Vem mesmo a calhar, esta coincidência entre o Halloween e o passeio que fiz ao Monte Popa, a duas horas de Bagan. Como disse antes, este lugar é o centro espiritual daqueles que veneram os nats.
E quem são os nats, afinal?
Os nats são espíritos idolatrados no Myanmar - uma crença pagã mais antiga que o Budismo e que conseguiu resistir até aos dias de hoje.
Há trinta e sete Grandes Nats e dezenas ou centenas de outros menos importantes, que podem até ser espíritos de árvores, animais, plantas, rios - mas os principais trinta e sete, esses foram quase todos humanos. E têm uma coisa em comum: todos morreram de formas especialmente violentas. Por causa disso, são espíritos irrequietos, que de certa forma não fizeram as pazes com o mundo dos vivos. Ou porque foram injustiçados, ou porque não entendem a razão da sua morte - enfim, há que apaziguá-los.
Isto não quer dizer que os nats sejam espíritos maus. Nada disso. Mas precisam de ser constantemente "apaparicados", para que se consiga uma certa paz entre o mundo dos espíritos e o dos vivos. Ou seja, os crentes fazem oferendas com frequência. Aliás: antigamente até era costume fazerem-se sacrifícios, mas com o crescimento do Budismo na Ásia algumas práticas mais violentas das crenças pagãs e animistas foram aos poucos abandonadas.
Assim sendo: toca a dar presentes. Muito dinheiro (há sempre notas nas mãos das estátuas, no colo, à volta), muita fruta e alguma comida (porque um nat que se preze gosta de estar sempre bem alimentado) e até cigarros, álcool, roupa, acessórios e muito mais.
Enfim: a verdade é que poderíamos ficar aqui durante muitos parágrafos a descortinar estes rituais tão ricos e de certa forma kitsch... mas parece-me que, para uma primeira abordagem, estamos conversados. Um dia destes pode ser que se aprofunde um bocadinho.
Além de que eu sei que têm de ir escolher as vossas fatiotas para hoje à noite ;)
Quem sabe até se inspiram num destes nats.
Já agora: em Popa quem manda é uma senhora que tinha dois filhos que também morreram de forma trágica, como ela. A senhora é uma espécie de Nossa Senhora de Fátima meets Priscilla, a Rainha do Deserto. Ora vejam e digam lá se não é:
31/10/2014
BOM DIA, BRUXAS!
Não me levem a mal os espíritos birmaneses, mas às vezes dá-me a sensação que vocês e a bruxaria andam quase lado-a-lado.
Que pontaria: hoje é Halloween e tenho para partilhar no blog, a propósito da visita ao Monte Popa, algumas curiosidades sobre o culto dos Nat, os espíritos que convivem lado a lado com o Budismo, aqui no Myanmar.
Por agora deixo-vos um click, vou só acabar de editar o resto das fotos e já conversamos. Até já!
Que pontaria: hoje é Halloween e tenho para partilhar no blog, a propósito da visita ao Monte Popa, algumas curiosidades sobre o culto dos Nat, os espíritos que convivem lado a lado com o Budismo, aqui no Myanmar.
Por agora deixo-vos um click, vou só acabar de editar o resto das fotos e já conversamos. Até já!
30/10/2014
AI QUE SUSTO!
Aqui no Myanmar quase nem se dá por isso, mas hão-de ser raros os países onde neste momento a máquina do marketing não está a fervilhar com o Halloween.
Amanhã celebra-se a Noite das Bruxas e por todo o lado, de São Francisco a Lisboa, de Hanói ao Rio de Janeiro, de Melbourne a Bombaim... há festa!
Confesso que não tenho nada planeado, estou ainda a recuperar das voltas intensas pela Birmânia - e já a preparar-me para a Indochina que aí vem. Mas estou atento, nem que seja por piada, e apesar de uma net muito lenta e aos solavancos, consegui "sacar" algumas listas engraçadas para partilhar aqui.
A primeira foi publicada hoje no Telegraph e faz um apanhado daqueles que o jornal considera "os vinte e cinco lugares mais assustadores do mundo", nomeadamente casas assombradas, cidades-fantasma e atracções macabras. Vale a pena ver, é a lista mais interessante de todas as que encontrei hoje. Curiosamente, e para minha surpresa, até já visitei algumas.
A segunda lista é um "top ten de hotéis assombrados", segundo o Trip Advisor.
E para finalizar, uma lista dos "21 lugares mais assombrados do mundo" feita por um site especializado em caças de fantasmas e estadias em lugares assombrados. A sério.
Amanhã celebra-se a Noite das Bruxas e por todo o lado, de São Francisco a Lisboa, de Hanói ao Rio de Janeiro, de Melbourne a Bombaim... há festa!
Confesso que não tenho nada planeado, estou ainda a recuperar das voltas intensas pela Birmânia - e já a preparar-me para a Indochina que aí vem. Mas estou atento, nem que seja por piada, e apesar de uma net muito lenta e aos solavancos, consegui "sacar" algumas listas engraçadas para partilhar aqui.
A primeira foi publicada hoje no Telegraph e faz um apanhado daqueles que o jornal considera "os vinte e cinco lugares mais assustadores do mundo", nomeadamente casas assombradas, cidades-fantasma e atracções macabras. Vale a pena ver, é a lista mais interessante de todas as que encontrei hoje. Curiosamente, e para minha surpresa, até já visitei algumas.
A segunda lista é um "top ten de hotéis assombrados", segundo o Trip Advisor.
E para finalizar, uma lista dos "21 lugares mais assombrados do mundo" feita por um site especializado em caças de fantasmas e estadias em lugares assombrados. A sério.
OS VOLUNTÁRIOS DA FISGA
Na ascenção dos 777 degraus do Monte Popa, passamos frequentemente por pessoas sentadas nos degraus a limpar o chão com uns panos molhados. De certa forma é uma tarefa ingrata, porque os macacos fazem questão de sujar tudo outra vez, nada aqui fica muito limpo, muito tempo. Mas a verdade é que, se não fossem estes voluntários, o lugar seria muito-mas-muito mais imundo.
Os voluntários do Monte Popa têm sempre um pequeno molho de notas que fazem questão de mostrar a quem passa, de maneira a estimular a gorjeta. Faz parte - e pelo trabalho que têm, bem que a merecem. Além disso tiram bom proveito ideia de "donativo" juntamente dos crentes budistas. E lá fazem umas massas.
Outra singularidade, e para mim a mais interessante, é o facto de todos estes voluntários estarem sempre munidos de uma fisga. Nada mal pensado, tendo em conta o comportamento abusivo dos macacos residentes.
Ficam dois exemplos:
Os voluntários do Monte Popa têm sempre um pequeno molho de notas que fazem questão de mostrar a quem passa, de maneira a estimular a gorjeta. Faz parte - e pelo trabalho que têm, bem que a merecem. Além disso tiram bom proveito ideia de "donativo" juntamente dos crentes budistas. E lá fazem umas massas.
Outra singularidade, e para mim a mais interessante, é o facto de todos estes voluntários estarem sempre munidos de uma fisga. Nada mal pensado, tendo em conta o comportamento abusivo dos macacos residentes.
Ficam dois exemplos:
777 DEGRAUS... MAS QUANTOS MACACOS?
Sinceramente não sei o que há mais em Popa: degraus ou macacos.
Os degraus estão contados, são setecentos e setenta e sete ao todo, aqui por extenso para que não haja confusões nem gralhas. Já os macacos, acho que ninguém sabe ao certo quantos são. Até porque, ao contrário dos degraus, os outros reproduzem-se.
Matemáticas à parte:
Fomos dar uma volta a Popa, portanto. São quase duas horas de viagem, a partir de Bagan, faz-se bem num dia, ida e volta com direito a paragem estratégica no regresso para descansar e provar uma aguardente de palma.
No último post fiz a comparação de Popa com Fátima - e não me arrependo. O primeiro tem tanta importância para quem acredita nos nat, no Myanmar; quando o segundo para os católicos portugueses. Este é um dos mais importantes centros de peregrinação em todo o país, só comparável à Rocha Dourada, ao Shwedagon Pagoda e ao Mahamuni - os três lugares sagrados budistas do Myanmar.
Se desejar conhecer em pormenor o programa desta viagem ao Myanmar, clique aqui.
Os degraus estão contados, são setecentos e setenta e sete ao todo, aqui por extenso para que não haja confusões nem gralhas. Já os macacos, acho que ninguém sabe ao certo quantos são. Até porque, ao contrário dos degraus, os outros reproduzem-se.
Matemáticas à parte:
Fomos dar uma volta a Popa, portanto. São quase duas horas de viagem, a partir de Bagan, faz-se bem num dia, ida e volta com direito a paragem estratégica no regresso para descansar e provar uma aguardente de palma.
No último post fiz a comparação de Popa com Fátima - e não me arrependo. O primeiro tem tanta importância para quem acredita nos nat, no Myanmar; quando o segundo para os católicos portugueses. Este é um dos mais importantes centros de peregrinação em todo o país, só comparável à Rocha Dourada, ao Shwedagon Pagoda e ao Mahamuni - os três lugares sagrados budistas do Myanmar.
Se desejar conhecer em pormenor o programa desta viagem ao Myanmar, clique aqui.
BOM DIA, POPA!
O Monte Popa é um lugar muito especial, junto a um antigo vulcão, que é uma espécie de Fátima para quem acredita nos nat, os espíritos pagãos que coexistem com o budismo, no Myanmar.
O click de hoje, que antecede o post em que vou documentar o passeio que demos a este lugar, foi tirado mesmo à "entrada" do Monte, bem no princípio dos 777 degraus que é preciso subir até chegar aos templos principais, no topo.
Tem a particularidade de ser na vertical, este click. Normalmente opto sempre por fotos "ao baixo", nesta rubrica do blog. Mas hoje não resisti às cores e às emoções desta fotografia.
Bom dia!
O click de hoje, que antecede o post em que vou documentar o passeio que demos a este lugar, foi tirado mesmo à "entrada" do Monte, bem no princípio dos 777 degraus que é preciso subir até chegar aos templos principais, no topo.
Tem a particularidade de ser na vertical, este click. Normalmente opto sempre por fotos "ao baixo", nesta rubrica do blog. Mas hoje não resisti às cores e às emoções desta fotografia.
Bom dia!
29/10/2014
LÊ-SE JOE JOE
De Bagan, faltava-me contar esta história: assim que chegámos no barco de Mandalay, instalámo-nos em Nova Bagan e "dei" o final de tarde para o grupo descansar, fazer umas
compras ou o que quisesse. Combinámos encontro para jantar e eu saí de mota com o objectivo de trocar dinheiro, reservar restaurante - e tentar encontrar o meu amigo Kyaw
Kyaw (lê-se Joe Joe), que no ano passado fora uma grande ajuda e um bom companheiro.
Como nessa altura ainda havia pouca gente com telemóveis no Myanmar, nunca mais tive qualquer
contacto com ele.
Estaria ainda em Bagan?
O Kyaw Kyaw (lê-se Joe Joe) sonhava ir um dia para Yangon terminar o curso de Inglês e Turismo.
O Kyaw Kyaw (lê-se Joe Joe) sonhava ir um dia para Yangon terminar o curso de Inglês e Turismo.
Fui até ao templo onde o conhecera, durante a viagem de
prospecção para a aventura que organizo com a Nomad. Não estava lá, mas fiquei
a saber que ainda vivia em Bagan - e que no dia seguinte poderia encontrá-lo ali no templo a
partir das nove, dez da manhã. Vinha vender as suas pinturas aos turistas, como antes. Menos mau, pensei, é a hora que arrancamos do hotel com as ebikes, e de
qualquer forma começamos a volta por este templo. Ou seja: amanhã é dia de reencontros. Pensava eu.
No entanto, ao regressar a Nova Bagan para finalmente trocar
dinheiro, lembrei-me que tinha ido uma vez a casa do Kyaw Kyaw (lê-se Joe Joe),
algures numa aldeia ali perto. Meti-me pelo caminho que pensava ser o correcto
e vagueei um pouco tentando reconhecer a paisagem, mas de nada me serviu.
Perdido, voltei para a estrada principal e desisti de o procurar. Amanhã logo se vê.
Voltei ao plano inicial:
trocar dinheiro, portanto.
Encostei a mota e estacionei à frente de um banco com as luzes acesas,
mas rapidamente fui avisado que o estabelecimento já estava fechado, e que já não
poderia trocar dinheiro ali.
"E onde posso fazê-lo, a esta hora?"
Já tinha anoitecido, entretanto.
O segurança apontou para o outro lado da estrada e indicou-me uma
casa particular. Atravessei, dirigi-me a um velhote e ele
mandou-me entrar.
"Senta-te."
E eis que tenho uma espécie de deja vu.
Eu já tinha estado nesta casa. Lembrava-me bem da sala - e do rosto da rapariga que apareceu com uma caixa de metal cheia de notas -, o
Kyaw Kyaw (lê-se Joe Joe) tinha-me trazido aqui uma vez.
Troquei o dinheiro e pareceu-me pertinente perguntar pelo
meu amigo. Pelo nome ela não se lembrou, e perguntou-me se eu tinha alguma foto. Procurei no telefone, nos registos que guardo da viagem do ano passado... e lá
estava. Que boa ideia! E que sorriso se fez na cara da rapariga, quando o reconheceu:
"Sim, o Joe Joe (escreve-se Kyaw Kyaw), sei muito bem
quem é. Vive na aldeia de Koló (diz-se assim, não sei como se escreve), ali em
frente por aquela estradinha."
Explica lá isso melhor.
Ela não sabia dizer-me onde era a casa dele, mas indicou-me
o caminho que me levaria à aldeia. Tinha meia hora até à hora combinada, achei que podia
dar uma oportunidade à sorte.
E que sorte.
Meti-me pelo caminho escuro que a rapariga me indicara e segui
sempre em frente até já não haver casas. Sabia que tinha de virar algures à
esquerda, mas depressa deixei de perceber onde e mais uma vez comecei a sentir-me perdido, até que vi um velhote a
caminhar no escuro e achei por bem tentar novamente a minha sorte. Perguntei-lhe pela aldeia.
Falava um inglês impecável.
"É aqui", apontando as árvores à volta, "estamos em Koló."
À nossa volta não havia nada senão breu e bosque.
Mas, segundo o velhote, estávamos no sítio certo. Decidi mostrar-lhe a foto do meu
amigo:
"Estou à procura de um amigo", passei-lhe o
telefone para a mão, "chama-se Joe Joe (escreve-se Kyaw Kyaw).
"O Kyaw Kyaw (lê-se Joe Joe)?", e abriu-se um
sorriso de orelha a orelha que iluminou o bosque e os templos à volta, e toda a
Birmânia e o Universo, "o Kyaw Kyaw (lê-se Joe Joe) é meu filho."
Confesso que achei que ele estava a gozar comigo, ou que não
me tinha percebido bem... ou que eu é que não estava a entendê-lo.
"Seu filho?"
"Sim! Eu sou o pai do Kyaw Kyaw (lê-se Joe Joe). Vou
agora para casa, posso levar-te até ele."
Isto estava escrito. Maktub, dir-se-ia noutras latitudes.
Convidei-o a sentar-se no banquinho extra da minha ebike e lá fomos a zumbir e a conversar
pelo escuro, eu ainda sem acreditar muito bem no que estava a acontecer, que
sorte, que pontaria, será que era mesmo ele?
E era. Chegámos a casa e mandaram-no chamar, apareceu com um
sorriso que só sabe quem o conhece. Casou-se, tem uma filha recém-nascida,
abandonou o sonho de Yangon mas continua com a mesma energia, a mesma bondade,
o mesmo companheirismo.
Não mais nos largou, nos dias que se seguiram. Foi de uma
disponibilidade impagável, fez toda a diferença na experiência dos templos e do
tempo, lembrou-nos mais uma vez como é importante ter o coração aberto e o
sorriso rasgado.
E para o ano já não preciso de confiar na sorte, porque como a grande parte dos birmaneses, o Kyaw Kyaw (lê-se Joe Joe) já tem telefone.
Obrigado, amigo!
BOM DIA, KYAW KYAW!
O nome lê-se Joe Joe. Tem vinte e dois anos, vive em Bagan, pinta na época baixa e vende os quadros na época alta. É um bom amigo que tive a felicidade de reencontrar este ano, depois de uma sucessão de coincidências que vou contar no próximo post. Estejam atentos, estou só a finalizar o texto, daqui a nada já o publico.
Bom dia!, ou como se diz por aqui: mingalabar!
Bom dia!, ou como se diz por aqui: mingalabar!
28/10/2014
A LENDA DA PRINCESA "BEM" E DO LEÃO DAS BEIRAS
Uma das imagens mais características do Myanmar de hoje são os leões enormes
plantados à porta dos templos e pagodas. Apesar da motivação para estas estátuas me parecer óbvia -
protecção - andava curioso em saber se havia alguma história por detrás
de tão singulares bonecos. E há.
Perguntei a este-e-aquela, pesquisei no meu livro de cábulas
sobre a cultura e tradições do Myanmar e lá encontrei a resposta a esta dúvida.
A história que se segue é uma adaptação "livre", escrita num momento
de inspiração - ou não.
Ou seja, descontando as piadinhas e os floreados, o básico
da lenda está algures nas entrelinhas deste post que agora partilho:
Era uma vez uma princesa birmanesa giríssima que tinha
andado num liceu de Cascais e tudo, e que estava à espera de bebé.
Apesar da gravidez avançada, a princesa insistiu em fazer um
trekking na floresta encantada ao pé
do palácio. Sim: floresta encantada. Isto passou-se Antigamente, e nessa altura
havia florestas encantadas. Daquelas em que as árvores têm voz grossa e pegam nas
pessoas com os ramos, quando estão zangadas; e os passarinhos e os esquilos
falam, e as borboletas andam sempre à nossa volta a dançar. Depois veio o Walt
Disney. E depois veio o Castelo Branco. Mas essas são outras histórias.
Continuando.
Ia a princesa mais as suas damas de companhia, guardas reais
e bobos da corte, todos equipados a rigor com ténis nike (já havia nessa altura, eram super vintage), quando o passeio
foi interrompido pelo assustador rugido de um leão. O grupo parou e estremeceu
de medo: as damas de companhia rodearam a princesa para a proteger, os guardas
reais rodearam as damas de companhia - e os bobos da corte esconderam-se atrás
das árvores.
Silêncio.
E de repente: o leão.
Enorme, com ar ameaçador, diria que acabadinho de chegar de
um documentário da National Geographic, mas isto foi Antigamente e nessa altura
não havia televisão nem revistas. Só das côr-de-rosa.
Medo.
Nem os passarinhos cantavam - quanto mais os esquilos, que
eram conhecidos por ser os mais medricas da floresta. Então o leão quebrou o
gelo e tentou dizer alguma coisa, mas só de abrir a boca desatou toda a gente a
fugir, cada um para seu canto, foi um salve-se-quem-puder como nunca se vira
naquela floresta encantada, e no meio da confusão a princesa, coitadinha,
sempre giríssima mas a tremer que nem varas verdes, ficou sozinha, grávida, a
dar-lhe os vómitos com o susto, frente-a-frente com o rei da selva. Ainda levou
a mão ao bolso, à procura do iphone
para pedir auxílio; ou do spray de
pimenta para se defender - mas isto passou-se Antigamente, não se esqueçam, e
ainda não tinha sido inventado nem o iphone
nem o spray de pimenta.
"Bom dia," disse-lhe o leão com uma discreta vénia.
Ela respondeu com um aceno da cabeça.
"Eu chou o rei da chelva, e tu?"
"Eu sou a princesa."
"Éja princheja? Princheja do quê?"
A princesa revirou os olhos:
"Sou a princesa do palácio ali ao fundo, aquele amoroso
no topo da montanha."
Conversa puxa conversa, começaram a falar de fofoquices da
realeza e o leão começou a simpatizar com a grávida princesa. Tinham tanto em
comum: ambos eram de famílias reais... hmm... ok, só tinham isto em comum. Mas
foi o suficiente para o leão se apaixonar. Era um romântico, este leão. E como
estava a começar a chover, levou a princesa para a sua gruta e tomou conta dela
nos meses seguintes. Trazia-lhe comida todos os dias, apesar dela ser esquisitíssima
e só comer produtos gourmet;
protegia-a dos perigos da floresta (aranhas, correntes de ar e outros)... e
quase sem darem pelo tempo passar, nasceu o bebé.
Há quem diga que o leão era o verdadeiro pai da criança. As
revistas (côr-de-rosa-vintage) da altura garantiam que na verdade
"leão" não era o rei da selva, mas a alcunha de um sportinguista que
vivera um tórrido romance com a princesa e a engravidara. Seja como for, a
Birmânia recorda a história com um poderoso animal.
Nasceu o bebé, portanto.
Um rapagão gordo e rosado, que fez do leão um
"pai" babado: passou a tomar conta do miúdo, afeiçoou-se a ele como
se fosse seu filho, providenciava tudo do melhor para ele. O amor é cego. E
possessivo, por vezes. Porque o leão não só os protegia dos perigos das aranhas
e das correntes de ar, como os prendia na gruta. Estavam proibidos de sair.
Passaram-se alguns anos e o bebé cresceu. Já sabia fazer puzzles (antigos) e atrevia-se, de
quando em vez, a completar um sudoku.
Já desenhava algumas letras e fazia bem a pintinha dos iis. Estava na idade dos
Porquês.
"Mamacita... sabes porque nosotros nos quedamos por
aqui? Porque mi padre es un leon y no un hombre?"
Por razões misteriosas que nem a princesa sabia explicar, o
filho falava em portunhol. O que era super-piroso.
"Ó querido, sente-se nesta pedra giríssima porque a mãe
tem uma coisa para lhe contar. Você não é um rapaz normal, Bernardo."
O jovem Bernardo estremeceu.
"É que o seu pai não é este leão, e o seu avô (o meu
pai) é um rei... mas não o rei da selva. É ele que manda neste reino todo,
querido. Não acha o máximo?"
E com um movimento lento do braço cobriu todo o horizonte,
enquanto pombas levantavam voo assustadas. Os olhos do miúdo brilharam.
"Que bien...", murmurou ele.
"A sua mãe é uma princesa, Bernardo! Não é uma tara? E você
é um príncipe. Mas olhe, querido, ninguém sabe que estamos aqui na floresta
encantada, que é giríssima mas tem imensas aranhas e correntes de ar, é
nojenta. Ninguém lá no palácio do avô sabe que nós estamos aqui, como uns
refugiados, super pobrezinhos e com moscas nas feridas e mais-não-sei-quê... ó
Bernardo, eles pensam que o leão me comeu! Não é horrível?"
O que nem era de todo falso, segundo a imprensa côr-de-rosa.
"No te preocupes, mamacita," disse o menino no seu
peculiar sotaque. "Yo já soi mui fuerte. Manhana nosotros vamos a fugir
quando el leon va a buscar la comidita."
E assim foi. Na manhã seguinte o leão-das-beiras saiu para
ir buscar comida, e a princesa-tia e o príncipe-portunhol fugiram pela floresta
encantada fora. Nem as árvores os conseguiram agarrar, nem os passarinhos
cantaram mil aventuras e coisas queridas, nem mais nada. E quando o leão voltou
à gruta e percebeu que não estava ninguém, correu atrás deles desesperado,
cheio de medo que algo de mal lhes acontecesse, algo ainda pior que uma aranha
ou uma corrente de ar.
Quase os apanhou. Tinham acabado de atravessar o rio. O leão
ficou do-lado-de-cá da margem, eles do-lado-de-lá. Desesperado, começou a rugir,
como que convocando os deuses e os espíritos em que os leões acreditavam no
Antigamente (os leões eram animais altamente espirituais, há muito-muito-tempo),
mas de nada lhe serviu.
"No me sigas que te voy a matar," gritou o pequeno
Bernardo do outro lado do rio.
O leão tentou entrar na água. Ao ver isto, o rapaz pegou num
arco e começou a disparar flechas em direcção ao rei da selva. Mas o amor do
leão era tão grande e tão puro, que as flechas imediatamente se transformaram
em bananas e cocos - o que não impediu Bernardo de continuar a disparar, pois
acreditava que ia conseguir matar o outro. Contudo, por muito que insistisse,
todas as flechas se transformavam em oferendas - até que num brevíssimo
instante de fraqueza, apenas uma fracção de segundo, o leão pensou para a sua
juba "olha que mal-agradechido, o raio do rapaz" e imediatamente uma
seta trespassou-lhe o coração.
A princesa-tia e o príncipe-portunhol continuaram a sua fuga
e chegaram finalmente ao palácio. O rei morreria pouco tempo depois - mas feliz
por reencontrar a família. À falta de um pai, Bernardo foi nomeado rei.
El-rei Dom Bernardo mais não sei quantos apelidos.
Mas este não é o final feliz da história: porque alguns anos
volvidos da sua coroação, o rei D. Bernardo começou a ficar terrivelmente
doente. Por muito que os seus curandeiros e médicos tentassem, não conseguiam
curá-lo. Num dia de maior aflição até tentaram ligar para o 112, mas o telefone
ainda não tinha sido inventado. É preciso ter azar. Até que uma mente iluminada
lembrou-se dos dramáticos eventos ocorridos à beira-rio, uns anos antes.
Chegou-se à conclusão que o facto de D. Bernardo ter morto o
leão - quem sabe, o próprio pai - tinha funcionado como uma terrível maldição.
O rei precisava de obter o perdão do animal. Mas como, se este estava morto?
A tal mente iluminada disse então a el-rei:
"Se sua alteza desejar obter o perdão do leão, terá de
mandar erguer uma estátua à entrada de um templo, e ir lá rezar e fazer
oferendas todos os dias. E, já agora, este é o cartão do meu primo, que tem uma
empresa que constrói estátuas de leão, ele faz bons preços."
E assim foi. O rei mandou fazer a primeira estátua, e mais
outra, e mais outras. Tornou-se tradição, pôr leões à entrada dos templos.
Depois tornou-se moda. E assim se tranformaram num símbolo de dedicação na
protecção, os leões - não só contra aranhas e correntes de ar, mas todo o tipo
de males espirituais e físicos.
BOM DIA EM SLOW-MOTION
Em homenagem à internet aqui do hotel e ao ritmo dos últimos dois dias, o click de hoje é assim-como-que-em slow motion.
Bom dia!
Bom dia!
SUNSET/SUNRISE
Durante os dias que passámos em Bagan assistimos a um nascer-do-sol e a dois pôres-do-sol.
As fotos que se seguem dispensam mais comentários:
As fotos que se seguem dispensam mais comentários:
27/10/2014
UMAS VOLTAS POR BAGAN
Dizem que, no auge do reinado do rei Anawratha, Bagan chegou a ter treze mil templos, pagodas e outras estruturas religiosas. Se é exagero ou realidade, provavelmente nunca saberemos. Mas hoje, mil anos depois, sobram mais de dois milhares. E tão singelo número traduzido numa paisagem - falo por mim, claro - já é suficientemente surpreendente!
Depois das voltas por Mandalay e de um dia a navegar pelo Irrawaddy abaixo, o grupo instalou-se em Bagan. Alugámos umas motinhas eléctricas, aqui chamadas de ebikes, e praticamente não parámos um momento, durante os dois dias e meio que aqui estivémos.
Explorámos a planície e os seus templos, vimos pôres-e-nasceres-do-sol, fomos dar uma volta ao Monte Popa, experimentámos petiscos, fizemos amigos - e, claro, muitas compras. Tentámos, inclusive, andar de balão... mas foi cancelado à última da hora, estávamos já à espera que nos viessem buscar, meio ensonados, noite cerrada mas com relâmpagos ao fundo. Contudo, no dia seguinte fomos compensados com um sunrise épico, sem dúvida um dos melhores de sempre ;)
Hoje partilho algumas fotos das nossas voltas pela maravilhosa Bagan, reservando para logo à tarde as do sol a pôr-se e a nascer. Essas merecem um post próprio.
Conheçam o programa da viagem à Birmânia em detalhe, em http://www.nomad.pt/birmania-com-jorge-vassallo
Depois das voltas por Mandalay e de um dia a navegar pelo Irrawaddy abaixo, o grupo instalou-se em Bagan. Alugámos umas motinhas eléctricas, aqui chamadas de ebikes, e praticamente não parámos um momento, durante os dois dias e meio que aqui estivémos.
Explorámos a planície e os seus templos, vimos pôres-e-nasceres-do-sol, fomos dar uma volta ao Monte Popa, experimentámos petiscos, fizemos amigos - e, claro, muitas compras. Tentámos, inclusive, andar de balão... mas foi cancelado à última da hora, estávamos já à espera que nos viessem buscar, meio ensonados, noite cerrada mas com relâmpagos ao fundo. Contudo, no dia seguinte fomos compensados com um sunrise épico, sem dúvida um dos melhores de sempre ;)
Hoje partilho algumas fotos das nossas voltas pela maravilhosa Bagan, reservando para logo à tarde as do sol a pôr-se e a nascer. Essas merecem um post próprio.
Conheçam o programa da viagem à Birmânia em detalhe, em http://www.nomad.pt/birmania-com-jorge-vassallo
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