06/09/2014

UMA NOITE NA ESTRADA

Passa do lado de fora a paisagem escura, iluminada apenas pela lua, a quatro ou cinco dias de estar cheia, e pelos faróis do autocarro onde viajo. Parti de Denizli às dez da noite, como previsto. O destino: Goreme, no coração da Capadócia, onde deveríamos chegar às oito da manhã.

Estávamos - eu e o grupo da Nomad que me acompanha - prontos para uma noite santa, depois de um dia inteiro a passear nas varandas de cálcio em Pamukkale; bem como nas ruínas romanas de Hierapolis, mesmo por cima dessa paisagem tão branca que parece neve (mas não é).

Mal cheguei ao meu lugar, percebi que esta ia ser uma daquelas viagens que merece ser recordada. Não necessariamente pelas melhores razões. Ou pelas piores. Apenas pelo "boneco" da coisa.

Sentados mesmo ao pé de mim, nos dois lugares imediatamente atrás do meu, e nos outros dois do lado oposto do corredor, estavam quatro elementos da mesma família, pai mãe filho filha. O pai parecia que vinha anestesiado, sempre a olhar para o infinito e com uma ligadura á volta da cabeça que parecia uma daquelas fitas de desporto dos anos 80, mas em branco. As crianças, de dois e quatro anos, prometiam uma noite de birras e correrias... mas não sei se a mãe as sedou ou de que estranhos truques se fez valer, porque pouco depois de arrancarmos, acalmaram. Nesta paisagem tudo aparentemente pouco digno de nota, não fosse o stress da mãe. Na primeira hora de viagem não parou de chamar o assistente de bordo - sim, há nos autocarros turcos um assistente de bordo - a refilar com tudo e mais alguma coisa, mandando recados que o rapaz levava ao driver, para depois voltar com a resposta. Não consegui entender o que tanto a irritava, mas a verdade é que parecia indignada com qualquer coisa, ainda pensei que teria sido obrigada a viajar com as crianças ao colo para dar lugar a passageiros extra, mas nada disso. Os miúdos tinham, cada um, o seu lugar.

O assistente de bordo, por sua vez, era outro filme. Meio-totó, passou a noite a cumprir tarefas incompreensíveis a olho nu. Desde usar uma luva de plástico na mão direita para servir os copos de plástico com a mão esquerda (com os dedos dentro dos copos), a demorar-se meia hora a preparar o carrinho com os snacks e as bebidas, para depois servir apenas três ou quatro filas e "fechar a loja", ou então a dar um telefone a duas pessoas do meu grupo, acordando-as do seu sono conseguido a custo - mas um telefone que não era deles, e que acabou devolvido ao próprio assistente, sem que ele tentasse saber de quem era realmente o telefone. Enfim, o rapaz era muito estranho, "fazia caras" quando o chamavam, tanto sorria imenso como soprava balões.

Mas voltando à família sentada atrás de mim: era uma família meio-ganzada, meio-chanfrada. Deram trabalho a quem trabalha, seja lá como for que trabalha, chatearam q.b. mas depois calaram-se e quase não se deu por eles até saírem, às seis da manhã.

E que bom que foi, quando saíram. Porque conquistei imediatamente dois dos seus lugares. Mas dessa corajosa movimentação falamos daqui-a-nada. Voltemos, por algumas linhas, ao momento da partida.

Acabei de entrar no autocarro. O grupo sentou-se nos lugares designados, e eu no meu. Sentado à janela, no lugar mesmo ao meu lado, viajava um velhote a dormir. Mas estaria mesmo a dormir? O senhor não se mexia, parecia já falecido. E o pior é que ocupava 110% do seu lugar - ou seja, 10% do meu. Não é muito, eu sei - mas é aquele bocadinho que uma pessoa não apetece chatear, para não ser "chatinho", mas que nos obriga a encolher um-tanto-ou-quanto, para depois tentar conquistar aos poucos aquilo que é nosso por direito, à medida que ficamos impacientes com o ligeiro desconforto.

O autocarro partiu, Turquia fora, pela noite dentro.

O meu lugar era incrivelmente curto, não só pelos 10% que me faltavam no lado direito, mas porque o banco à minha frente estava muito perto. Muito mesmo. Joelhos encostados ao banco da frente. Como na Iberia.

Ao fim de quarenta minutos parámos e, ao sair para tomar ar, apercebi-me que havia lugares estupidamente largos, outros mais "normais", alguns mais apertados. Quem desenhou o autocarro, ou quem o montou, esqueceu-se de uniformizar a distância entre bancos - e assim era uma questão de sorte (ou azar, no meu caso) o espaço que cada um tinha para as pernas.

Sabendo isto, fui a sofrer o resto da viagem.

Dormi pouco - e o pouco que dormi foi sendo interrompido pelas paragens que o autocarro fazia, ou porque as luzes acendiam para isto-ou-aquilo... ou porque, finalmente, às seis da manhã, a família ganzada-stressada saiu. E eu saltei de um banco para o outro. Que maravilha. E depois dormi a melhor hora e meia de sono, nesta noite.

Mas voltando ao senhor dos 110%, sentado a meu lado.

Por momentos especulou-se acerca do estado do homem. Estaria morto ou vivo? Ou algures in between? É que não mexia uma palha. Mas rapidamente me apercebi que o senhor estava vivo. Bem vivo - mas não muito famoso no que respeita ao intestino, derivado ao cheiro. ;)

A sério. Aquele momento em que, no escuro de uma viagem nocturna sentes o velhote ao teu lado a mexer-se, só alguns milímetros, muito ligeiramente... e depois um calorzinho no ar, acompanhado do cheiro de um pei... o quê?!

Sim: uma bufa.

E alguns minutos depois: outra.

E mais outra.

E mais vale sacar do tiger balm da mochila, aplicar um bocadinho debaixo do nariz e deixar actuar.

Dormi - ou tentei dormir - a noite toda virado para o corredor. E assim se justifica o facto de ter saltado do meu lugar para os outros, mal saiu a família ganzada/stressada.

2 comentários:

Lv disse...

Lendormim, o melhor remédio para noites passadas em autocarros, não que te livrasses de acordar com o "cheirinho", mas o resto da noite passavas tranquilo sem problemas com os 10% menos do lugar :)

Clara Amorim disse...

Há noites e noites...! ;)