09/08/2011

PARECE QUE É, MAS NÃO É



Ando por Kiev e dou por mim a cantar o jingle publicitário de um anúncio a uma bebida que aquecia o coração, nos anos 80.

Parece que é mas não é,

que gosto, que satisfação...

E porquê?

Vejo uma loira a mastigar pastilha elástica, com uma micro-saia de cabedal justíssima, leggings a imitar pele de leopardo, sapatos com salto de agulha (acho que é assim que se chamam, são altíssimos, como é que a senhora se consegue equlibrar naquilo), camisa transparente de renda preta e lantejoulas prateadas sobre um top com um padrão a condizer com as leggings. O rosto excessivamente pintado, as unhas compridas e berrantes, o perfume em excesso...


...parece que é. Parece mesmo que é. Mas não é.


É só mau gosto. E esta não é a única loira de pastilha elástica, verniz côr-de-rosa, micro-saia e outros não-menos-curiosos etecetras, em Kiev. São muitas as mulheres, nas ruas da capital da Ucrânia, loiras e não-loiras, que assumem pretensões a passerelles em Milão, quando nunca passariam de uma montra em Amesterdão.

Cruzo-me com um rapaz com penteado à Richard Marx, t-shirt às riscas e calções de ganga apertados, dobrados acima do joelho, ele a subir e eu a descer as infindáveis e barulhentas escadas rolantes do Metro. Chego a uma estação com muitos ecos, música clássica, candelabros enormes e lettering vintage. O comboio chega, as portas abrem com estrondo. Saem homens de negócios com pastas de cabedal e camisas suadas, adolescentes com lenços da bandeira dos Estados Unidos ao pescoço e calças de ganga rasgadas nos joelhos, mulheres orgulhosas dos seus enchumaços nos ombros, casais de mãos dadas - nas mãos livres levam garrafas de vodka. Dentro da composição, misturada na multidão tristonha, uma mulher de longas saias, quase-quase até aos pés, ténis velhos e meias brancas, casaco de malha grossa sobre camisa às florzinhas. O aviso sonoro misturado com interferências e ecos... soa-me a russo...


...e até parece que é, mas não é.


Não é a União Soviética, não é. Não é a década de oitenta - é mesmo a Ucrânia do séc. XXI, uma curiosa mistura de sonhos modernos e austeras lembranças, pirosas ambições e preconceitos ingénuos.

De novo na rua, é-me impossível não reparar na morena de olhos de gelo azul, cabelos de anúncio de champô - e uma pele assim, só tratada em photoshop. Um par de pernas de fazer inveja a muitas pseudo-Giseles, graciosidade nos movimentos, parece que faz tudo em câmara lenta. Aproxima-se de um Jaguar prateado, seguida de um anafado e suado segurança, que dança à sua volta numa caótica sequência de vénias, salamaleques e vossas-excelências. Traz alguns sacos de papel, onde estão estampados logotipos de marcas que normalmente requerem etiquetas especiais, de maiores dimensões, tantos são os zeros no preço. Sem nunca largar o BlackBerry, a morena de olhos de gelo azul entra no carro, fecha a porta, baixa o vidro da janela e dá ao segurança uma gorjeta maior que o salário dele, a avaliar pelo sorriso.


Nunca fui a Nova Iorque, mas sabe-se lá porquê, esta é uma imagem que associo à Grande Maçã. Pois é: parece que é, e podia até ser numa série de sítios. Mas não é - é Kiev.

E olhe para onde olhar, vou dar sempre de caras com o inevitável Cirílico. Querem contradições? Coisas que são mas não parecem, ou que parecem e não são? Neste alfabeto, os "H" lêem-se "N", os "Y" lêem-se "U", os "B" são "V" e os "P" são "R". Isto só para dar alguns exemplos.

Numa cidade pródiga nestes contrastes entre o que parece e o que é, acaba por ser um exercício curioso, tentar identificar aquilo que a torna única.


Não sei como explicá-lo, e estive aqui menos de uma semana... talvez seja preciso voltar... mas a verdade é que a cidade é espantosa, e tem uma personalidade muiyo própria. Igrejas ortodoxas e blocos de apartamentos soviéticos, compridas limusines brancas e "pesadões" taxis Volga, diners americanos e pizzarias chiques, música clássica no metro e "às bolinhas" nos vistosos carros dos novos-ricos. Bandeiras da URSS, noivas que parecem suspiros, táxis amarelos com quadradinhos pretos que parecem acabadinhos de chegar de Manhatan, publicidade ao Euro 2012, restaurantes que se chamam "Máfia" com clientes que parecem mafiosos verdadeiros, tantas coisas parecem ser e não são, tantas outras são e não parecem, cartazes do último Harry Potter em cirílico, saldos de 50%, obras e mais obras, uma loiríssima de vestido roxo e sapatos roxos a falar a um telemóvel roxo - e a entrar (juro que vi!) num BMW roxo. Tudo se mistura em Kiev, tudo se complementa em Kiev, tudo isto é, nada disto é, parece que é, ou não parece mas é,

parece Kiev mas não é?

É. Garanto que é.

3 comentários:

Anónimo disse...

Mais uma vez adorei! parece que estou a ver,
Faltam as fptos!
Um grande beijinho
Tia Guida

Clara Amorim disse...

E, finalmente, chegou o "retrato"...
Muito nítido e realista!!!
Sem dúvida, uma cidade muito fotogénica! Ou o fotógrafo é que é muito bom! :))

LV disse...

Melhor descrição decerteza que não conseguiria, parece que visualizo tudo o que escreves. Fantástico. Obrigada