O post "Sabes que estás na Rússia", que publiquei há exactamente duas semanas, acaba com uma frase que pode não ter feito muito sentido para a maioria das pessoas - mas que é uma verdade incontornável na Rússia. Dizia assim:
"Há um coração grande e sorrisos escondidos atrás das esquinas, não se preocupem. Quando menos se espera, eles aparecem."
A primeira vez que experimentei esta máxima foi no metro. Estava meio-perdido, a tentar chegar à Embaixada da Mongólia, quando um jovem moscovita se prestou a desviar a sua rota para me levar até à ligação certa. Acompanhou-me ao longo de várias estações, trocámos uma vez de linha e pouco depois indicou-me que tinha de sair na terceira paragem. E voltou à sua vida.
Mas foi em Nizhni Novgorod, sem dúvida alguma, que esta espécie de "anjos da guarda" atingiu o extremo. Era quase uma da manhã e eu a ver, como se diz, "a vida a andar para trás". Os hoteis estavam todos cheios ou não me queriam receber, sabe-se lá porquê. E eis que surge um casalinho-pipoca, os dois muito giros, de mochila às costas e uma gaiola com um mangusto. Encontrei-os à porta da estação, perto do hotel de onde tinha sido enxotado ainda há poucos minutos. O rapaz perguntou-me, num inglês de muito poucas palavras, o que se passara - e eu aproveitei a disponibilidade para lhe pedir que intercedesse a meu favor junto da recepcionista. Ou, pelo menos, que tentasse perceber porque não me davam um quarto.
Resumindo a discussão e respectiva tradução - a mulher não queria dar-se ao trabalho. Inventou desculpas, argumentos e superstições - e por muito que o miúdo insistisse, não cedeu. A dada altura começou a enxotá-lo também... e acabámos os três na rua. Os três não: os quatro. Eu, a Lena, o Elvin e o mangusto.
"Desculpa. Ela não gosta do trabalho dela e é infeliz. Por isso é que descarrega em nós", diz a Lena.
"Mas disse que há um hotel algures naquela direcção", acrescenta o Elvin, a apontar para algures, "vamos ver se o encontramos."
Eu agradecia, pedia desculpas, já nem sabia muito bem o que dizer - mas eles insistiam em ajudar. Estavam a fazer horas porque tinham um comboio às seis da manhã...
"... e não custa nada."
E eu só queria abraçá-los. Eram lindos. Os dois e o mangusto cujo nome já não me lembro.
Acabámos por encontrar o hotel, depois de perguntar a este-e-aquele, voltar-para-trás, o-costume. Não tinha qualquer indicação à porta e era um lugar muito-muito humilde, tipicamente soviético, cheiro a mofo, pouca luz. A recepcionista recebeu-nos com as trombas a que já me começo a habituar, dizia que não me queria receber por causa do registo... e só cedeu depois de muito insistirmos, e depois do Elvin dar o passaporte dele para se registar em meu nome. E depois de eu prometer que saía até às oito da manhã, sem falta.
Feito o check-in, a mulher transformou-se.
Não no sentido literal, tipo lobisomem ou vampiro. Ainda não chegaram a este ponto, acho que isso é mais na Roménia.
Mas perguntou-me se queria um café ou chá, começou a tentar fazer conversa, até insistiu para que os miúdos tomassem um duche antes de voltar para a estação. Acabaram por lá ficar a dormir umas horas, free of charge, nem lhe passava pela cabeça a ideia de os deixar dormir na rua. Incrível.
Depois do duche e do café, fui à rua fumar um cigarro. A recepcionista acompanhou-me e ficámos em silêncio a olhar para a rua cheia de garrafas de vodka e latas de cerveja encostadas aos muros. Passou um carro com a música aos berros e, depois do som desaparer na escuridão, sinto a mão dela a tocar-me no pulso direito.
"És hippie?"
Eis os meus anjos da guarda:
6 comentários:
Primeiro temos de agradecer e muito aos ANJOS DA GUARDA.Obrigada .... e depois tenho que perguntar: será que têm medo dos hippies ?????
um furão :)
=) anjos da guarda mesmo!!! os hippies devem ser uma espécie muito rara por essas bandas... uma coisa que se via muito nos EUA mas que depois desapareceu...!
AHahahah! És hippie é muito bom!
Jorge, e discriminação? Eu vou à Rússia em Outubro e comecei a ficar com algum receio desde que comecei a ouvir falar em islamofobia. É que não sou propriamente loira de olho azul ... :)
"A mangoose? In Russia?" (estava a recordar-me dos Monty Python e da deixa "A tiger? In Africa?").
Pois, são parecidos, mas o dito mangusto parece-me mais um furão. A não ser que seja um mangusto disfarçado de furão...
A Rússia faz-me sempre lembrar que ainda há espiões...
Boa viagem
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