29/10/2014

LÊ-SE JOE JOE

De Bagan, faltava-me contar esta história: assim que chegámos no barco de Mandalay, instalámo-nos em Nova Bagan e "dei" o final de tarde para o grupo descansar, fazer umas compras ou o que quisesse. Combinámos encontro para jantar e eu saí de mota com o objectivo de trocar dinheiro, reservar restaurante - e tentar encontrar o meu amigo Kyaw Kyaw (lê-se Joe Joe), que no ano passado fora uma grande ajuda e um bom companheiro. Como nessa altura ainda havia pouca gente com telemóveis no Myanmar, nunca mais tive qualquer contacto com ele.

Estaria ainda em Bagan?

O Kyaw Kyaw (lê-se Joe Joe) sonhava ir um dia para Yangon terminar o curso de Inglês e Turismo.

Fui até ao templo onde o conhecera, durante a viagem de prospecção para a aventura que organizo com a Nomad. Não estava lá, mas fiquei a saber que ainda vivia em Bagan - e que no dia seguinte poderia encontrá-lo ali no templo a partir das nove, dez da manhã. Vinha vender as suas pinturas aos turistas, como antes. Menos mau, pensei, é a hora que arrancamos do hotel com as ebikes, e de qualquer forma começamos a volta por este templo. Ou seja: amanhã é dia de reencontros. Pensava eu.

No entanto, ao regressar a Nova Bagan para finalmente trocar dinheiro, lembrei-me que tinha ido uma vez a casa do Kyaw Kyaw (lê-se Joe Joe), algures numa aldeia ali perto. Meti-me pelo caminho que pensava ser o correcto e vagueei um pouco tentando reconhecer a paisagem, mas de nada me serviu. Perdido, voltei para a estrada principal e desisti de o procurar. Amanhã logo se vê.

Voltei ao plano inicial: trocar dinheiro, portanto.

Encostei a mota e estacionei à frente de um banco com as luzes acesas, mas rapidamente fui avisado que o estabelecimento já estava fechado, e que já não poderia trocar dinheiro ali.

"E onde posso fazê-lo, a esta hora?"

Já tinha anoitecido, entretanto.

O segurança apontou para o outro lado da estrada e indicou-me uma casa particular. Atravessei, dirigi-me a um velhote e ele mandou-me entrar.

"Senta-te."

E eis que tenho uma espécie de deja vu.

Eu já tinha estado nesta casa. Lembrava-me bem da sala - e do rosto da rapariga que apareceu com uma caixa de metal cheia de notas -, o Kyaw Kyaw (lê-se Joe Joe) tinha-me trazido aqui uma vez.

Troquei o dinheiro e pareceu-me pertinente perguntar pelo meu amigo. Pelo nome ela não se lembrou, e perguntou-me se eu tinha alguma foto. Procurei no telefone, nos registos que guardo da viagem do ano passado... e lá estava. Que boa ideia! E que sorriso se fez na cara da rapariga, quando o reconheceu:

"Sim, o Joe Joe (escreve-se Kyaw Kyaw), sei muito bem quem é. Vive na aldeia de Koló (diz-se assim, não sei como se escreve), ali em frente por aquela estradinha."

Explica lá isso melhor.

Ela não sabia dizer-me onde era a casa dele, mas indicou-me o caminho que me levaria à aldeia. Tinha meia hora até à hora combinada, achei que podia dar uma oportunidade à sorte.

E que sorte.

Meti-me pelo caminho escuro que a rapariga me indicara e segui sempre em frente até já não haver casas. Sabia que tinha de virar algures à esquerda, mas depressa deixei de perceber onde e mais uma vez comecei a sentir-me perdido, até que vi um velhote a caminhar no escuro e achei por bem tentar novamente a minha sorte. Perguntei-lhe pela aldeia.

Falava um inglês impecável.

"É aqui", apontando as árvores à volta, "estamos em Koló."

À nossa volta não havia nada senão breu e bosque. Mas, segundo o velhote, estávamos no sítio certo. Decidi mostrar-lhe a foto do meu amigo:

"Estou à procura de um amigo", passei-lhe o telefone para a mão, "chama-se Joe Joe (escreve-se Kyaw Kyaw).

"O Kyaw Kyaw (lê-se Joe Joe)?", e abriu-se um sorriso de orelha a orelha que iluminou o bosque e os templos à volta, e toda a Birmânia e o Universo, "o Kyaw Kyaw (lê-se Joe Joe) é meu filho."

Confesso que achei que ele estava a gozar comigo, ou que não me tinha percebido bem... ou que eu é que não estava a entendê-lo.

"Seu filho?"

"Sim! Eu sou o pai do Kyaw Kyaw (lê-se Joe Joe). Vou agora para casa, posso levar-te até ele."

Isto estava escrito. Maktub, dir-se-ia noutras latitudes. Convidei-o a sentar-se no banquinho extra da minha ebike e lá fomos a zumbir e a conversar pelo escuro, eu ainda sem acreditar muito bem no que estava a acontecer, que sorte, que pontaria, será que era mesmo ele?

E era. Chegámos a casa e mandaram-no chamar, apareceu com um sorriso que só sabe quem o conhece. Casou-se, tem uma filha recém-nascida, abandonou o sonho de Yangon mas continua com a mesma energia, a mesma bondade, o mesmo companheirismo.

Não mais nos largou, nos dias que se seguiram. Foi de uma disponibilidade impagável, fez toda a diferença na experiência dos templos e do tempo, lembrou-nos mais uma vez como é importante ter o coração aberto e o sorriso rasgado.

E para o ano já não preciso de confiar na sorte, porque como a grande parte dos birmaneses, o Kyaw Kyaw (lê-se Joe Joe) já tem telefone.

Obrigado, amigo!


1 comentário:

Clara Amorim disse...

Que episódio fantástico!!! Grande Kyaw Kyaw (lê-se Joe Joe)...! ;)