03/05/2013

"REFUGIADOS"

Nunca fiquei tão contente por encontrar uma ponte! A ponte que nos garantia uma cama para dormir - um tecto. Provavelmente já não conseguíamos jantar, mas pelo menos não ficávamos na rua.

Quando finalmente entrámos no refúgio, eram dez da noite. A sala estava praticamente vazia: as cadeiras pousadas nas mesas, de pernas para o ar; as três chilenas sentadas a um canto a beber um copo de vinho, e dois rapazes andavam de um lado para o outro, a limpar e a arrumar. Descalçámo-nos, como é regra, e pousámos as mochilas a um canto. Fizemos o check in ao mesmo tempo que respondíamos à curiosidade das chilenas. Elas também se tinham perdido uma vez, e chegaram cinco minutos antes de nós.

Perguntámos se era possível jantar e a primeira reacção foi "não, já passou a hora" - mas devíamos estar com um ar tão miserável que, apesar de nem termos insistido, alguém preparou uma mesa e acabámos por comer um belo bife de peru com batatas. Deitámo-nos logo a seguir a lavar pés e cara, aplicámos tiger balm nos pés, joelhos e ombros, tomei um anti-inflamatório. Dormi no segundo andar de um beliche que me pareceu gigante, o Bunty no terceiro.

Na manhã seguinte, acordámos todos "partidos". É o que acontece a quem puxa os limites como puxámos, nos dois primeiros dias. Já caminhámos cerca de 55km, ao todo - a distância tinha de começar a pesar.

Lá fora: chuva.

Cá dentro: que bem que se está no quentinho do saco-cama.

Decidimos ficar a descansar, hoje. Não podemos abusar da sorte, é estupidez insistir, ainda nos magoamos a sério - e acabamos por nem gozar o passeio.

A miúda da recepção falou, via rádio, com Paine Grande - o terceiro refúgio - e adiou a nossa reserva um dia. Pagámos uma noite extra, aqui. Hoje passamos o dia no refúgio, a recuperar energias.

Conhecemos uma estónia cuja mãe fora médica durante o regime soviético, estudou em Cuba, fala espanhol fluentemente, já viajou por toda a América Latina; uma cubana nascida na Polónia, que viveu no Canadá e agora está nos Estados Unidos; um casal australiano, ele muito "bife" e ela filha de pais vietnamitas; um pai e dois filhos a fazer o circuito total; uma chinesa muito tímida com quem já tinhamos estado à conversa no primeiro dia; um grupo de japoneses freaks; um casal de alemães todos hi-tech, equipados ao milímetro com as mesmas cores, as mesmas coisas, o espelho um do outro, sempre a estudar notas de campo e a preparar a estratégia para o dia seguinte; um grupo de amigos chilenos vestidos à militar; outros completamente descontraídos, de calções e t-shirt; uma bailarina austríaca sempre muito direitinha, que para apertar os atacadores baixava-se sem dobrar os joelhos; os amigos fashion da bailarina; umas inglesas gordinhas, muito coradas e pouco femininas no andar; e um casal húngaro muito porreiro, que foi com quem ficámos mais tempo à conversa, também têm um blog com as aventuras de viagem.

À tarde, quando o tempo melhorou, demos um pequeno passeio pelas imediações, subimos a umas rochas para ver as montanhas, descemos até às margens do lago - voltámos pouco depois. Experimentámos pela primeira vez pisco sour e sentámo-nos no alpendre a ver um grupo de irlandeses que ia chegando aos poucso, alguns "com idade para ter juízo" - fascinante. Iam batendo palmas aos que chegavam, riam e trocavam impressões sobre o passeio, parecia o final de uma maratona. Uma festa. Que alegria. Que energia!

Entretanto, quando pedimos a segunda dose de pisco, uma senhora desse grupo "imitou-nos" e meteu conversa connosco. Tem 64 anos e faz parte de um "walking club" de amigos e amigos-de-amigos, organizam caminhadas lá na terrinha e pela Irlanda fora, e uma vez por outra aventuram-se para mais longe. A senhora já fez dois Caminhos de Santiago - o Francês a pé, o Português de bicicleta - e nesta caminhada chilena está a dormir sempre em tendas. Hoje será a única noite num refúgio. Que delícia, esta mulher - e que inspiração. O Bunty ainda estava mais fascinado que eu, porque: na Índia, aos 64 anos, uma mulher quase não se mexe, fica em casa a tratar dos netos, a queixar-se de dores aqui-e-ali, a rezar. Uma mulher com esta idade e esta energia: é raro encontrar na Índia.

Deitámo-nos cedo. Amanhã arrancamos outra vez - vamos lá ver em que estado.

1 comentário:

Clara Amorim disse...

Descanso dos Guerreiros...! :)