07/11/2016

HANÓI, VISTA DE CIMA

Fascinada pelos ritmos e rotinas de Hanói, a fotógrafa Loes Heerink dedicou-se, entre outros projectos, a fotografar as trabalhadoras migrantes que todos os dias caminham pelas ruas da capital vietnamita com as suas bicicletas carregadas de mercadoria.

Esta é uma imagem icónica da cidade, mas pouca gente vê mais do que um postal. A realidade que estas mulheres vivem, diariamente, é bastante dura. Vendem fruta, flores, peixe, acessórios de moda e alimentos vários. Fazem quilómetros e quilómetros a pé, todos os dias, para esvaziar as suas lojas ambulantes. E, no entanto, "não fazem ideia de como as suas bicicletas são lindas, nem imaginam que criam pequenas obras de arte todos os dias" - diz Loes no seu site.

Quando descobri as fotos que passo a partilhar - e que fazem parte de um novo livro que me parece muuuuito interessante -, apaixonei-me imediatamente por este projecto. Talvez porque me fez lembrar alguns clicks que fiz na Índia, logo na minha primeira passagem em 2003. Mas essencialmente porque são realmente boas fotos, que nos transportam para o colorido desta cidade que não pára quieta.

Aliás: quem teve de estar quieta foi Loes, que passou horas em cima de pontes para conseguir aquilo que vais ver de seguida. Ora diz-me lá se não é um trabalho louvável:










Já agora: o site original, onde podem conhecer mais algum do trabalho desta fotógrafa, é este.

05/11/2016

HANÓI AOS FINS-DE-SEMANA, VERSÃO 2016

Já estou em Hanói, em contagem decrescente para receber mais um grupo de viajantes da Nomad. Amanhã arranca a 27ª edição da Indochina - a primeira, desde que lancei o livro. E o entusiasmo pelas aventuras que se seguem é praticamente o mesmo de há sete anos atrás - o que é facilitado quando os lugares se reinventam, quando os ritmos se adaptam aos tempos e aos ventos.

Hoje de manhã saí bem cedo do hotel e fui, ainda o sol ia baixinho, correr à volta do lago Hoan Kiem. A temperatura estava perfeita, nem-muito-calor nem-muito-frio; e não fazia a humidade a que, de certa maneira, me habituei na Tailândia e no Myanmar. Resultado: corri mais quilómetros e mais depressa, voltei para casa com um sorriso de Rosa Mota em Seoul, 1988.

Ao chegar ao lago reparei logo que havia algumas barreiras nas ruas à volta, e até pensei "que boa ideia, cortar o trânsito de manhã, quando está toda a gente a fazer desporto". No entanto, só mais tarde (quando ao final da manhã fui comprar os bilhetes do grupo para o espectáculo dos tradicionais Fantoches na Água) é que me apercebi que afinal algo de "maior" estava a acontecer.

As ruas estavam vazias. Nem uma mota, muito menos um carro. Apenas algumas pessoas a passear, muitas delas pelo alcatrão... "o que será que se está a passar aqui?", perguntei-me.







Só quando abordei um grupo de raparigas é que fiquei esclarecido. Ao que parece, desde Setembro que a cidade decidiu fechar ao trânsito, aos fins-de-semana, toda a área em redor do lago. Ou seja: das 19:00 de sexta à meia noite de domingo, a cidade é das pessoas.

Que espectáculo, esta nova Hanói!

E ainda por cima num sábado de sol como o de hoje: as famílias em peso na rua, grupos de amigos em pateta cusquice, turistas a tirar fotografias. Por todo o lado animação. Jogos tradicionais para os mais jovens reviverem a sua própria cultura; artistas locais a fazer valer os seus talentos; bandas de música a tocar na estrada; palhaços a oferecer balões; workshops disto-e-daquilo; muita música e sorrisos. Não podia estar melhor do que aqui, hoje. Que colorida volta, depois do preto-e-branco de Bangkok - que ainda está de luto.

Não resisto a partilhar alguns registos. Mas antes disso, deixo então esta dica importantíssima e ainda muito fresca: se estiveres a planear visitar Hanói, faz pontaria para o fim-de-semana. Não te vais arrepender!












31/10/2016

UM PAÍS INTEIRO DE LUTO

Depois de umas mini-férias no sul da Birmânia com o meu irmão Vasco, estamos agora em Kanchanaburi, na Tailândia - esta semana voo para Hanói, onde arranca mais uma edição da Indochina.

Gostava de ter ficado mais uns dias... mas o meu visto acabou. E, de qualquer forma, estava muito curioso de testemunhar este momento tão especial que se está a viver na Tailândia. Faleceu há duas semanas sua Majestade, o Rei Bhumibol Adulyadej.

Rama IX era o monarca com o mais longo reinado da História: setenta anos, para ser mais exacto. Subiu ao trono com apenas dezoito anos e foi um rei muito amado pelo seu povo, muito "por culpa" da sua personalidade tão amável, dedicada e altruísta. A maior parte dos tailandeses nunca conheceu outro rei, e Bhumibol era visto como um "pai" ou "avô" de todos os tailandeses. Não é de estranhar, portanto, que o país esteja em luto.

O último dia treze de Outubro será lembrado, por muitos, como um dia de tristeza imensa... e alguma incerteza. Mas não vamos entrar agora em futurologia. Neste momento interessa partilhar o presente - e alguns "cuidados" que os turistas devem observar, caso visitem a Tailândia nas próximas semanas.

A Autoridade de Turismo da Tailândia, por exemplo, pediu a todos os turistas para manterem os seus planos de viagem, informando que a maior parte das atracções turísticas e monumentos estão abertos ao público - excepto o Wat Phra Kaew (o Templo do Buda de Esmeralda) e o Palácio Real, onde estão a decorrer as cerimónias fúnebres reais, ao longo dos trinta dias de luto decretado. Aliás: toda a zona envolvente vai ter o trânsito condicionado, ruas cortadas e segurança muito "apertada".

Posso também confirmar que, não só a maior parte dos lugares turísticos estão abertos, como muitos têm agora entrada livre, em homenagem ao falecido rei. Hoje, por exemplo, visitei umas ruínas Khmer a 60km de Kanchanaburi e não paguei bilhete. Também ouvi dizer que em Ayutthaya todos os monumentos são de entrada livre, nos próximos dias. E concerteza haverá muito mais atracções e monumentos nas mesmas condições.

Quanto a festas: a Full Moon Party de Outubro foi cancelada - e ainda não se sabe se a de Novembro se vai realizar. Mas a maior parte dos eventos tradicionais e festivais vão ser celebrados como habitualmente. A palavra de ordem é "tone down", ou seja, moderação. Alguns bares e discotecas estão encerrados até ao final do luto, outros fecham mais cedo, ou baixam o volume da música.

No entanto, aquilo que salta logo à vista é o luto propriamente dito. Durante este período, a maior parte dos tailandeses está vestido de preto. Foi a primeira coisa que reparei ontem, quando atravessei a fronteira. Vi algumas pessoas de branco e cinzento, também - mas a maior parte está de preto. É muito raro ver alguém vestido com cores mais "vivas". E quanto aos turistas: não é obrigatório cumprir este procedimento, mas as autoridades solicitam a todos que optem por um vestuário discreto e respeitoso, quando estiverem em público.

E não estivéssemos na Tailândia: todas as lojas e mercados têm agora à venda roupa preta e de outras cores sóbrias. Ontem passei no Night Market de Ranchanaburi e o panorama era este:








25/10/2016

ESTA NOVA MANIA DE CORRER EM VIAGEM

"Mingalabar!", digo alegremente a dois pescadores de cócoras no passeio, concentrados a reparar redes; eles levantam os olhos e as expressões iniciais de surpresa transformam-se imediatamente em rasgados sorrisos manchados por anos a mascar noz de bétel.

"Mingalabar!", respondem-me em coro, e sem abrandar eu continuo a minha corrida.

Esta nova mania.

Correr em viagem: não só é saudável, como tem-se revelado uma forma muito interessante de conhecer e interagir melhor com os lugares por onde passo, nas minhas voltas. E como gosto de correr logo de manhã, bem cedo, descubro normalmente ritmos e dinâmicas muito próprias.

Foi em Lisboa, neste Verão que se prolongou até há pouco tempo, que comecei a correr mais "a sério". Há anos que não corria. Mas desta vez: com amigos de sempre, ténis novos e uma vontade enorme de desenferrujar, primeiro umas distâncias pequeninas a um ritmo envergonhado, depois ganhando aos poucos resistência e disciplina.

Não sou o Carlos Lopes e muito menos um Usain Bolt, não tenho ambições olímpicas nem sonho cortar metas com os braços levantados e os sovacos bem peludos. Mas a verdade é que lá vou batendo recordes (os meus recordes) e sinto-me um verdadeiro campeão - especialmente desde que decidi correr enquanto viajo.

E que descoberta!, esta Birmânia das seis e meia, sete da manhã. A Birmânia dos casais modernos equipados a rigor, a caminhar em passo acelerado; dos homens a fazer exercício de longyi; dos grupos de cinquentonas a fazer tai chi, yoga do riso, aeróbica; a Birmânia dos monges a fazer ginástica nas máquinas e a pedir-me dicas sobre a melhor app para fazer desporto; das pessoas que interrompem o jogging para rezar em frente a uma stupa, dos taxis que me buzinam na rua, a perguntar se quero boleia; das crianças todas fardadas a ir para a escola, dos monges em fila a pedir as "almas".

Do meu hotel em Yangon até ao People's Park são dois quilómetros, é tanta a humidade que chego lá já a pingar, dou umas voltas, sorrio com o privilégio de correr com vista para o Shwedagon Pagoda, depois volto para o hotel, são uns 8km de cada vez.

Em Mandalay faço o "Quadrado", como lhe chamo, que basicamente implica dar a volta à antiga Cidadela, pela estrada em redor do enorme canal. São ao todo 9km e costumo chegar ao hotel a cair para o lado e completamente ensopado.

Já em Bagan e Nyaung Shwe, as voltas são mais rurais - a maior parte por caminhos de terra batida. E se no primeiro caso estou rodeado de templos e ruínas milenares, no segundo atravesso aldeias. Em ambos os casos, os sorrisos de sempre e os mingalabars do costume.

E em Mawlamyine, que é onde me encontro agora, corri na estrada ao longo do rio, cruzando-me com vários tipos de madrugadores: os pescadores nas suas árduas rotinas, os desportistas a ir-e-vir como eu, os monges em silenciosas filas, os empregados a abrir lojas e restaurantes.

Enfim: este renovado entusiasmo com as corridas é tanto que mal posso esperar pela Indochina. Já me imagino a correr à volta do lago Hoan Kiem, em Hanói, acompanhado de milhares de pessoas; ou a fazer a península de Luang Prabang, com vista para o rio Mekong e rodeado de mosteiros e monges e aquele ambiente mágico de que tantas saudades tenho.

Saudável mania esta, hem?


23/10/2016

EMOÇÕES FORTES NO COMBOIO PARA MAWLAMYINE (2)

"No available seats. You take ordinary class."

Resignados, dirigimo-nos à pequena multidão que se empurrava em frente da bilheteira da ordinary class. A minha sugestão, o Vasco ficou a observar a um canto, a guardar as mochilas - e eu atirei-me de corpo e alma ao caótico bocadinho de universo à nossa frente.

Custava alguma coisa fazer fila? Vá-se lá entender a lógica.

Faz-te à vida, diz-me a vozinha imaginária que às vezes viaja comigo.

Faço pois. Que remédio. Até porque, se fizéssemos muita questão de viajar em upper class, podíamos sempre adiar a viagem para amanhã, tratar da reserva agora e ficar mais um dia em Yangon. Mas já aqui estávamos com as mochilas. E de autocarro não apetecia nada.

Que calor.

Seis e meia e tenho a t-shirt ensopada, a testa a pingar, a paciência no limite. E um plano.

Eu tenho um plano.

Enquanto eu insistia e tentava a minha sorte com o senhor da bilheteira da upper class, reparei que no livro onde estão registadas as reservas havia alguns lugares assinalados com a palavra "Bago". Em inglês, felizmente, porque se fosse em birmanês não teria percebido nada. Ainda perguntei se podia comprar-lhe bilhetes de Bago para Mawlamyine, mas o homem confirmou aquilo que eu já sabia: os bilhetes de comboio no Myanmar compram-se somente na respectiva estação de partida. E o horário indicava uma paragem dois minutos em Bago. Ou seja: era virtualmente impossível sair a correr com as mochilas, verificar disponibilidade na upper class, comprar os bilhetes (o processo demora sempre imenso tempo, com o registo do passaporte no livro de reservas, cópias disto-e-daquilo... e tudo à mão) e ainda voltar a tempo de embarcar na nova carruagem.

Mas eu tenho um plano.

Que calor!

Ao fim de dez minutos lá consegui comprar os bilhetes para a ordinary class. Dirigimo-nos até ao comboio e sentámo-nos nos lugares indicados nos bilhetes. Enquanto não arrancávamos fui comprar algumas provisões para a viagem. E assim que o comboio deixou Yangon, telefonei a uma rapariga chamada Thu Zar.

A Thu Zar é a dona do San Francisco Motel, a guesthouse onde fiquei com os dois últimos grupos em Bago. Uma trintona cheia de entusiasmo, com um coração que não cabe neste mundo e um sorriso que devia ser Património da Humanidade.

"I need your help, Thu Zar. Preciso que vás à estação de comboios perguntar se há lugares vagos na upper class, no comboio para Mawlamyine que saiu agora de Yangon. E, se houver: preciso que me compres dois."

Meia hora depois estava a ligar-me de volta a dizer que sim - havia lugares.

"Diz-me os números dos vossos passaportes, e diz-me também em que carruagem estás agora."



Uma hora depois, vínhamos à conversa e nem demos pelo comboio abrandar. Quando olhei pela janela estávamos a chegar a Bago.

"Depressa! Temos de sair aqui!"

Dezenas de passageiros tinham começado a entrar no comboio, quando finalmente conseguimos pegar nas mochilas. Tivemos de furar, aos gritos de "deixa passar!", não sei como conseguimos mas aos poucos aproximámo-nos da porta. Lá fora estava a Thu Zar, que é mulher de porte forte e conseguiu estancar o fluxo de pessoas que queriam entrar na carruagem.

"Empurra! Empurra!", gritei ao meu irmão.

Empurrámos. E assim que pisámos o solo foi um vê-se-te-avias na plataforma, a correr atrás da Thu Zar, na minha cabeça um countdown imaginário, começou em dois minutos mas agora aproxima-se vertiginosamente do zero, o comboio vai arrancar e nós vamos ficar em terra, nós vamos ficar em terra, nós vamos ficar em terra... e quando finalmente parámos, cinco carruagens depois, então tive a certeza que tudo ia acabar bem. A Thu Zar deu-me os bilhetes e eu passei-lhe para as mãos o dinheiro, o comboio apitou e no meio de obrigados e thank yous e djisu temares, subimos para a nossa nova carruagem e finalmente respirámos.

Bancos que pareciam poltronas!

Pendurei-me na janela e segurei nas mãos da Thu Zar, muuuuito obrigado, foste a nossa salvação, não há palavras, e ela a sorrir aquele sorriso que acaba com guerras, e de repente aparece a irmã dela a correr na plataforma, veio-se despedir, penso eu, aceno e o comboio dá um solavanco, e ela estica os braços na minha direcção, tem um saco de plástico cheio de qualquer-coisa:

"Take this! It's for you!"

E eu seguro no saco, pela janela, no momento em que o comboio começa a andar - e assim que seguro nele percebo que tem bebidas e muita comida, um picnic completo de sanduiches e sumos e fruta, estas mulheres não existem, este país não existe, fico com um nó na garganta e não encontro palavras, já foi tudo dito e ao mesmo tempo falta dizer tanto.

"Djisu bá, djisu bá, obrigado."

Elas ficam mais pequenas à medida que o comboio avança pelos carris, acabo por me sentar e vejo o meu irmão a sorrir, com o saco de plástico na mão.

"Isto é para nós?!"

É a primeira vez do Vasco na Birmânia. A primeira vez na Ásia. Eu nem consigo imaginar o turbilhão de emoções e sensações e sentimentos e constrastes que ele deve estar a sentir neste momento.


O comboio avança, dançando nos carris. São nove e um quarto, esperam-nos mais oito horas de viagem - mas o dia está ganho.