Falta uma semana para me enfiar num avião de regresso de Bombaim - vou passar uns meses à Índia. E passou uma semana desde que fiz anos. Mas o título do primeiro "post" deste blog, apesar de nos remeter para uma festa de anos, não tem nada a ver comigo. Melhor: não tem nada a ver com o meu aniversário.
Estava aqui às voltas com o design deste meu novo blog quando assim-como-quem-não-quer-a-coisa me pus a perguntar aos meus botões: o que é que vou escrever aqui hoje? Não tenho nada de especial para contar: a vida continua mais-ou-menos a mesma, a trabalhar e a contar os dias que faltam para a partida... quando, de repente, uma ideia: e que tal relembrar uma das muitas histórias vividas na Meia-Volta-Ao-Mundo? Um bocadinho de nostalgia nunca fez mal a ninguém; e já-que-fiz-anos, e já-que-tou-de-partida para a Índia... cá vai um lá-mi-ré da já famosa noite em que eu, o Manel, o Foca e o Lencastre (Kamal Hassan para os mais chegados) fomos convidados para o jantar de aniversário do Marajá de Jaipur.
A História reza assim, segundo o meu diário de viagem:
Depois de longa e atribulada viagem num autocarro de Goa para Bombaim, depois de quase-dezoito-horas num comboio a abarrotar até Jaipur, decidimos que precisávamos, para recuperar algum bem-estar físico e mental, de descobrir o sítio mais chique de Jaipur, onde pudéssemos tomar um café, um chá, ou beber um gin tónico. Precisávamos de paz, de um lugar imaculado – precisávamos de mimos. E qual não foi o alívio ao encontrarmos, mesmo ao pé do Hawa Mahal, o Palácio dos Ventos, uma seta a indicar um tal de “Palace Café”.
Será que é preciso dizer mais? Claro que é!
Porque mais que a espectacular esplanada num dos muitos pátios do palácio real, mais que as mesas e cadeiras impecáveis, os copos de vidro transparentes, os talheres onde brilhava o reflexo dos nossos sorrisos. Mais que os guardanapos de linho branco, dobrados com todo o cuidado – com carinho, atrevo-me a afirmar. Mais ainda que os muitos retratos de ilustres convidados, famosos vindos de todo o mundo, príncipes reis presidentes, actores e desportistas de sucesso, la crème de la crème. Estávamos numa esplanada de luxo, é verdade, com música ambiente e empregados fardados, tudo a rigor e ao mais requintado estilo colonial. Um rapaz a dançar e a abanar o pescoço para a esquerda e para a direita, um homem com um bigode enorme sentado no chão, a tocar cítara; ambos vestidos como mandam as regras – tudo pensado ao milímetro, tudo ao segundo. Mas mais que todo este luxo... o melhor de tudo foi depois de pedirmos a conta, já preparados para enfrentar o trânsito de volta ao hotel, quando um dos empregados se aproxima da nossa mesa e, cheio de cerimónia, nos explica que Sua Excelência, o Marajá de Jaipur, faz anos.
Muitos parabéns, portanto. O senhor completava naquela noite setenta e três primaveras... e a festa (meus senhores, a festa!) estava prestes a começar. Sim, uma festa... um marajá... um palácio real... tudo ali ao lado. Ali mesmo ao lado.
"Would you like to see the cerimony for the Maharaja’s birthday?"
Deixa cá ver: um palácio real no Rajastão... um marajá à antiga, com turbante e tudo... é convite que se recuse? Muito obrigado, bora lá ver isso.
Belisquem-nos, estaremos a sonhar? Seguimos o nosso anfitrião para dentro do palácio, atravessamos um corredor e outro pátio, mais um corredor e mais outros pátios, e depois um lugar cheio de cadeiras estrategicamente arrumadas e um palco onde já estavam sentadas várias pessoas... incluindo o menino-dos-anos.
Senhores e senhoras, o Marajá Sawai Bhawani Singh em pessoa.
Com turbante e tudo.
Sentámo-nos a ver a cerimónia, deram-nos o programa da noite e ali ficámos a assistir a uma espécie de entrega de prémios, onde as pessoas que mais se destacaram ao longo do ano eram condecoradas pelo senhor de turbante. Uma espécie de entrega dos Óscares com danças típicas e as cores e sons do Rajastão. Passou-se uma hora nisto, talvez um pouco mais, não fiz contas... e nós, para ser muito sincero, começávamos a ficar ligeiramente enfadados. Claro que tínhamos gostado da experiência, afinal não é todos os dias que se vê um Marajá ao vivo; mas começava a ficar tarde, estávamos cansados da viagem, tínhamos fome, queríamos voltar para o hotel.
Prestes a dar-de-frosques, acaba a cerimónia. O empregado do café vem ter connosco:
"The Maharaja will be honoured if you stay for dinner…"
Ou, por outras palavras... não, não há palavras! Há momentos, e aqueles que se seguem são dos muito especiais – daqueles que nenhum dos quatro imaginou alguma vez viver. Daqueles a recordar vezes sem conta, dos que se contam aos netos, dos que se lembram sempre a rir e com uma nostalgia enorme. E sem querer entrar em grandes exageros: estes foram momentos quase históricos, que sem dúvida marcam esta longa aventura e a elevam a outras dimensões.
Mas continuemos:
Um jantar no Palácio de Jaipur, por ocasião do aniversário de Sua Excelência, o Marajá Sawai Bhawani Singh! Um cenário a fazer lembrar as Mil e Uma Noites, num pátio enorme cor-de-rosa rodeado por paredes e torres, centenas de janelas rigorosamente trabalhadas, e no meio uma espécie de alpendre (que insulto, explicado assim!) onde estavam expostas algumas das glórias da cidade, de conjuntos de armas a manuscritos e pinturas, e ainda (e só!) as duas maiores peças de prata do mundo! Dois vasos enormes de prata puríssima, mandados construir em 1902 pelo Marajá Madho Singh II, por ocasião da sua ida a Londres, para assistir à coroação do Rei Eduardo. E porquê vasos tão grandes? Porque durante a sua estadia de quatro meses em Inglaterra, o senhor ia precisar de água sagrada do Ganges em quantidade suficiente para tomar banho... todos os dias!
Mas voltando ao jantar propriamente dito:
Entre as mais conceituadas individualidades da cidade e do Rajastão, quatro portugueses. Nós. Vestidos de t-shirt e calções, entre fatos turbantes saris... uns maltrapilhos, mas todos vaidosos. Uma chamuça aqui, uns pastéis ali, água para todos porque nestas paragens não se bebe álcool. E depois foi ver o Marajá a passear-se entre os convidados, muitos sorrisos e vénias, toda a gente a beijar-lhe os pés em sinal de respeito, o senhor e a respectiva esposa a sorrir e a agradecer. Quando finalmente nos vimos cara-a-cara com o real menino-dos-anos, este estica vigorosamente o braço, não dá sequer uma hipótese de nos baixarmos, e toma lá um bacalhau a cada um. Muitos parabéns e muitos dias destes, e como quem não quer a coisa:
"Your Highness, can we take a picture with you?"
E foi isso mesmo que aconteceu: tirámos uma fotografia. Melhor – tirámos a fotografia: os quatro com o Marajá de Jaipur, lado a lado em pose de estado.