12/05/2015

À PROCURA DAS HIJRAS

Já nem me lembro a que propósito apareceu esta ideia. Quando vim com o Luís para Bombaim, o objectivo principal era vir ter com o Inácio Rozeira e trocar ideias sobre a viagem de mota na Índia. Ele estava cá com um grupo da Nomad, podíamos ir dar umas voltas com eles e assim que se fossem embora, passávamos dois dias só a discutir a Índia.

Quase nem falámos de motas, para dizer a verdade. O tema esteve sempre presente, claro: trocámos algumas impressões e dicas - mas o facto é que as vespas foram mais paisagem que protagonistas, nos últimos dias.

Praticamente sem nos apercebermos, lançámo-nos numa redescoberta da cidade. Eu e o Inácio já aqui estivemos dezenas de vezes. O Luís também não é novo por estas bandas. Mas as circunstâncias das voltas que demos foram acrescentando uma intensidade cada vez maior - e ontem, quando saímos do quarto, saímos com o objectivo de ir à procura de hijras.

O Inácio tinha visto várias a pedir esmolas nos semáforos da Grant Road. Perguntei ao meu "gang" de cá e todos me disseram para ir a Grant Road. O Luís também indagou com uma amiga e ela mandou-o ir para Grant Road.

Ou seja: fomos para a Grant Road.

Estávamos perto da maravilhosa Victoria Station e no mapa deu a sensação que não era assim tão longe, a Grant Road. Fomos avançando por esta e aquela rua, seguindo as instruções de quem nos apontava, vão-por-aqui, vão-por-ali, e o calor a manifestar-se na cor das nossas t-shirts, no ritmo das nossas passadas.

Demorámos duas horas para chegar à Grant Road, já num estado de se-eu-soubesse-que-era-tão-longe.

Não vimos hijras nas ruas. Liguei a uma amiga a pedir novas orientações e ela mandou-me perguntar pelo "Kamatipura" - o red light district. Os dedos começaram aos poucos a apontar na direcção de ruas mais pequenas. Saímos da estrada principal para o meio do caos, chão e paredes e o ar ainda mais sujo que antes. Que calor. Vira à direita e sempre em frente, vira à esquerda e volta atrás, parecia que nunca mais íamos lá chegar quando decidimos parar para recuperar energias. Comprámos umas bananas, bebemos um refrigerante... e durante este processo o Inácio conseguiu algo precioso: o dono de uma loja de fotocópias escreveu num papel uma referência - Siddarth Nagar - e, em hindi, as palavras "hijra community".

A partir daqui, foi uma questão de minutos. Chegámos finalmente ao lugar onde queríamos ir. Um prédio imundo e velho, a fachada feita de varandas viradas para a rua, a roupa pendurada era a única lembrança de cor e vida. Um postal triste, sem esperança nem passado nem presente. Não podia ser mais deprimente.

Apercebemo-nos que não tínhamos um guião. Não tínhamos uma história. Um plano. Uma ideia. Queríamos ver as hijras, falar com elas, conhecer um pouco mais das suas histórias, perceber o fenómeno, fotografá-las e desenhá-las. Mas não tínhamos uma desculpa, sequer.

Como se estivessem à nossa espera, do outro lado da rua havia três cadeiras de plástico. Sentámo-nos. A respirar fundo. A fumar um cigarro. A absorver a realidade à nossa volta e o potencial daquilo que nos esperava. De tudo o que podia acontecer - ou não.

Levantámo-nos ao mesmo tempo. Vamos lá.

Atravessámos a estrada e entrámos por um corredor cheio de lixo no chão, as paredes cuspidas com betel, sujas de fumo e histórias, os degraus a ranger quando nos lançámos para o primeiro andar.

Não fazíamos ideia para onde íamos.

"Somos estudantes de arte", disse eu ainda a meio das escadas. "Somos estudantes de arte e ficámos curiosos com a questão do terceiro sexo na Índia, queremos falar com as hijras, desenhá-las, para fazer um projecto de arte."

E ao virar a primeira esquina damos de caras com uma. Que não teria ficado mais surpreendida se fossemos a Madre Teresa de Calcutá ou os Beatles.

(continua no próximo post)

4 comentários:

Madalena Lourinho disse...

Rápido.... o próximo post?... Mal posso esperar!

Agostinho Mendes disse...

Muito interessante Jorge! Quando estive pela última vez em Mumbai, para além de fotografar a favela de Dharavi, queria também ter passado algum tempo com Hijras. Como a sorte mandou que o meu primeiro projecto consumisse quase todos os dias que estive na cidade, acabei por só dispor de um dia para o segundo. Resultado: não consegui encontrar nenhum. Fico impacientemente à espera do próximo episódio ;)

Clara Amorim disse...

Ficamos, claro! Mas o Jorge tem sempre este pequeno prazer em nos fazer sofrer...! ;)

O depressivo em recuperação disse...

Hijra se escreve no feminino.