenciosos, quero com isto dizer: quatro horas deviagem com direito a duas paragens de dez minutos para fumar um cigarro e ir àcasa de banho. E só durante a segunda paragem houve alguma comunicação entre ospassageiros. Na estrada, nem pio.
Eu estava sentado na parte de trás da marshrutka. Eu e maistrês. Três e meio, para ser mais exacto. Ok: do meu lado direito, um mauzão comar de frete - nada de novo, portanto. Do meu lado esquerdo, um jovem casal deex-presidiários e o seu bebé louríssimo, sorridente e lindo (seria raptado?) deano e meio. Ambos fumadores compulsivos (os pais, não o bebé), ao princípiochocavam-me com a falta de cuidado que tinham relativamente ao fumo e à criança...mas a coisa chegou a um ridículo tal, que a certa altura já não me preocupavatanto que o puto respirasse aquilo, mas que se queimasse na beata. Incrível.
Mesmo à frente dos ex-presidiários, outro casal. Ele muitomais velho, ela quase adolescente - acho que os vou poupar ao veneno: deviamser pai e filha. Ela veio o tempo todo a ouvir música nos fones, ele não piou, são meros figurantes neste filme.
A disposição dos restantes lugares era um bocado estranha.Três de lado, quatro virados para trás. Mesmo à minha frente e do mauzão, masde lado, sentado de costas para a janela, um senhor com ares de muito-importante,bem-vestido, pode-estudada, dentes-de-ouro. Impecável. Estava permanentemente aadormecer e, como as travagens e aceleramentos não convinham muito à posição emque estava... veio o tempo todo quase-quase a cair para cima de nós. Nunca chegoua cair mesmo, mas a certa altura eu comecei a rir-me da situação, o senhoracordou e ficou com ar de vou-te-matar a olhar para mim, a perguntar o que era,eu só fiz sinal para ele esquecer o assunto.
Depois havia outro casal - mais velho. Deviam estar ambos nacasa dos sessenta, mas ela parecia quase setenta, ele parecia quase cinquenta. Gentedo campo, quase de certeza - provavelmente de férias. Ela transpiravasofrimento, coitada. Veio o tempo todo cheia de dores no joelho direito, massem nunca se queixar. Também achei, por duas ou três vezes, que ia vomitar. Masaguentou-se bem. O único ser a vomitar naquela carrinha foi o bebé raptado -por pouco não me acertou, mas foi curioso ver a reacção dos pais, quelimitaram-se a olhar. Tinham um balde de praia com eles (praia?, estamos amilhares de quilómetros da praia!) e outros apetrechos que podiam ter minoradoo estrago... mas não, deixaram-no a vomitar para as calças, para o chão... e ficarama olhar.
Mas voltando ao casal de meia-idade: ela mais acabada,sempre muito atenta aos movimentos dele, tira daqui o saco que te está aincomodar os pés, toma lá o chapéu que está a entrar sol para a carrinha, fazisto, faz aquilo, que esposa dedicada. Sem que seja preciso ele pedir! Simsenhora. :)
Quanto a ele: era a pessoa mais sorridente da carrinha.Vinha a ler um livro em russo mas que o título incluía as palavras (em inglês)"Public Relations". Nada mau.
E depois os quatro lugares virados para a parte de trás. Viradospara nós, portanto. Numa ponta, uma rapariga de 18 ou 19 anos - lindíssima.Olhos verdes, enormes. Boca à Angelia Jolie. Um meio-termo entre a CarmenElectra e a Megan Fox - mas com um ar de anjinho. Passou a maior parte do tempoao telefone, de vez em quando olhava em redor... e o ex-presidiário não paravade olhar para ela, com olhos de Lobo Mau.
Nos dois lugares do meio, mais um casal. Ela enorme, atransbordar por todo o lado; ele estrábico, com um ar meio tonto - preconceitomeu, porque ouvi-o a falar com o driver,na parte final da viagem, e pareceu-me tudo menos tonto. A verdade é que, noinício da viagem, ficara com a sensação de que eram mãe e filho. Não que elafosse muito mais velha, mas pelo comportamento de ambos. Só mais tarde percebi queeram um casal, pelos mimos trocados. Ela dominava claramente a relação,provavelmente avia-lhe uns enxertos de vez em quando, ele cala-se e come. Durantea viagem, ele adormeceu com a cabeça na enorme almofada que era o ombro dela,abraçado ao gordíssimo braço como um cachorrinho bem educado. Dormiaprofundamente, com aquele ar de satisfação que só os bebés têm. Elaimpenetrável, de óculos à professora primária, quase nunca dormiu, sempre com arde militar que guarda a fronteira.
E finalmente, na outra ponta, uma gótica. Veio a dormir deboca aberta a viagem quase toda. Não se mexia, cheguei a temer que tivessemorrido esmagada pela gorda contra o vidro, mas a meio do caminho mexeu-se ligeiramente,mesmo só um bocadinho, quando saímos para uma pausa. Saímos - salvo seja. Que agótica não era dada a muito movimento. Ficava ali quietinha no canto dela, apensar em coisas góticas, provavelmente até gostava de estar encaixada com agorda, assim pelo menos não conseguia mexer-se muito, automutilar-se, comeranimais vivos, tomar banho em sangue, enfim: fazer aquelas coisas góticas. ;)
Chegámos a Tomsk ao fim de quatro horas. Nada aacrescentar... mais uma para a lista?Primeiro um banho - preciso de um banho.
5 comentários:
Mas que povo tão acolhedor.. estou impressionada.
adoro os teus comentários, fartei-me de rir sózinha.
Mts bjs
Tia Guida
Rica viagem esta, emocionante portanto, tanto que queres escrever depressa e colas as palavras umas às outras para não te esqueceres de nenhuma.
Fartei-me rir sózinha com as descrições dos companheiros de viagem.
Povo simpático este ....
Acho que podias deixar aí um bocadinho do teu sentido de humor...! Os russos bem que estão a precisar!!!
... ainda a chorar de riso :)
Que ritmo! dei por mim a ler-te numa marshrutka
Excelente texto. Só mesmo uma coisa assim para me fazer rir hoje. Parabéns pela bela descrição da viagem.
É sempre um prazer ler o seu blog.
Enviar um comentário