Quem nos falou pela primeira vez do wrestling em La Paz foi
o Rodrigo, o chileno com quem ficámos em Santiago:
"Não podes perder, é um espectáculo, não sei muito bem
onde fica mas perguntas na rua que toda a gente sabe."
Vá-se lá perceber porquê, fiquei com a sensação de que havia
qualquer coisa de ilegal, de proibido - onde só alguns tinham acesso. Qual não
foi a minha surpresa quando, logo à entrada do meu hotel em La Paz, dei de
caras com um cartaz na parede, em jeito de cartoon,
anunciando o "Cholitas Wrestling".
Confesso que as minhas expectativas caíram abruptamente,
fiquei um bocado desiludido por ser um programa tão turístico, esperava algo
mais crú... mas não desisti, parecia-me tudo tão insólito, tão kitsch, tão
"fora". E assim foi: reservámos o nosso lugar no tour de domingo à
tarde.
O autocarro veio buscar-nos à hora marcada e ainda apanhámos
outros turistas nos hoteis ali à volta: americanos a falar aos berros de
pastilha elástica na boca; israelitas meio-hippies, meio-cool, todos vestidos
de igual, com casacos "tradicionais" de lã de alpaca e padrões
andinos; japoneses tímidos a fotografar tudo o que mexia do lado de fora da
janela. E este tuga, e este indiano, a sorrir e a pensar "onde é que nós
nos metemos".
Parámos num miradouro a meio caminho de El Alto, onde nos
"deram" cinco minutos para tirar fotografias à cidade, vista de cima.
À chegada ao "estádio", o driver
explicou-nos mais ou menos como funcionava o programa, lembrando que quem
quisesse ir embora mais cedo teria de ir por sua conta. Os israelitas
encontraram ali uma desculpa para "mandar vir", e começaram a
discutir que queriam ir embora mais cedo, mas a agência tinha que pagar o
transporte, etc. Odeio dizer isto, mas é verdade: típico.
Mas vamos ao que interessa. Senhoras e senhores, o
espectáculo está quase a começar. Entrámos num pavilhão quase cheio: nas
bancadas havia família locais, velhos e crianças à mistura, muitas pipocas e
algodão doce, sorrisos e máquinas fotográficas; e nas cadeiras, junto ao ringue,
eramos quase todos estrangeiros, quase todos com a mesma expressão incrédula,
ninguém sabia muito bem ao que vinha.
Que palhaçada!
Literalmente, porque o primeiro lutador a entrar era um
palhaço. Com direito a florzinha que dispara água, nariz redondo vermelho,
sapatos compridos. Mas havia algo de mórbido no palhaço, e cedo descobrimos que
era o mau da fita, no primeiro combate. Ao mesmo tempo engraçado (o público ria
às gargalhadas com o teatro), ao mesmo tempo perigoso (o público gritava e
insultava-o quando fazia batota). E eu estava estupefacto com tudo aquilo,
porque esperava um combate "a sério" e afinal estava a assitir ao
programa familiar de domingo.
Os clichés do
wrestling estavam todos presentes. Os lutadores muito melodramáticos, sempre
muito raivosos, muito surpreendidos, a sofrer, a gritar, a roubar o microfone
ao árbitro para clamar justiça, para jurar vingança. Os truques muito
ensaiados, o árbitro escandalosamente parcial, o mauzão a usar a violar as
regras e a ética e quaisquer códigos de honra, o bonzinho a sofrer até ao fim,
a levar um "enxerto de porrada" para, no final, dar a volta à situação
e em dois ou três golpes ganhar, para alegria das bancadas.
E à terceira luta: as cholitas.
Só rir!
Da entrada triunfal com direito a banda sonora e aplausos, à
luta dentro do ringue, fértil em voos picados, cabelos puxados, gritos gritados
e muita pancadaria ensaiada... a sério. Só rir.
E depois foi cholita contra homem mascarado, cholita contra
com o árbitro, e um anão corcunda à mistura... isto é um autêntico circo, voam
cascas de banana e cadeiras, os lutadores metem-se com os espectadores, várias
vezes roçamos o limite do descontrolo e do espectáculo, chego a temer pela
minha integridade. Uma cholita sai do ringue com um fio de sangue na testa, um
dos lutadores é lançado pelo seu adversário para cima das pessoas, há crianças
aos gritos, mulheres nas bancadas a abanar-se com leques, vendedores de pipocas
a passar entre as filas apertadas de cadeiras, alguém levanta-se e espeta com
um bolo de chantilly na cara de um dos lutadores, ele irrita-se e começa a
atirar bolo para toda a gente... onde é que eu estou?, onde é que eu estou?!
Tudo acabou em bem. Confesso que nas últimas lutas já estava
um bocado farto, o espectáculo não perdia nada se tivesse menos meia hora. No
ringue ficaram prometidos novos duelos para o próximo domingo, mas por essa altura
conto estar noutras alturas, num registo completamente diferente, em Machu
Picchu.
Valeu a pena. Não tinha nada a ver com aquilo que eu estava
à espera, mas valeu mesmo a pena. Que tarde!
No regresso ao hotel, parámos novamente no miradouro, para
mais uma sessão de fotografias. À nossa frente a cidade espraiava-se no escuro,
feita de mil luzinhas e sons. Que vista! Que paz.