Sentado à entrada do meu ger, olhei para a céu... e estava
estrelado. Não vi o Deus Menino em palhas deitado, mas vi a Via Láctea. Há
muito tempo que não via a Via Láctea. Aliás: há muito tempo que não via um céu
assim - se é que alguma vez vi um céu assim.
Tentei tirar umas fotografias ao firmamento - e talvez conseguisse
melhores resultados se fosse mais persistente - mas não consegui grande coisa, estava
sem paciência, queria viver o momento.
O primeiro dia no Parque Nacional de
Terelj tinha sido "um dia em cheio". Tem piada: numa viagem como
esta, em que a estrela é o comboio, são as paragens que fazem a diferença.
Foi um dia em cheio, como estava a dizer. Chegámos de manhã
ao Parque, depois de duas ou três horas numa estrada que era mais buracos que
estrada. O dia começou chuvoso, depois cinzento e foi melhorando aos poucos,
até que ao fim da tarde tivemos direito a um pôr-do-sol de cores berrantes e
céu limpo.
E agora as estrelas cadentes, os satélites a passar, a Via Láctea,
os dedos apontados a supostas constelações e planetas, aquela é a Ursa Maior, é
a Cassiopeia, deve ser Marte, deve ser Vénus...
Tive sorte com o grupo. Eu e mais nove:
- um casal de holandeses muito simpáticos, não sei porquê
faziam-me lembrar uns amigos portugueses e passámos longas horas à conversa -
alguns dias mais tarde, e a muitos quilómetros daqui, os nossos caminhos haviam de
se cruzar outra vez, por pura coincidência, mas disso falaremos mais tarde;
- um miúdo japonês com ar que quem saiu de casa pela
primeira vez, parecia aterrorizado sabe-se lá com quê, chegou mudo e foi embora
calado, sempre muito tenso, sorriso porque-tem-de-ser, só ia ficar uma noite
porque estava com pressa para ir embora;
- um coreano de sessenta que mais parecia quarenta, muito
cromo, equipado das unhas dos pés à ponta dos cabelos, passava o tempo a mudar
de roupa conforme a ocasião, a limpar o equipamento, a arrumar, a organizar...
um bocadinho, só um bocadinho obsessivo ;) e estava preparado para tudo -
aposto que se o mundo acabasse amanhã, ele conseguia sobreviver mais um dia;
- quatro suecos completamente loucos, dois rapazes e duas
raparigas - eles músicos, elas enfermeiras... enfim, os nossos ABBA privados.
Cada momento com eles dava azo a novos trocadilhos, a certa altura a piada do
grupo era falar dos costumes estranhos da Suécia, desde comerem t-shirts ao
pequeno-almoço, dançarem costas com costas e de braços entrelaçados, descerem
sempre as montanhas de costas, terem um desejo mórbido de matar árvores;
- uma espanhola também impecável, tímida mas conversadora, com
quem passei imenso tempo a praticar o meu (fraco) castelhano;
- um americano insuportável - quem diria, ahah - que quase não saiu do ger, sempre a ver filmes e séries que tinha descarregado em
Ulaanbaatar; dizia que estava farto de viajar e só queria ir para casa, não
tinha paciência para nada, parecia sempre enfadado, a única vez que o vi mais
entusiasmado foi quando alguém falou sobre política e era obama-para-aqui,
obama-para-ali, nem percebi se bem ou mal, não me interessava, eu nestas
alturas não sei falar inglês, fico muito tímido, muito pequenino, quase
invisível... e vou para a porta do ger, ver as estrelas.
Já agora, para quem não sabe: um ger é uma espécie de tenda
que é a habitação tradicional dos nómadas da Mongólia. Tem forma redonda e é
normalmente construído com madeira e tecidos - e a família inteira vive lá
dentro.
No nosso "acampamento" havia 4 gers: um da família anfitriã,
os outros para os convidados. Enquanto os nossos tinham apenas camas e uma
salamandra no meio, o ger familar tinha um enorme plasma ao pé da cama maior,
tinha frigorífico e um guarda-roupa todo pintado às flores.
Mas como estava a dizer antes de apresentar o grupo: foi um
dia em cheio. Assim que nos instalámos nos gers, fomos avisados da hora a que
seria servido o almoço - e tínhamos a manhã livre.
Fomos então dar uma volta a pé (todos menos o japonês, que
foi andar de cavalo; e o americano, que não lhe apetecia caminhar e ficou a
dormir), e apesar do tempo estar cinzento e ameaçar chuva, foi um passeio
agradável, em que aproveitámos para nos conhecermos melhor uns aos outros. Um
dos cães da família acompanhou-nos o tempo todo, e quando voltámos ao
"acampamento", o almoço estava pronto a ser servido.
O tempo começou a abrir, depois de comermos.
Passámos umas boas horas a ouvir o silêncio e a conversar, a
ver acontecer o pouco que acontecia, a fugir das abelhas, a rir das piadas
dos suecos. Que bem que soube.
Jogámos à bola com os miúdos, ajudámos a preparar os cavalos
para o passeio de fim de tarde, cortámos lenha, fizémos um "quase-nada"
que foi como se tivessemos feito "quase-tudo".
E às cinco da tarde, já com o céu limpo e a paisagem a
gritar "vem aí o pôr-do-sol!", fomos então dar uma volta a cavalo.
Mas como este post já vai longo, deixo a descrição da cavalgada para logo à tarde. ;)
P.S.: Algumas das fotos partilhadas não são minhas. A do miúdo a cavalgar, por exemplo. Assim sendo, quero agradecer ao Robyn, o holandês com quem fiz uma dupla inacreditavelmente eficaz no jogo de futebol, por me deixar utilizá-las no blog.
Dank u wel, Robyn!