20/10/2020

A OPORTUNIDADE FEZ O LADRÃO?

Continuando com as peripécias do assalto deste fim-de-semana:

 

Estava uma pilha de nervos, quando o meu amigo Rodrigo chegou, pouco depois de eu lhe ligar. Trazia uma garrafa de vinho branco mas, sinceramente, só dei por ela muito depois. Tentámos ligar para o meu telefone: estava desligado. Virei a revirei a casa, na vã esperança de o encontrar – mas nada. Tinha mesmo desaparecido. Ainda activei o “find my phone”, mas sem sucesso.

 

“É só um telefone”, “é só um telefone”, dizia a mim próprio ao passar a pente fino a casa, enquanto o Rodrigo me dava uma descompostura por ter confrontado o ladrão, “ele podia estar armado, tiveste sorte, podia ter corrido pior”. E tinha razão.

 

Saímos para a rua, demos uma volta ao quarteirão, espreitámos para dentro de quase todos os caixotes do lixo, por baixo de alguns carros e na zona em redor da minha casa. Nada.

 

De volta ao meu pátio, apercebemo-nos que o ladrão tinha deixado cair um casaco. O que achei estranho, porque ele levava outro na mão. Fui logo verificar se me faltava roupa, mas estava tudo em ordem no quarto, para além das gavetas da mesa de cabeceira escancaradas.

 

Também estava um livro no chão, junto às escadas – o tal que ele deixara cair, no meio da zaragata. E antes de prosseguir com o relato, meu caro seguidor, deixa-me já dizer-te que o livro é a chave de todo o mistério.

 

Mas não te ponhas já a congeminar teorias: porque não, não era um dos meus livros. E o larápio não era um fã desesperado por ser o primeiro a ler o meu livro novo, “Um brinde ao canibal”, o tal a que se refere a campanha de crowdfunding da PPL, aqui; e que ainda estou a escrever. Quase a acabar, mas ainda a escrever.

 

E também não era um fanático à procura de cópias grátis dos meus livros.

 

Nada disso. O ladrão, na minha modesta opinião, era/é um triste qualquer que está a viver na rua, provavelmente por causa desta crise que estamos a passar. O “segundo casaco”, o tal caído no chão, não era mesmo um casaco: era uma espécie de capucho de flanela, com hoodie e capa – como uma protecção extra, para vestir por cima do casaco em noites de frio. E o livro...

 

Permite-me expor a minha teoria, então.

 

O gatuno estava a vaguear pelas ruas da cidade, à noite, quando nos viu a sair pela rua acima, deixando o portão aberto. Provavelmente entrou, à procura de algum abrigo, ou só para ver o que encontrava – e, ao chegar ao pátio e olhar pela janela aberta, viu o telefone em cima do sofá. Nem percebeu que a porta de casa, do outro lado da esquina, estava aberta. Talvez tenha perguntado “está alguém em casa?”, ou talvez não. Mas esgueirou-se pela janela, e ao fazê-lo deve ter pousado o joelho em cima do tal livro, rasgando-o. Entrou, segurou no livro para ele não cair, apanhou o telefone e quando ia a sair outra vez, ouviu-me a fechar o portão e a vir para casa, fugindo para a ponta oposta daquela: o meu quarto. Mais uma vez, nem deve ter dado pela porta aberta. Ou deu, mas teve medo que eu o apanhasse em flagrante. Ou seja, foi para o quarto e eu entrei em casa. Enquanto eu procurava pelo telefone na sala, abriu as gavetas da mesa de cabeceira e, não encontrando nada, esgueirou-se para fora, na esperança de fugir sem eu dar por isso. E nem se lembrou de largar o livro, com o stress. Só que, quando estava a saltar pela janela, eu voltei a sair de casa – e o resto já tu sabes.

 

O Rodrigo voltou para casa às cinco e meia da manhã, depois de acalmarmos um pouco ao sabor do branco fresco que trouxe. Às seis e meia, não conseguindo adormecer, lembrei-me que tinha um telefone fixo em casa. Nunca o usei, nestes quase quatro anos. Liguei para a Polícia, felizmente nunca me esqueci que o número de Lisboa é 21POLICIA. Passaram-me à esquadra mais próxima, que me pediu para esperar à porta, pois não tenho campainha. Esperei vinte minutos e nada. Liguei outra vez. Esperei outros vinte e nada. Liguei outra vez. Ainda comecei a lavar loiça, com medo que os polícias refilassem com o facto de terem estado mais do que cinco pessoas em casa. Que nervos – mas logo parei, rindo de mim próprio, como se eles fossem ligar a isso, numa situação dessas.

 

Chegaram às oito da manhã. Preenchi o que tinha a preencher, descrevi o suspeito e relatei toda a experiência. No fim, um dos polícias explicou-me que tinha omitido a parte dos socos, “porque é melhor assim”. Obrigado. E depois elogiou-me a casa e o pátio, “está muito giro, nem parece que vive na cidade”. Pois é, eu sei – e valorizo tanto este meu cantinho aqui escondido, onde posso estar sempre de porta e janelas abertas.

 

Não vai ser já, este regresso a uma confiança cega. E não sei se voltarei a ter o mesmo à-vontade que antes. Mas não vou ficar refém deste acontecimento, recuso-me a isso. Como tenho explicado a quem me tem enviado mensagens de apoio (e obrigado a todos!), sou muito pragmático quanto ao que aconteceu. Estou aqui há quatro anos e nunca vivi nada que se aproximasse a esta situação. Não vai ser uma combinação de azares e tristezas que vai mudar isto. Pode abanar, pode abalar... mas não me deita abaixo.

 

Podia ter sido pior? Podia.

 

E podia ser ainda pior que isso. Podia estar no lugar do triste desesperado que arriscou muito mais, ao entrar por aquele portão aberto.

2 comentários:

www.chicute.com disse...

Thanks for sharing A OPORTUNIDADE FEZ O LADRÃO.

Maria da Graça Reis disse...

KKKK!!! Já vi que vc não mora no Brasil. Por aqui,eles podem te mata por um simples celular ou por uma outra banalidade.