"Você conhece Paris?"
"Há uma ruazinha, em Paris, chamada Rua dos Passarinhos
Pequenos. É uma rua com muita prostituição. E aí, todas as prostitutas se
chamam Michel."
O Michel é um velhote que estava sentado na Avenida São
João, numa cadeira encostada à parede, e que meteu conversa com o Inácio,
segundos antes de cair uma chuvada monumental.
Como eu e a Leninha estávamos mais à frente, nem demos por
nada. Mas assim que começou a chover, fomos ter com eles - e enquanto bebíamos
um "suco" de laranja, passámos uma meia hora deliciosa à conversa com
este carioca que depois de viver 49 anos no Rio e viajar por 18 países, agora vive
em São Paulo.
"Aqui se mata para ver de que lado cai," e
conta-nos como já assistiu a 17 homicídios, "aqui, à luz do dia," na
Avenida de São João. A mesma cantada com tanto carinho por Caetano Veloso.
Aliás: só estamos nesta avenida porque eu insisti em tirar
uma foto do cruzamento com a Ipiranga. Não que tivesse especial curiosidade em
conhecer o lugar - sinceramente não criei muitas fantasias sobre este
cruzamento - mas queria fazer a foto.
Alguma
coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João
Não sei se hoje o Caetano ia sentir a mesma coisa ao cruzar
este lugar. Sex shops em cada esquina, fachadas todas grafitadas, gente com ar
de quem nem sabe que está ali... é um lugar muito pouco poético.
Mas deixem-me enquadrar melhor esta situação: um dia depois
de eu aterrar em São Paulo, chegou o Inácio e a Leninha. Eles também vão
arrancar para uma aventura na América do S... não, espera lá, Jorge. Diz as
coisas como devem ser ditas: eles vão arrancar para "a" aventura na
América do Sul. Um ano numa pão-de-forma... que inveja! E eu aqui todo vaidoso
com os meus três meses de transportes.
Mas invejas à parte:
Combinámos passar um ou dois dias juntos na cidade, no
arranque de ambas as viagens, enquanto eles procuravam a pão-de-forma e eu
esperava pelo meu amigo Bunty, que continua retido em Delhi, à espera que lhe
entreguem o passaporte.
Lembro-me da primeira vez que nos encontrámos no
estrangeiro: foi em Khajuraho, na Índia - e passámos uma tarde inteira à
conversa, sentados à mesa do almoço... até à noite.
Desta vez foi mais ou menos a mesma coisa. Um dia inteiro à
conversa - mas em movimento. E não foi pouco. Contando com o que fiz a pé, de
casa ao ponto de encontro, fiz neste 4º dia de viagem mais de 20km a pé.
Tinhamos combinado encontrar-nos na esquina da Avenida
Paulista com a Consolação, dar uma volta até ao centro - o objectivo principal
era almoçar no Mercadão.
E assim foi.
Como dois dias antes, fui a pé do Itaím até à Paulista.
Tomámos o pequeno-almoço juntos e descemos a Consolação, depois a Ipiranga,
tirámos a foto no cruzamento com a São João, conhecemos o velhote Michel
enquanto o céu desabava sobre a cidade. E quando começou a melhorar, retomámos
caminho por entre prédios altos e grafittis gordos, até ao centro velho - e
chegar aqui foi como entrar noutra cidade. Noutro país. Ruas mais apertadas e
coloridas, o skyline mais baixo, prédios mais antigos - e gente. Tanta gente na
rua.
Assim que avistámos o Mercadão, seguimos directos para a
banca do Mané. O grande objectivo deste passeio fora, desde o início, provar a
famosa sanduíche de mortadela do Mercadão. Aliás: a fome já era tanta, que nem
vimos mais nada, nem os vitrais nem as outras lojas, até comermos a sanduíche.
E que sanduíche!
Que exagero. É que aquilo não era bem um pão com mortadela:
aquilo era mais mortadela com pão. Como em tanta coisa em São Paulo: uma
sanduíche show-off. Porque ninguém consegue comer uma inteira - a sério,
impossível.
Mas a verdade é que era deliciosa. Pedimos a vesão que leva
queijo em cima das vinte fatias de mortadela, acompanhámos com um chopp.... e
quando saímos finalmente do mercado, íamos de barriga cheia e sorriso de orelha
a orelha.
Depois de meia hora à espera que a chuva passasse, lá
seguimos pela cidade fora. Visitámos a Praça da Sé, um dos lugares mais
estranhos que já conheci, com uma arquitectura bonita, mas uma paisagem humana
degradante, cheia de mendigos e bêbados e toxico-dependentes. Atravessámos a
praça num instante, vimos a igreja a correr, saímos dali para fora sem vontade
nenhuma de voltar... e voltámos, sempre a pé e sempre à conversa, até à Avenida
Paulista.
Quando nos separámos, voltei para casa - a pé - e da cabeça
não me saíam as histórias contadas pelo velhote Michel. De como foi atacado por
"quatro caras" na São João. Da arquitectura dos prédios em frente da
lanchonete onde estávamos. Do Niemeyer. Da Leninha, que ele conseguia divinhar
que tinha uma "integridade exagerada". Dos dias passados em Lisboa,
onde era proibido fumar.
"E sabe aquela ilha... vocês têm uma ilha no
Atlântico... qual é o nome... é uma ilha toda feita de madeira..."
"Madeira?"
"Isso! Madeira! Toooodos preguiçosos, lá! É muito
bonito, mas todo o mundo é preguiçoso."
Querem saber mais sobre este passeio de conversas e encontros? A Leninha também partilhou a história, num post gémeo deste. A versão dela, que inclui uma foto do velhote Michel, está aqui, em www.daravolta.com
6 comentários:
Aperta aí o osso a esse "careca"!!!
Se o tornares a ver, é claro!
Cuidado que eles andam por aí......
Mesmo sem ter grande vontade de conhecer o Rio ou São Paulo estou a adorar viajar com as crónicas. São tão reais que me fazem sentir estar perto.
Confesso que a sandwich de mortadela não me convenceu .... Mas deve ter sabido bem depois de um passeio de quase 20kms.
Obrigada pelos passeios que fazemos sem sair de casa ....
Isto é que foi uma graaaaaaaaaaande volta!!!
Gostei muito de ler sobre as vossas peripécias paulistas!
Continuem assim...!
Quando chegares ao Chile é que eu me vou roer de inveja.....
Até lá adoro ler e reler e ver e olhar e delirar com as tuas crónicas.
Obrigado por este fantástico blog.
Bem haja
Ilha feita de madeira!? Madeirenses preguiçosos!?!? hahahaha muito bom :D adoro o estereotipo!
(claro.. sou madeirense!)
grande velhote Michel!!
boas viagens!
Parabéns pelo vosso blog e obrigado pela história da minha ilha, ilha dos Pregiuiçosos lol !! Quando decidirem nos visitar disponham, as lapas, a coral e a poncha são por minha conta!
Melhores Cumprimentos
Marco Vieira
CEO Madeira Island Vacations
https://madeiraislandvacations.com/
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