08/09/2011

DE VOLTA À MARSHRUTKA
















Estávamos a ouvir música russa há quase uma hora. Pelo menos,sempre que eu acordava. A primeira hora de viagem, passei-a a dormir agitadas sestasde cinco minutos, intervaladas por momentos de nervosismo provocados portravagens bruscas, guinadas no volante, buracos, lombas... ou simplesmenteporque a posição não me permitia dormir muito tempo.

Mas voltanto ao tema que serve de arranque a esta crónica: amúsica. Não estava atento, mas tenho quase a certeza que foi sempre músicarussa. Não me lembro de reconhecer nenhum som familar... até que... derepente... um assobio... sim, esta eu conheço:

Here's a little song Iwrote
You might want to sing it note for note
Don't worry, be...

E não é que o gajo desliga o rádio? Não vão as pessoascomeçar a ter ideias.

Sorrisos é que não.

Vá-se lá entender os russos.

Estou dentro de uma marshrutka. Desta vez a paisagem lá foranão são os vales e as montanhas da Geórgia, mas a planície da Sibéria. E dolado de dentro - isto cá dentro é sempre um filme. :)

Neste caso, o filme nem tem um argumento muito interessante.Pouco se passou no percurso Novosibirsk/Tomsk, para além de alguns sobressaltoscom a irrepreensível condução do nosso driver. Mas os actores. Os personagens.

Passo a apresentar os meus silenciosos companheiros deviagem. E quando escrevo silenciosos, quero com isto dizer: quatro horas deviagem com direito a duas paragens de dez minutos para fumar um cigarro e ir àcasa de banho. E só durante a segunda paragem houve alguma comunicação entre ospassageiros. Na estrada, nem pio.

Eu estava sentado na parte de trás da marshrutka. Eu e maistrês. Três e meio, para ser mais exacto. Ok: do meu lado direito, um mauzão comar de frete - nada de novo, portanto. Do meu lado esquerdo, um jovem casal deex-presidiários e o seu bebé louríssimo, sorridente e lindo (seria raptado?) deano e meio. Ambos fumadores compulsivos (os pais, não o bebé), ao princípiochocavam-me com a falta de cuidado que tinham relativamente ao fumo e à criança...mas a coisa chegou a um ridículo tal, que a certa altura já não me preocupavatanto que o puto respirasse aquilo, mas que se queimasse na beata. Incrível.

Mesmo à frente dos ex-presidiários, outro casal. Ele muitomais velho, ela quase adolescente - acho que os vou poupar ao veneno: deviamser pai e filha. Ela veio o tempo todo a ouvir música nos fones, ele não piou, são meros figurantes neste filme.

A disposição dos restantes lugares era um bocado estranha.Três de lado, quatro virados para trás. Mesmo à minha frente e do mauzão, masde lado, sentado de costas para a janela, um senhor com ares de muito-importante,bem-vestido, pode-estudada, dentes-de-ouro. Impecável. Estava permanentemente aadormecer e, como as travagens e aceleramentos não convinham muito à posição emque estava... veio o tempo todo quase-quase a cair para cima de nós. Nunca chegoua cair mesmo, mas a certa altura eu comecei a rir-me da situação, o senhoracordou e ficou com ar de vou-te-matar a olhar para mim, a perguntar o que era,eu só fiz sinal para ele esquecer o assunto.

Depois havia outro casal - mais velho. Deviam estar ambos nacasa dos sessenta, mas ela parecia quase setenta, ele parecia quase cinquenta. Gentedo campo, quase de certeza - provavelmente de férias. Ela transpiravasofrimento, coitada. Veio o tempo todo cheia de dores no joelho direito, massem nunca se queixar. Também achei, por duas ou três vezes, que ia vomitar. Masaguentou-se bem. O único ser a vomitar naquela carrinha foi o bebé raptado -por pouco não me acertou, mas foi curioso ver a reacção dos pais, quelimitaram-se a olhar. Tinham um balde de praia com eles (praia?, estamos amilhares de quilómetros da praia!) e outros apetrechos que podiam ter minoradoo estrago... mas não, deixaram-no a vomitar para as calças, para o chão... e ficarama olhar.

Mas voltando ao casal de meia-idade: ela mais acabada,sempre muito atenta aos movimentos dele, tira daqui o saco que te está aincomodar os pés, toma lá o chapéu que está a entrar sol para a carrinha, fazisto, faz aquilo, que esposa dedicada. Sem que seja preciso ele pedir! Simsenhora. :)

Quanto a ele: era a pessoa mais sorridente da carrinha.Vinha a ler um livro em russo mas que o título incluía as palavras (em inglês)"Public Relations". Nada mau.

E depois os quatro lugares virados para a parte de trás. Viradospara nós, portanto. Numa ponta, uma rapariga de 18 ou 19 anos - lindíssima.Olhos verdes, enormes. Boca à Angelia Jolie. Um meio-termo entre a CarmenElectra e a Megan Fox - mas com um ar de anjinho. Passou a maior parte do tempoao telefone, de vez em quando olhava em redor... e o ex-presidiário não paravade olhar para ela, com olhos de Lobo Mau.

Nos dois lugares do meio, mais um casal. Ela enorme, atransbordar por todo o lado; ele estrábico, com um ar meio tonto - preconceitomeu, porque ouvi-o a falar com o driver,na parte final da viagem, e pareceu-me tudo menos tonto. A verdade é que, noinício da viagem, ficara com a sensação de que eram mãe e filho. Não que elafosse muito mais velha, mas pelo comportamento de ambos. Só mais tarde percebi queeram um casal, pelos mimos trocados. Ela dominava claramente a relação,provavelmente avia-lhe uns enxertos de vez em quando, ele cala-se e come. Durantea viagem, ele adormeceu com a cabeça na enorme almofada que era o ombro dela,abraçado ao gordíssimo braço como um cachorrinho bem educado. Dormiaprofundamente, com aquele ar de satisfação que só os bebés têm. Elaimpenetrável, de óculos à professora primária, quase nunca dormiu, sempre com arde militar que guarda a fronteira.

E finalmente, na outra ponta, uma gótica. Veio a dormir deboca aberta a viagem quase toda. Não se mexia, cheguei a temer que tivessemorrido esmagada pela gorda contra o vidro, mas a meio do caminho mexeu-se ligeiramente,mesmo só um bocadinho, quando saímos para uma pausa. Saímos - salvo seja. Que agótica não era dada a muito movimento. Ficava ali quietinha no canto dela, apensar em coisas góticas, provavelmente até gostava de estar encaixada com agorda, assim pelo menos não conseguia mexer-se muito, automutilar-se, comeranimais vivos, tomar banho em sangue, enfim: fazer aquelas coisas góticas. ;)

Chegámos a Tomsk ao fim de quatro horas. Nada aacrescentar... mais uma para a lista?Primeiro um banho - preciso de um banho.

5 comentários:

Anónimo disse...

Mas que povo tão acolhedor.. estou impressionada.
adoro os teus comentários, fartei-me de rir sózinha.
Mts bjs
Tia Guida

LV disse...

Rica viagem esta, emocionante portanto, tanto que queres escrever depressa e colas as palavras umas às outras para não te esqueceres de nenhuma.
Fartei-me rir sózinha com as descrições dos companheiros de viagem.
Povo simpático este ....

Clara Amorim disse...

Acho que podias deixar aí um bocadinho do teu sentido de humor...! Os russos bem que estão a precisar!!!

patricia disse...

... ainda a chorar de riso :)
Que ritmo! dei por mim a ler-te numa marshrutka

Ana disse...

Excelente texto. Só mesmo uma coisa assim para me fazer rir hoje. Parabéns pela bela descrição da viagem.
É sempre um prazer ler o seu blog.