Depois de um sábado de idas-e-voltas entre o aeroporto e o hotel - em
que aproveitei umas horas livres para visitar o (surpreendente) Museu Nacional
de Phnom Penh - o domingo foi passado entre as revoltantes memórias dos Khmers Vermelhos,
emocionantes passeios de tuktuk, pacatos templos budistas e agitados mercados de comida. Chegámos ao fim da noite estafados e "de papo cheio", eu e os doze
viajantes que me acompanham na viagem de nove dias por Phnom Penh, Siem Reap
e Bangkok.
E no entanto: um dos momentos altos do dia aconteceu enquanto
voltava ao aeroporto com duas pessoas do grupo, no final da tarde de domingo,
para tentarmos recuperar uma mochila perdida no voo do dia anterior.
A meio caminho entre o hotel e o nosso destino, o trânsito começou a ficar mais compacto,
cada vez mais lento, num pára-arranca que não levantava dúvidas: temos
manifestação.
Desde as eleições de Julho que o dia-a-dia da capital tem
sido afectado com manifestações várias. Mas ontem à tarde, dezenas de milhares
de pessoas juntaram-se numa marcha de protesto única, um dos maiores actos de
desafio ao governo de Hun Sen, no poder há mais de três décadas, que acusam ser
um fantoche do Vietname (o primeiro-ministro, note-se, está à frente do
Cambodja desde que os vietnamitas expulsaram os Khmer Vermelhos do poder).
Nas ruas ontem ouviram-se vozes a acusar o governo de ser
ilegítimo, exigindo a realização de novas eleições; os trabalhadores da
indústria do vestuário e calçado pediram o aumento do salário mínimo nacional
(oitenta dólares) e melhores condições de trabalho; a chamada economia informal
quer que seja fixado um tecto para os preços dos combustíveis, de maneira a
tornar os pequenos negócios viáveis; os agricultores clamam por reformas e mais
ajuda, e denunciam o contrato escandaloso, assinado entre o governo e uma
empresa vietnamita, para a exploração de vastas áreas de florestas do país. E agora
até os monges se juntam aos protestos, revoltados com o roubo de importantes
relíquias do Buda, ainda este mês, de um templo no centro do país. Acusam o governo de não ter
suficiente cuidado com o património religioso do país, quando ao mesmo tempo gasta milhões
num exagerado aparato de segurança à volta do primeiro ministro e de políticos e
agentes do partido no poder.
Os protestos no Cambodja têm estado, de certa forma, na
sombra dos que estão a acontecer na Tailândia. No entanto, analistas vários descrevem
que os últimos meses têm sido muito importantes para a sociedade civil cambodjana,
que durante anos foi dominada pelo autoritarismo de Hun Sen, cujo partido tem o
controlo de várias instituições no país, incluindo o exército, a polícia e
grande parte dos meios de comunicação social.
Análises à parte, foi impressionante assistirmos a este
protesto. Apesar das palavras de ordem e de uma visível
frustração, havia sorrisos e um ambiente de alguma festa. Contestava-se um
governo mas celebrava-se também a democracia e a sociedade civil. Depois dos
anos de repressão dos Khmer Vermelhos e de uma espécie de ressaca prolongada no
exercício do poder popular, parece que os cambodjanos estão agora mais
conscientes, mais confiantes - mais acordados. E esta manifestação também
celebrava isso.
Não tinha a máquina fotográfica comigo, mas pedi emprestada
a da Susana, uma das viajantes que vinha comigo no tuktuk. Saí para a estrada e
aproximei-me da multidão, senti o calor do seu respirar e por momentos deixei
que o meu coração batesse em uníssono com os deles. E durante cinco rápidos
minutos documentei aquilo que pode vir a ser um momento de viragem na História
deste país.
O problema é que ainda ninguém sabe em que sentido.