20/10/2020

A OPORTUNIDADE FEZ O LADRÃO?

Continuando com as peripécias do assalto deste fim-de-semana:

 

Estava uma pilha de nervos, quando o meu amigo Rodrigo chegou, pouco depois de eu lhe ligar. Trazia uma garrafa de vinho branco mas, sinceramente, só dei por ela muito depois. Tentámos ligar para o meu telefone: estava desligado. Virei a revirei a casa, na vã esperança de o encontrar – mas nada. Tinha mesmo desaparecido. Ainda activei o “find my phone”, mas sem sucesso.

 

“É só um telefone”, “é só um telefone”, dizia a mim próprio ao passar a pente fino a casa, enquanto o Rodrigo me dava uma descompostura por ter confrontado o ladrão, “ele podia estar armado, tiveste sorte, podia ter corrido pior”. E tinha razão.

 

Saímos para a rua, demos uma volta ao quarteirão, espreitámos para dentro de quase todos os caixotes do lixo, por baixo de alguns carros e na zona em redor da minha casa. Nada.

 

De volta ao meu pátio, apercebemo-nos que o ladrão tinha deixado cair um casaco. O que achei estranho, porque ele levava outro na mão. Fui logo verificar se me faltava roupa, mas estava tudo em ordem no quarto, para além das gavetas da mesa de cabeceira escancaradas.

 

Também estava um livro no chão, junto às escadas – o tal que ele deixara cair, no meio da zaragata. E antes de prosseguir com o relato, meu caro seguidor, deixa-me já dizer-te que o livro é a chave de todo o mistério.

 

Mas não te ponhas já a congeminar teorias: porque não, não era um dos meus livros. E o larápio não era um fã desesperado por ser o primeiro a ler o meu livro novo, “Um brinde ao canibal”, o tal a que se refere a campanha de crowdfunding da PPL, aqui; e que ainda estou a escrever. Quase a acabar, mas ainda a escrever.

 

E também não era um fanático à procura de cópias grátis dos meus livros.

 

Nada disso. O ladrão, na minha modesta opinião, era/é um triste qualquer que está a viver na rua, provavelmente por causa desta crise que estamos a passar. O “segundo casaco”, o tal caído no chão, não era mesmo um casaco: era uma espécie de capucho de flanela, com hoodie e capa – como uma protecção extra, para vestir por cima do casaco em noites de frio. E o livro...

 

Permite-me expor a minha teoria, então.

 

O gatuno estava a vaguear pelas ruas da cidade, à noite, quando nos viu a sair pela rua acima, deixando o portão aberto. Provavelmente entrou, à procura de algum abrigo, ou só para ver o que encontrava – e, ao chegar ao pátio e olhar pela janela aberta, viu o telefone em cima do sofá. Nem percebeu que a porta de casa, do outro lado da esquina, estava aberta. Talvez tenha perguntado “está alguém em casa?”, ou talvez não. Mas esgueirou-se pela janela, e ao fazê-lo deve ter pousado o joelho em cima do tal livro, rasgando-o. Entrou, segurou no livro para ele não cair, apanhou o telefone e quando ia a sair outra vez, ouviu-me a fechar o portão e a vir para casa, fugindo para a ponta oposta daquela: o meu quarto. Mais uma vez, nem deve ter dado pela porta aberta. Ou deu, mas teve medo que eu o apanhasse em flagrante. Ou seja, foi para o quarto e eu entrei em casa. Enquanto eu procurava pelo telefone na sala, abriu as gavetas da mesa de cabeceira e, não encontrando nada, esgueirou-se para fora, na esperança de fugir sem eu dar por isso. E nem se lembrou de largar o livro, com o stress. Só que, quando estava a saltar pela janela, eu voltei a sair de casa – e o resto já tu sabes.

 

O Rodrigo voltou para casa às cinco e meia da manhã, depois de acalmarmos um pouco ao sabor do branco fresco que trouxe. Às seis e meia, não conseguindo adormecer, lembrei-me que tinha um telefone fixo em casa. Nunca o usei, nestes quase quatro anos. Liguei para a Polícia, felizmente nunca me esqueci que o número de Lisboa é 21POLICIA. Passaram-me à esquadra mais próxima, que me pediu para esperar à porta, pois não tenho campainha. Esperei vinte minutos e nada. Liguei outra vez. Esperei outros vinte e nada. Liguei outra vez. Ainda comecei a lavar loiça, com medo que os polícias refilassem com o facto de terem estado mais do que cinco pessoas em casa. Que nervos – mas logo parei, rindo de mim próprio, como se eles fossem ligar a isso, numa situação dessas.

 

Chegaram às oito da manhã. Preenchi o que tinha a preencher, descrevi o suspeito e relatei toda a experiência. No fim, um dos polícias explicou-me que tinha omitido a parte dos socos, “porque é melhor assim”. Obrigado. E depois elogiou-me a casa e o pátio, “está muito giro, nem parece que vive na cidade”. Pois é, eu sei – e valorizo tanto este meu cantinho aqui escondido, onde posso estar sempre de porta e janelas abertas.

 

Não vai ser já, este regresso a uma confiança cega. E não sei se voltarei a ter o mesmo à-vontade que antes. Mas não vou ficar refém deste acontecimento, recuso-me a isso. Como tenho explicado a quem me tem enviado mensagens de apoio (e obrigado a todos!), sou muito pragmático quanto ao que aconteceu. Estou aqui há quatro anos e nunca vivi nada que se aproximasse a esta situação. Não vai ser uma combinação de azares e tristezas que vai mudar isto. Pode abanar, pode abalar... mas não me deita abaixo.

 

Podia ter sido pior? Podia.

 

E podia ser ainda pior que isso. Podia estar no lugar do triste desesperado que arriscou muito mais, ao entrar por aquele portão aberto.

19/10/2020

AGARRA QUE É LADRÃO!

São raríssimas as viagens que gostaria de esquecer. Normalmente, por mais atribulada que seja uma aventura, encontro sempre algo de positivo: uma lição, uma surpresa, um pormenor qualquer que alimenta o optimista que há em mim. Mas tenho que admitir que esse não é o caso da peripécia que hoje partilho contigo. A sério: se pudesse, apagava esta memória do meu arquivo de vivências.

 

Então não é que apanhei um ladrão em minha casa?!


Aconteceu na passada sexta-feira. Tinha uma jantarada apalavrada com amigos – mas, com o recente galopar do coron’apocalipse e as medidas instituídas pelo Governo durante a semana, decidimos não sair e combinámos um programa mais calminho, só meia dúzia de nós, em minha casa.

 

O jantar correu como tinha de correr: boa paparoca (modéstia à parte), muita conversa, copos e gargalhadas – e a sensação recorrente de que este poderia ser um dos últimos eventos da temporada, se de repente “isto tudo fechar outra vez”. Ou seja: à medida que as pessoas começaram a ir para casa, os abraços eram especialmente fortes, como se recordassem toda a viagem que são as nossas amizades. E o facto de já estarmos bem bebidos também ajudava, claro.

 

Os últimos convidados saíram às três e pouco. E antes que a narrativa tome outras direcções, deixa-me explicar-te mais ou menos como é a minha casa.

 

A minha casa não é uma casa muito comum. É um apartamento mínimo na cave de um prédio: uma sala e um quarto, apenas, mais a cozinha logo à entrada e uma casa-de-banho minúscula. São, na verdade, três pequenos armazéns adaptados. A porta dá directamente para um pátio afundado, nas traseiras do prédio, rodeado por um muro de mais de cinco metros, e o único acesso possível é através de um portão na parte da frente do prédio, que tem uma espécie de corredor/túnel que atravessa o edifício e vem desembocar numas escadinhas para o tal pátio, onde depois fica a minha casa. Ou seja: nos quase quatro anos que aqui já vivi, nunca entrei no prédio propriamente dito, não faço ideia de como seja o hall, sequer – porque entro sempre pelo portão e pelo túnel. E como sou eu o único a viver ali em baixo, tenho no pátio uns chapéus de sol, mesa e cadeiras, etc. Parece que vivo numa aldeia, estou sempre de porta e janelas abertas. Sempre.

 

Voltando a sexta-feira. Ou sábado, para os mais puristas, visto que passava das três da manhã. As duas últimas pessoas despediram-se, estamos bem bebidos, chamam um Uber e eu acompanho-os à porta. Como não trouxe a chave comigo e estamos à frente do prédio, deixo o portão aberto. A minha zona é muito calma, não se vê ninguém a esta hora.

 

O Uber nunca mais chegava, um dos meus amigos olhava insistentemente para o telefone e o carro parecia estar às voltas aqui perto. Perdido, portanto. Ligámos-lhe, ele não fazia ideia de onde estava, pareceu-nos mais desorientado que nós, eu ainda tentei explicar como vir aqui ter, mas ele não me pareceu querer assim tanto entender – e acabámos por cancelar o carro. Sem problema: ali em cima há uma praça de táxis, ou se quiserem chamam outro Uber mas pedem para vos apanhar ali na Avenida, que é mais central. E acompanhei os meus amigos até essa via principal. Quando lá cheguei, despedi-me e voltei para casa em passo apressado, pois tinha deixado o portão aberto e não tinha trazido nem chaves nem telefone.

 

Foram cinco minutos, no máximo.

 

Entrei e fechei o portão, atravessei o túnel, passei pela janela da sala, curvei a esquina e entrei em casa. Nada de extraordinário. A música ainda estava a tocar, a mesa cheia de copos e alguns pratos. Tinha sobrado alguma comida, especialmente entradas: queijo da serra, presunto, etc. Fui direto ao sofá, pois tinha deixado lá o telefone e queria terminar uma mensagem que estava a escrever, antes deles irem embora. Mas o telefone não estava no sofá.

 

Que estranho. Talvez o tivesse levado comigo, quando eles saíram, e deixei-o na mesa de fora, no pátio. Ou seja: voltei para trás, meia dúzia de passos e estava na porta de casa outra vez, saí... mas em vez de encontrar o telefone na mesa, vejo um vulto a saltar pela janela do meu quarto, do meu lado direito.

 

Só de recordar e escrever isto, sinto uma descarga de adrenalina. Juro. Um arrepio que começa na nuca e se espalha pela espinha abaixo. E parece que me dói o corpo todo. É uma angústia. Mas isto há de passar.

 

Continuando: sim, estava um homem dentro de minha casa, quando eu entrei; e tentou fugir pela janela do meu quarto... ao mesmo tempo que eu saí pela porta. Ficámos frente a frente, praticamente, a olhar um para o outro. E eu sei que pode parecer ridículo, mas a minha primeira reacção, que durou pouco mais que um segundo, foi pensar “mas quem é que não se foi embora”, como se fosse normal um amigo meu estar a saltar pela janela.

 

Mas foi só um segundo – se tanto.

 

Tal como esse instante em que ficámos de olhos fixos nos olhos do outro.

 

Ele com uma expressão de isto-não-é-o-que-parece.

 

Eu como que a dizer como-foste-capaz-de-fazer-tal-coisa.

 

Como se tivesse sido atraiçoado. A sério! E não pelo ladrão em si, mas pelo destino. Porque em quase quatro anos nesta casa, acreditei sempre que vivia no lugar mais calmo e pacífico de Lisboa, como que numa aldeia dentro da cidade, uma espécie de refúgio intocável... deixava janelas abertas quando saía, nunca tranquei a porta... e, este momento... este instante era o desmoronar dessa ilusão – a dentada na maçã.

 

Não sei o que me deu.

 

Um calor que veio do mais fundo de mim, de um lugar escuro alimentado pelas frustrações e medos da vida – e eu sei que não devia, agora sei que ele até podia estar armado, etc e tal... mas, no momento, isso nem me passou pela cabeça. E assim que ele começou a correr, eu saltei para cima dele, derrubando os chapéus de sol que trouxe da Birmânia, e dei-lhe logo dois ou três socos.

 

Eu, que nunca bati em ninguém em toda a minha vida.

 

Ele começou a pedir desculpa, disse que tinha fome – eu só pensava “como é que foste capaz, como é que foste capaz”. Levantou-se e eu levantei-me a seguir, corremos até aos degraus que dão acesso ao túnel, voltei a apanhá-lo e deixou cair um livro. Lembro-me de no momento perguntar-me por que raio me tinha roubado aquele livro e, ao agarrá-lo pelo colarinho, perguntei se ele tinha alguma coisa com ele, “o que é que me roubaste, cabrão”, não sei se lhe dei mais dois ou três murros, nesta fase as coisas estão meio desfocadas, confesso.

 

Não gritei por socorro, não chamei ninguém, não pedi ajuda. Se o tivesse feito, de certeza que alguém me ouvia. Na altura, não me passou pela cabeça. Mas também não sussurrei. Todas estas peripécias, insultos e ameaças foram feitas de viva voz.

 

Enfim: ele lá se soltou e, por momentos, pensei que o melhor era mesmo deixá-lo ir. Senti uma tristeza enorme invadir-me, só me apetecia chorar, tinha o coração a mil e todo o corpo tremia de raiva.

 

Mas eis que me lembrei do telefone. Não tinha encontrado o telefone. E não o tinha escondido, também – por isso, de certeza que ele o tinha levado. Olhei na direção do portão e ele ainda ia a meio do túnel, a correr que nem um cobarde. Senti apoderar-se de mim uma nova vaga de adrenalina e, qual Chuck Norris qual quê, lancei-me pelo túnel adentro e investi com todo o meu peso (ainda bem que a dieta só começa pra semana!) em cima dele, esmagando-o contra as grades do portão.

 

Debatemo-nos um pouco e não sei como conseguiu abrir o portão, mas só me lembro de já estarmos na rua: eu com um pé no portão, para que não se fechasse (deixando-me sem chave, do lado de fora), a mão esquerda agarrada ao colarinho dele, a direita suspensa sobre o seu rosto, a ameaçá-lo com um murro.

 

“Dá-me o telemóvel!”

 

“Eu não tenho nada, juro que não roubei nada!”

 

“Dá-me o telemóvel, caralho!”

 

“Eu juro, eu não tenho nada!”

 

De repente acalmei-me e baixei o braço, tentei serená-lo:

 

“Okay, vamos ter calma, eu não te quero fazer mal... vamos acalmar... eu preciso do telefone, tenho muito trabalho aí, tu vais devolver-me isso e eu vou esquecer que esta noite aconteceu.”

 

“Mas eu não tenho...”

 

“A sério, eu só quero o telefone. Devolve-me e eu nem faço queixa, senão vou ter de chamar a polícia.”

 

E realmente que merda de mundo é este, em que baixar a guarda e ser mais humano é logo interpretado como uma fraqueza... mas a verdade é que, mal me viu mudar a atitude, ele próprio também alterou a dele. Mas para pior.

 

“Eu parto-te a boca toda, se não me largares já. Deixa-me ir embora ou parto-te todo.”

 

E a isto reagi como um vulcão.

 

Como num filme, levantei o punho cerrado e puxei-o pelo colarinho, ficámos com os rostos muito perto um do outro, a minha mão suspensa sobre ele (e nenhum dos dois usava máscara, mas na altura nem pensei nisso, enfim... nos tempos que correm...), e rosnei-lhe, meio a rir, com toda a raiva acumulada:

 

“Meu cabrão, antes de tu me tentares fazer seja o que for, eu já te parti todo. DÁ-ME JÁ O TELEFONE!”

 

E não sei se voltei a bater nele ou não, sinceramente tanto acho que sim como penso que não, mas comecei a revistá-lo com a mão direita, enquanto o segurava com a esquerda. Ele debateu-se, mas era mais pequeno que eu e não tinha os deuses a dar-lhe força extra. Apalpei-lhe os bolsos da frente e os de trás, e à volta da cintura, e num casaco que ele insistia em agarrar. Aliás: ele nunca largou esse casaco, daí também ser mais difícil reagir ao meu ataque.

 

Foi então que se conseguiu soltar – e fugir. Acho que foi quando eu estava a apalpar o tal casaco. Mas não senti nada. Não sei se tinha o telefone nos pés, ou nos tomates, ou enfiado sabe-se lá onde... mas a verdade é que não senti o telefone nenhum. E quando ele desatou a correr pela rua abaixo, sinceramente já não tive mais energias. Estava exausto, mentalmente destruído, fisicamente acabado.

 

Voltei para casa a correr e procurei freneticamente pelo telefone: pode ser que não o tenha levado, pode ser que o tenha deixado cair, pode ser que o tenha atirado para algum lado. Que desespero.

 

Lancei-me ao computador – por sorte, não o levou – e tentei ligar por facetime aos meus amigos, o tal casal que deixara na avenida. Nenhum atendeu. Talvez o Messenger funcione...

 

“Rodrigo, acabei de ser assaltado!”

 

“WTF?!”

 

“Tinha um gajo em casa, quando voltei!”

 

“Vou já para aí!”

 

Resumindo: fiquei sem telefone. E sem confiança. Já passaram mais de quarenta e oito horas e, por muito que não me sinta profundamente traumatizado, isto ainda está muito vivo. Ainda fico nervoso só de recordar. E agora tranco sempre portas e janelas, mais o portão da rua. Quando apago as luzes, à noite, antes de me deitar, tenho a sensação de ver vultos junto às janelas, do lado de dentro da casa. Mas sei que é porque isto tudo ainda está muito fresco. Vai passar.

 

Por agora, acho que é tudo. Senti que tinha de partilhar esta autêntica, horrível viagem que vivi no fim-de-semana. Amanhã conto como se desenvolveu o resto da noite (só consegui ir para a cama às dez da manhã), e também a minha teoria acerca do que aconteceu.

 

E, desde já, fica explicado o motivo pelo qual, nos próximos dias, não vou estar muito activo online. Sem telefone, fico muito limitado.

 

Numa última nota: faltam duas semanas para terminar o crowdfunding. A campanha está bem lançada, já reuni metade do que preciso para financiar o livro novo. Passem por lá e façam a vossa contribuição. Se todos participarem com um pouco, vamos conseguir realizar muito. E até recebem livros autografados, passeios a Sintra comigo... melhor não podia ser ;)

 

Aliás: se forem generosos, até pode ser que passe o valor estipulado e, com o dinheiro extra que receber, consigo comprar um telefone novo. Até porque, se assim não for, só mesmo se for emprestado.

 

Abraços, usem máscara, mantenham a distância e não se armem em heróis, que isto parece muito emocionante mas foi estupidez pura, eu não devia ter reagido assim. Tive sorte.

12/05/2020

PEÇA A PEÇA, ENCHE O VIAJANTE O OLHO

Este fim-de-semana recuperei um passatempo de adolescente, quando ainda vivia com os meus avós: fiz um puzzle.

Já o tinha comprado há quase três anos, quando me mudei para esta casa, mas ficou guardado à espera de "um dia destes" e acabei por nunca mais tocar na caixa. Até à semana passada.


Mais uma consequência da pandemia, diga-se de boa justiça. Há duas semanas, a minha prima Mafalda partilhou no grupo da família uma foto de um puzzle meio-feito, e desencadeou entre primos e tios uma onda de nostalgia, pois a minha avó sempre foi uma muito-entusiasmada fã de puzzles. Lembro-me, desde pequeno, de haver sempre algum a meio, as peças espalhadas num tabuleiro enorme que ficava pousado na mesa de jantar. Eu ia lá às escondidas, quando a Nana não estava a ver (pensava eu) e tentava encaixar o máximo de peças possíveis, antes que fosse "apanhado".

Uma semana depois da partilha da minha prima, a minha amiga Alexandra desabafou, no grupo da última viagem à Índia, que precisava de acabar depressa o puzzle que tinha começado há uns dias, para desimpedir uma mesa que precisava para já-não-me-lembro-o-quê.

A verdade é que estes dois episódios despoletaram em mim uma vontade enorme de voltar a fazer um puzzle - e do estímulo à acção foi um instante. Que bem que me soube desligar do mundo, aliás: porque é isso mesmo que acontece quando se faz um puzzle, desliga-se do mundo, das preocupações e pseudo-urgências... e é como meditar. É uma viagem.

Este puzzle, por exemplo: uma mulher indiana sentada no chão, de costas para o fotógrafo, a olhar para uma manada de camelos. Durante o tempo dedicado a reconstruir a imagem, viajei nos detalhes da fotografia de Jonathan Kingston, fui buscar referências das minhas viagens à Índia, lembrei-me de aventuras várias (alguns que estão nos livros, outras nem por isso).


Mas mais interessante do que reconhecer esta viagem de agora, foi aperceber-me que até os puzzles que completei, em casa da minha avó, fizeram parte da minha construção enquanto viajante. Porque, agora sei, antes de me ter aventurado por esse mundo fora, eu já tinha visitado a Mesquita Azul, em Istambul; a Praça de Espanha, em Roma; o Cristo Redentor, no Rio de Janeiro; e a Djemaa El Fna, em Marraquexe. Eu construí o Taj Mahal e a Muralha da China, peça a peça. Explorei o Grand Canyon, a Capadócia e o Evereste. Viajei de long tail boat tailandês, fiz safaris em África e mergulhei no Mar Vermelho.

Não tenho dúvidas que todas estes cenários e monumentos, revelados à medida que encaixava as peças umas nas outras, estimularam a minha curiosidade por este colorido e mágico mundo que agora nos parece tão longínquo. Mas que há de voltar a estar ao nosso alcance.


07/05/2020

[VM80] ANGKOR

VOLTA AO MUNDO EM 80 VOLTAS

#2

Para surpresa de maior parte das pessoas que visitam pela primeira vez o Camboja, Angkor não é só um templo muito bonito que aparece em tudo-o-que-é-postais, canecas, t-shirts e souvenirs.

Esse dos postais chama-se Angkor Wat e é, merecidamente, a "estrela da companhia": um templo com quase mil anos que dizem ser o maior monumento religioso do mundo - e que é tão unanimemente espectacular que tanto consegue arrancar "uaus" a historiadores, filósofos e curiosos como à mais culturalmente insensível das Kardashians.









Mas Angkor - ou, para ser mais exacto, o Parque Arqueológico de Angkor -, é muito mais do que só Angkor Wat. É um dos maiores e mais importantes lugares arqueológicos do mundo, com cerca de mil templos (de quase-banais montes de pedras a estruturas incríveis como o tal dos postais) espalhados por 400 quilómetros quadrados, onde há mais de mil anos nasceu o Império Khmer, um dos mais importantes, evoluídos e complexos que a História teve a sorte de testemunhar.

Ao longo dos séculos, passaram por Angkor dinastias e invasores vários, religiões e tradições, grandes eventos e negligência. Desde que foi "redescoberta", primeiro por arqueólogos europeus e depois por turistas de todo o mundo, a mesma área que foi o centro de um vasto Império é agora a maior atração de um país pobre e sofrido, mas sorridente como poucos.

E se há mil anos viviam aqui quase um milhão de pessoas, hoje em dia Angkor é visitado por mais de dois milhões de turistas, anualmente.










Mais do que pela dimensão e números, o valor deste lugar reside na importância arqueológica das ruínas de templos, pontes, palácios, universidades, hospitais e hospedarias; no detalhe absurdo, que roça a perfeição, da arquitectura e da arte khmer, especialmente nos templos; e na complexidade do planeamento urbano, com destaque para as estruturas hidráulicas como canais e barragens, principalmente considerando o contexto geográfico, histórico e social em que foram construídos.

Angkor desperta o Indiana Jones que temos dentro de cada um de nós. E se cada pedra conta uma história, cada raiz é uma provocação da natureza ao homem, a reclamar o que é seu de direito, a mostrar quem na verdade manda, no longo prazo.









O Parque Arqueológico fica perto de Siem Reap, a cidade que serve de base aos milhões de turistas que visitam Angkor todos os anos; e as ruínas espalham-se numa área que vai desde o Grande Lago (Tonle Sap) até às Kullen Hills.

Além do one-of-a-kind Angkor Wat, destacam-se os portões monumentais de Angkor Thom, a "grande cidade" onde se pode visitar o Bayon e o Baphuon, o Terraço dos Elefantes, o Trono do Rei Leproso e as ruínas do Palácio Real, entre outros. Mais adiante, o Preah Khan é um dos meus templos preferidos, diz-se que foi também uma universidade; e o Ta Prohm é um dos que melhor preserva o delicado equilíbrio entre raízes e pedra, natureza e homem... foi, inclusive, cenário do filme "Tomb Raider", com a Angelina Jolie a fazer de Lara Croft.














Mas há mais: há muito, muito mais.

E se nesta fase me posso dar ao luxo de te dar um conselho, então ouve com atenção, que só vou dizer isto uma vez: vai a Angkor, assim que puderes. Reserva pelo menos três dias, leva um guia pelo menos num - e deixa que as pedras se transformem em História e em histórias. Acredita, porque já lá fui umas cinquenta vezes, entre grupos da Nomad e visitas particulares, e de cada vez que lá volto descubro novos cantos e recantos, segredos e curiosidades.

E se quiseres o tuktuk mais cool do Universo, liga ao Batman e diz que vens da minha parte ;)

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09/04/2020

VARANASI, SÉC. XIX

A propósito da frase de Mark Twain que mencionei no post de ontem, e que considero perfeitamente actual, resolvi fazer uma pesquisa no google e seleccionar algumas fotos antigas de Varanasi.

Assim, e sem muito mais conversa, deixo-te quinze fotos tiradas em Varanasi há mais de cem anos. Fora duas ou três que são do início do séc. XX, todas as outras foram tiradas ao longo da segunda metade do séc. XIX.

Deixa-me que te diga: fora a quantidade de plástico e o inevitável telemóvel, não há assim tantas diferenças entre essa Varanasi e aquela que eu conheço: