28/05/2015

TERRORISTAS... NÓS?! (3)

"Quero ver os documentos das motas", anuncia o comissário da polícia com o tique no olho direito. É-me difícil olhar directamente para ele, com a ansiedade toda acumulada.

Levantamo-nos e saímos do gabinete escoltados por dois polícias, caminhamos até às motas e começamos a tirar os elásticos que prendem as mochilas.

"Agora é que estamos lixados", diz o Luís enquanto procura pelos papéis.

"Não digas isso, temos tudo em ordem."

"Mas os meus documentos não são tão convincentes quanto os teus. Se ele quiser embirrar, pode pegar em qualquer coisa."

Ah: e nenhum de nós tem carta.


PARTE 3
TUDO ESTÁ BEM...

..quando acaba bem, diz o ditado. Mas para os indianos este ditado não se fica por aqui. Na Índia, acrescenta-se normalmente a frase "e se não está bem, é porque ainda não acabou".

E este episódio ainda não acabou, claramente. Voltamos a entrar no gabinete com ar condicionado, onde estamos há dez minutos. Já repetimos a lenga-lenga que foi o argumento desta tarde. Como fomos ali parar, porque estamos nesta estrada e não noutra maior, quem somos e o que fazemos. As mesmas perguntas, as mesmas respostas. Mostrámos os passaportes, o comissário tirou fotos à página de identificação, mais à página do visto - e a nós. Smile! Só falta tirar uma selfie. E agora os documentos das motas. Quer perceber se são mesmo nossas, se a nossa viagem é real. Começo por dar-lhe o livrete, depois o seguro, a declaração de venda, a autorização da circulação, o certificado de poluição - a certa altura tem tantos papéis à volta... que está nitidamente "aos papéis". Tenta manter uma aparente confiança que desmascaramos desde o início. Está no papo, pensamos.

Mas há uma preocupação que me atormenta, e não é o ficarmos ali retidos ou não. Tenho a certeza que, mais cedo ou mais tarde, eles vão acabar por nos deixar ir embora. Somos inocentes e já deu para perceber que eles sabem disso. Mas a insistência em verificar o visto, e agora em registá-lo com a entidade da emigração, ou qualquer coisa do género... a minha maior preocupação, neste momento, é que no futuro, pró ano ou noutra altura qualquer, quando for fazer o visto para nova visita à Índia, esteja alguma coisa registada que me possa trazer problemas. E se, depois deste mal-entendido, nunca mais me dão o visto?

Neste momento, o nosso objectivo é não registar coisa nenhuma.

O comissário viu os papéis e nem pediu os do Luís, felizmente. Entretanto chegou o chai e ele pediu que o tomássemos com calma, e por momentos parou o interrogatório. Depois quis saber o itinerário. Explicámos que começámos no Kerala, enumerámos cada paragem, onde dormimos, o que fizemos. Até fui buscar o computador à mota, sempre escoltado por um polícia, não fosse sacar de uma bazuca ou uma granada. Sabe-se lá.

O comissário insiste no registo dos nossos passportes. Faz uns telefonemas que não dão em nada, mas não cede. Diz que temos de ir a Nellore, nem-sei-bem-onde, e que temos de registar os vistos e que depois não teremos mais problemas, porque "eles" avisam-se uns aos outros a dizer que estamos a viajar pela Índia... uma treta! Não fazia sentido nenhum, obviamente que estava a insistir nisto por teimosia, e por desconhecimento de como as coisas funcionam. Nunca, em quase-quinze anos de visitas à Índia, tive de registar o visto, fosse onde fosse.

Calma, rapazes. Isto resolve-se.

Explicámos-lhe que ia ser um transtorno enorme, ir dali a Nellore, a esta hora; e que depois ainda íamos fazer o percurso até à praia... que estávamos desde as seis na estrada, sujos e com fome e com sede - a mesma conversa que tivemos antes com os guardas da cancela.

"Ok... mas podem ir lá amanhã de manhã."

What? Ok: este vai ceder.

Por esta altura, tínhamos recuperado a confiança. Ao ponto de, enquanto ele falava ao telefone, nós conversávamos em português à vontade, a delinear estratégias. Mas não vos vou chatear mais com isso. Porque estratégias à parte, o importante é que, poucos minutos depois, deu-se uma reviravolta qualquer e já não era preciso registar coisa nenhuma.

"Sorry for the inconvenient", foram as palavras.

A sério? Mas podemos ir embora mesmo? Não precisamos de fazer mais nada - é só sair daqui, montarmo-nos nas motas e arrancar?

"Lembram-se do caminho? Precisam de escolta? Se quiserem posso pedir a alguém para vos acompanhar, penso que uma das motas está sem gasolina..."

Não é preciso, amigo. Nós lembramo-nos bem. E com um aperto de mão e toma lá os documentos de volta, saímos do gabinete com ar condicionado e preparámo-nos para ir embora. A atmosfera ficara tão descontraída que ainda voltámos para tirar uma foto com o senhor - mas já estava ocupado com outras pessoas, a resolver seja lá que problemas. Demos ao kick e saímos dali sem olhar para trás, com dez ou quinze ou vinte pessoas a olhar para nós, estupefactos por verem ali estrangeiros, ainda por cima com aquele aparato todo de vespas e bagagem.

Atravessámos novamente as fábricas e os pântanos, esta existência triste de Mad Max - pela primeira vez, com um sorriso de orelha a orelha. Apesar de ter tirado fotografias aos passaportes, duvido que o senhor vá fazer alguma coisa com aquilo. Estamos confiantes que nada disto afecte viagens futuras.

Não sabemos para onde ir, mas não nos atrevemos a parar até estar longe dali. Passámos uma cancela e ninguém nos disse nada, saímos da periferia de fábricas e fumo, vimos a cancela original onde tudo começou e nem nos aproximámos. Só parámos as motas na aldeia à frente, dois ou três quilómetros depois. Então pudemos finalmente rir e respirar fundo. Que experiência, esta!

Foi uma tarde extenuante, temos as energias completamente em baixo e agora só queremos chegar à praia, encontrar um hotel, comer e dormir. O sol já está muito baixo. O GPS mostra-nos por onde ir.

Tudo está bem quando acaba bem?

Isso queríamos nós.

Podemos estar finalmente "safos" do interrogatório e das suspeitas de espionagem industrial, mas ainda não acabaram as peripécias deste longo, cansativo e muito intenso dia. Mas por uma questão de organização de ideias... vou deixar esta viagem final para outro post. Já conversamos.

2 comentários:

Clara Amorim disse...

Xiiiiiiiiiiii....!
Hoje vou dar uma volta pela noite dentro!!! Com tanto que ler (atrasado!!!) :)

Agostinho Mendes disse...

Está tudo bem quando acaba bem :) Fez-me lembrar a noite em que estive preso há uns anos na Bielorrússia. São experiências fazem parte das viagens e ainda bem que assim é…