24/10/2004

MUDANÇA DE ARES

Duas semanas depois, fui dar uma volta.

Nao, nao estou farto de Bombaim - das jantaradas, das idas ao cinema, ao teatro ou a exposicoes de pintura. Nem das sessoes de bowling, das noitadas de karaoke, dos passeios familiares em Juhu Beach. Nao!, nao estou farto das festas nem das noites mais calmas, ah conversa ate as tantas em casa de alguem. A rotina de Bollywood tem qualquer coisa que agarra, nao me perguntem o que. E nao sao so os programas, mas tudo ah volta: as combinacoes e as mudancas de planos ah ultima da hora, todos os imprevistos, as muitas idas e vindas de riquexo - adoro.

Nestes ultimos 9 dias celebrou-se o Navrati, toda a India estava em festa, e la fui eu trajado a rigor para a danca dos pauzinhos, milhares de pessoas em conjunto a celebrar nem sei bem o que, aqui ha sempre motivos para festejar. E quando acabou o Navrati, foi feriado nacional para uma especie de ano novo, nao sei bem o que. Pelo meio houve um Festival da Forca Aerea, em Marine Drive, com os avioes a fazer acrobacias e a razar a multidao de 500 mil pessoas; houve eleicoes e "dias secos"; mataram um dos maiores terroristas da India, numa troca de tiros na selva; estrearam mais nao-sei-quantos filmes novos; acompanhei as filmagens de outros tantos... a India nao para, Bombaim muito menos, e a rotina de Bollywood baseia-se numa especie de "imprevistos previsiveis". Ou seja, nao contes com nada, porque tudo pode acontecer.

Mas como estava a dizer quando comecei, resolvi ir dar uma volta. Deixei Bombaim por uns dias, estou agora em Jaipur, que tambem nao eh grande novidade para mim - no ano passado vim aqui umas quatro ou cinco vezes. Cheguei ontem e tenho estado com o Ishak e Cia. (Manel, Kamal e Foca, abracos para todos!), amanha provavelmente vou para Mount Abu ou outro sitio qualquer no Rajastao. O meu plano inicial era ir mais para cima, para Manali, Dhramasala ou Armitsar, mas parece que o tempo esta pessimo por la, nao vale a pena, tenho de deixar para outra oportunidade.

Ontem ah noite fui ver um filme de terror indiano, uma mistura do "The Others" com o "Shining" e o "Sexto Sentido"... e ainda uma pitada do "Thriller" do Michael Jackson. Um fartote, portanto. Mas com muitos sustos a mistura, acreditem. Eu estava chocado com os pais e maes que traziam as criancinhas para este tipo de filmes, nao sei como eh que eh possivel... ate bebes de colo havia na sala, e obviamente com tantos gritos e sustos e efeitos sonoros, as criancas passaram a sessao a chorar. Mas o melhor foi quando o filme parou a meio, acenderam-se as luzes e apareceram alguns actores do filme, a perguntar se estava toda a gente a gostar da historia, se estavamos com medo, e depois ainda cantaram uma musica ao vivo, a capella, para promover um filme que vai estrear pra semana. E depois retomou-se normalmente com o filme... e viva Bollywood!!!

15/10/2004

NA "QUINTA DA CELEBRIDADE"

Era uma vez uma familia goesa que mudou o apelido Felizardo para Fizardo. Foram viver para Bombaim e tiveram um filho e uma filha. O rapaz, chamado Abbey, comecou a trabalhar em producao musical e a certa altura saltou da sombra e quase sem dar por isso era uma estrela pop com fans histericas nos concertos e esse tipo de rotinas. Quando juntou umas massas extra, comprou um bocado de terra no meio da selva, a 100km da cidade. Quase dois anos, tinha feito boas amizades com os locais e propos sociedade a um deles. Compraram 11 cabras, hoje tem 63. Diz que vai comprar um tractor, arranjar a casa para quando casar e fazer mais uns telediscos para garantir umas massas.

E foi nesta quinta que passamos os ultimos dias.

A quinta do Abbey foi o melhor que podia ter acontecido nestes dias de caos e loucura urbana. Depois das festas-filmagens-jantaradas, apetecia-me sair um bocado de Bombaim. E aquele passeio a Pune para ver o concerto dele, por muito giro que tenha sido, soube a pouco. Estes dois dias de paz foram uma delicia: muito descanso e boa vida, aprendi um jogo que quero levar para Lisboa, vai ser um sucesso (nao me lembro do nome); passeamos as cabras, fomos buscar ovos ao galinheiro e vegetais a aldeia mais proxima... e pescamos caranguejos ah noite. Foi pouco tempo, dois dias nao eh nada, mas ja estamos a combinar nova escapadela ah quinta da celebridade!

13/10/2004

AGENDA PREENCHIDA

Acabei de chegar de Pune, uma cidade a 3 horas de Bombaim. Fui para la com dois amigos, um deles eh cantor e tinha um espectaculo no Taj Blue Diamond, o melhor hotel da cidade. Saimos ontem de manha, passamos a tarde no relax e ah noite la fomos ao concerto do Abbey, que eh uma estrela pop ca do sitio, tipo telediscos na MTV e tudo, e eh um goes muito porreiro que eu ja tinha conhecido no ano passado, mas mal. Sabe dizer "fecha a porta", "domingo" e uma ou outra palavra em bom portugues, que apanhou do avo goes, que falava a lingua de Camoes.

Hoje voltamos para Bombaim, viemos nas calmas, a parar em tudo o que era terrinhas para tomar o pequeno almoco, tirar fotos, almocar, tirar mais fotos... enfim, na boa vida de quem anda em tournee, ate ja estamos a combinar irmos todos juntos a um concerto que ele vai dar em Calcuta no fim do mes.

Daqui a bocado vou jantar a casa de uma amiga minha, o pai dela é um velho realizador "reformado", muitos ja me devem ter ouvido falar do senhor, no ano passado tornou-se um bom amigo e uma especie de guru.

Os meus dias em Bombaim tem sido um bocado monotonos: muitas festas, almocar e jantar fora todos os dias, filmagens e muito cinema... uma macada. No outro dia fomos ver o "Bride and Prejudice", eh bem capaz de tambem estrear por ai, porque eh um filme realizado para o mercado internacional... mas ao bom estilo de Bollywood. Baseado no livro da Jane Austen, "Pride and Prejudice", conta as aventuras de uma familia indiana que quer casar as suas filhas com um ingles e um americano. Enfim, so rir. Muita musica a mistura, cores ao rubro e as maradices indianas pelo meio... um filme muuuuito light, com festinhas em Goa e tudo. :)

E por falar em Goa: "diz que" este ano vao mostrar pela ultima vez o S. Francisco Xavier. Quero ir la ver, obvio. Ainda tenho de investigar as datas, parece-me que eh em Novembro ou Dezembro.

De resto tudo bem, espero que por ai tambem.

Hoje foi dia de eleicoes, nao se fala de outra coisa, e esta semana ha festa todos os dias, porque eh o Navratri, um festival que ainda tenho de descobrir, acho que vou ver amanha.

Domingo vai haver um festival aereo na Marine Drive, vamos la ver se presta para alguma coisa... e depois quero ir a uma exposicao de pintura, nao se fala de outra coisa, supostamente eh muito boa. E depois vou o Benfica/Porto, que vai dar num canal de ca (!!!) e obviamente vou torcer quase como se fosse ao estadio, eheheh. Amanha vou para a quinta do Abbey (o tal que canta na MTV), pescar qualquer coisinha, passear de jipe, talvez cacar. Com cedilha, sff.

E ja vi vacas - muitas!

12/10/2004

AINDA NAO VI VACAS

Mentira: vi uma. Apenas uma - mas onde eh que estao afinal as suas santidades, que no ano passado via por todo o lado, a dormir no meio da estrada ou pacatamente a conversar umas com as outras? Se calhar ando distraido, mais concentrado nas festas e almocaradas, nas filmagens, nos jantares. Se calhar sou eu que ja estou a ficar habituado. Mas isso sao outras historias. Por agora, quero apenas que fique aqui registado: ao terceiro dia em Bombaim, ainda so vi uma vaca na estrada.

Nao tenho muito que contar, ainda. A nao ser as loucuras que sao normais neste cantinho tao especial do mundo. O drama familiar da irma de um amigo meu, que se divorciou e agora tem a familia a massacra-la para voltar para o marido, que a tratava abaixo de cao, tudo em nome da imagem; a comedia que eh a familia de outra amiga, o pai tinha uma loja de vinhos e supostamente eh um expert, mas nem sabia o que era um vinho do Porto, e no fim das contas ate tinha um em casa... no frigorifico! E a tia gorda, gordissima, que me esta sempre a fazer olhinhos e que, segundo os meus amigos, gosta de rapazinhos mais novos... que medo! Muito medo! E o empregado nepales, que nao fala uma palavra de ingles e quer que eu o leve para Portugal. E as aventuras de ainda outra amiga, que esta em Jakarta a trabalhar este mes e anda a ser interrogada pela Interpol, porque parece que o patrao indonesio eh um mafioso do pior. Enfim, nada como voltar a este mundo maravilhosamente louco.

E como ja deve ter dado para perceber, aqui nada de acentuacao. Acabou-se o bom portugues, nada de chapelinhos e til, esquecam as cedilhas e outras mariquices ortograficas. Lembrei-me de pelo menos facilitar um bocadinho com o "e" e o "eh", aceitam-se outras sugestoes.

11/10/2004

LÁ VOU EU!

Já dizia o Sr. Adão, nos bons velhos tempos da Praia Grande:

Lá vou eu! Ora bolas!

Lá vou eu!, para o meio das vacas sagradas e das pintas na testa. Lá vou eu!, para o país em forma de diamante, uma cidade que já foi portuguesa e depois inglesa e agora indiana. Lá vou eu!, para as festas de Bollywood, e quem sabe para umas caminhadas com vista para o Everest, e de certeza para uns demorados banhos no mar tão português de Goa. Lá vou eu!, para o meio do caos e da bosta e dos deuses e do frango com caril e, porque não?, dos Marajás e outras realezas. Lá vou eu!, ver intermináveis jogos de criquete, infinitos filmes indianos, taxis amarelos-e-pretos sem espelhos. Lá vou eu!, para o meio das estrelas de cinema, dos homens santos, dos intocáveis, dos pedintes, turistas e gurus. Ora bolas!

Lá vou eu!, para o aeroporto, daqui a pouco mais de uma hora; e daí a pouco mais de outra, apertem os vossos cintos, tioca a endireitar os bancos. Lá vou eu!

A PEDIDO DE ALGUMAS FAMÍLIAS

Finalmente a famosa fotografia com o Marajá de Jaipur!

Da esquerda para a direita: eu, Foca, Marajá Sawai Bhawani Singh, Manel e o internacionalmente famoso Kamal Hassan.

Mais uma vez parabéns, sua Alteza.


10/10/2004

O MARAJÁ FAZ ANOS

Falta uma semana para me enfiar num avião de regresso de Bombaim - vou passar uns meses à Índia. E passou uma semana desde que fiz anos. Mas o título do primeiro "post" deste blog, apesar de nos remeter para uma festa de anos, não tem nada a ver comigo. Melhor: não tem nada a ver com o meu aniversário.

Estava aqui às voltas com o design deste meu novo blog quando assim-como-quem-não-quer-a-coisa me pus a perguntar aos meus botões: o que é que vou escrever aqui hoje? Não tenho nada de especial para contar: a vida continua mais-ou-menos a mesma, a trabalhar e a contar os dias que faltam para a partida... quando, de repente, uma ideia: e que tal relembrar uma das muitas histórias vividas na Meia-Volta-Ao-Mundo? Um bocadinho de nostalgia nunca fez mal a ninguém; e já-que-fiz-anos, e já-que-tou-de-partida para a Índia... cá vai um lá-mi-ré da já famosa noite em que eu, o Manel, o Foca e o Lencastre (Kamal Hassan para os mais chegados) fomos convidados para o jantar de aniversário do Marajá de Jaipur.

A História reza assim, segundo o meu diário de viagem:

Depois de longa e atribulada viagem num autocarro de Goa para Bombaim, depois de quase-dezoito-horas num comboio a abarrotar até Jaipur, decidimos que precisávamos, para recuperar algum bem-estar físico e mental, de descobrir o sítio mais chique de Jaipur, onde pudéssemos tomar um café, um chá, ou beber um gin tónico. Precisávamos de paz, de um lugar imaculado – precisávamos de mimos. E qual não foi o alívio ao encontrarmos, mesmo ao pé do Hawa Mahal, o Palácio dos Ventos, uma seta a indicar um tal de “Palace Café”.

Será que é preciso dizer mais? Claro que é!

Porque mais que a espectacular esplanada num dos muitos pátios do palácio real, mais que as mesas e cadeiras impecáveis, os copos de vidro transparentes, os talheres onde brilhava o reflexo dos nossos sorrisos. Mais que os guardanapos de linho branco, dobrados com todo o cuidado – com carinho, atrevo-me a afirmar. Mais ainda que os muitos retratos de ilustres convidados, famosos vindos de todo o mundo, príncipes reis presidentes, actores e desportistas de sucesso, la crème de la crème. Estávamos numa esplanada de luxo, é verdade, com música ambiente e empregados fardados, tudo a rigor e ao mais requintado estilo colonial. Um rapaz a dançar e a abanar o pescoço para a esquerda e para a direita, um homem com um bigode enorme sentado no chão, a tocar cítara; ambos vestidos como mandam as regras – tudo pensado ao milímetro, tudo ao segundo. Mas mais que todo este luxo... o melhor de tudo foi depois de pedirmos a conta, já preparados para enfrentar o trânsito de volta ao hotel, quando um dos empregados se aproxima da nossa mesa e, cheio de cerimónia, nos explica que Sua Excelência, o Marajá de Jaipur, faz anos.

Muitos parabéns, portanto. O senhor completava naquela noite setenta e três primaveras... e a festa (meus senhores, a festa!) estava prestes a começar. Sim, uma festa... um marajá... um palácio real... tudo ali ao lado. Ali mesmo ao lado.

"Would you like to see the cerimony for the Maharaja’s birthday?"

Deixa cá ver: um palácio real no Rajastão... um marajá à antiga, com turbante e tudo... é convite que se recuse? Muito obrigado, bora lá ver isso.

Belisquem-nos, estaremos a sonhar? Seguimos o nosso anfitrião para dentro do palácio, atravessamos um corredor e outro pátio, mais um corredor e mais outros pátios, e depois um lugar cheio de cadeiras estrategicamente arrumadas e um palco onde já estavam sentadas várias pessoas... incluindo o menino-dos-anos.

Senhores e senhoras, o Marajá Sawai Bhawani Singh em pessoa.

Com turbante e tudo.

Sentámo-nos a ver a cerimónia, deram-nos o programa da noite e ali ficámos a assistir a uma espécie de entrega de prémios, onde as pessoas que mais se destacaram ao longo do ano eram condecoradas pelo senhor de turbante. Uma espécie de entrega dos Óscares com danças típicas e as cores e sons do Rajastão. Passou-se uma hora nisto, talvez um pouco mais, não fiz contas... e nós, para ser muito sincero, começávamos a ficar ligeiramente enfadados. Claro que tínhamos gostado da experiência, afinal não é todos os dias que se vê um Marajá ao vivo; mas começava a ficar tarde, estávamos cansados da viagem, tínhamos fome, queríamos voltar para o hotel.

Prestes a dar-de-frosques, acaba a cerimónia. O empregado do café vem ter connosco:

"The Maharaja will be honoured if you stay for dinner…"

Ou, por outras palavras... não, não há palavras! Há momentos, e aqueles que se seguem são dos muito especiais – daqueles que nenhum dos quatro imaginou alguma vez viver. Daqueles a recordar vezes sem conta, dos que se contam aos netos, dos que se lembram sempre a rir e com uma nostalgia enorme. E sem querer entrar em grandes exageros: estes foram momentos quase históricos, que sem dúvida marcam esta longa aventura e a elevam a outras dimensões.

Mas continuemos:

Um jantar no Palácio de Jaipur, por ocasião do aniversário de Sua Excelência, o Marajá Sawai Bhawani Singh! Um cenário a fazer lembrar as Mil e Uma Noites, num pátio enorme cor-de-rosa rodeado por paredes e torres, centenas de janelas rigorosamente trabalhadas, e no meio uma espécie de alpendre (que insulto, explicado assim!) onde estavam expostas algumas das glórias da cidade, de conjuntos de armas a manuscritos e pinturas, e ainda (e só!) as duas maiores peças de prata do mundo! Dois vasos enormes de prata puríssima, mandados construir em 1902 pelo Marajá Madho Singh II, por ocasião da sua ida a Londres, para assistir à coroação do Rei Eduardo. E porquê vasos tão grandes? Porque durante a sua estadia de quatro meses em Inglaterra, o senhor ia precisar de água sagrada do Ganges em quantidade suficiente para tomar banho... todos os dias!

Mas voltando ao jantar propriamente dito:

Entre as mais conceituadas individualidades da cidade e do Rajastão, quatro portugueses. Nós. Vestidos de t-shirt e calções, entre fatos turbantes saris... uns maltrapilhos, mas todos vaidosos. Uma chamuça aqui, uns pastéis ali, água para todos porque nestas paragens não se bebe álcool. E depois foi ver o Marajá a passear-se entre os convidados, muitos sorrisos e vénias, toda a gente a beijar-lhe os pés em sinal de respeito, o senhor e a respectiva esposa a sorrir e a agradecer. Quando finalmente nos vimos cara-a-cara com o real menino-dos-anos, este estica vigorosamente o braço, não dá sequer uma hipótese de nos baixarmos, e toma lá um bacalhau a cada um. Muitos parabéns e muitos dias destes, e como quem não quer a coisa:

"Your Highness, can we take a picture with you?"

E foi isso mesmo que aconteceu: tirámos uma fotografia. Melhor – tirámos a fotografia: os quatro com o Marajá de Jaipur, lado a lado em pose de estado.