04/04/2020

FUI DAR UMA VOLTA (AO SUPERMERCADO)

Acordei com o coração aos pulos e uma excitação quase infantil, sensações que me fizeram recordar outra manhã, há mais de trinta anos - a do dia em que participei no Clube Amigos Disney, da RTP1, que era apresentado pelo Júlio Isidro. Lembro-me de estar nervoso porque íamos "à televisão". Lembro-me perfeitamente de ir a condizer com a minha irmã Joana, Cenoura dos pés à cabeça, a minha mãe tinha esta mania de nos vestir de igual. E lembro-me também da banda que tocou chamar-se GNR, achei estranho porque tinham o mesmo nome do jipe da polícia de Sintra, e o cantor era muito alto e excêntrico, nunca tinha visto ninguém assim.


Mas voltando ao primeiro de Abril do ano Vinte-Vinte: completei, finalmente!, os catorze dias de isolamento social, ou prisão domiciliária, ou castigo - chama-lhe o que quiseres - desde o meu dar-de-frosques da Índia. Parecia mentira, mas tinham passado duas semanas sem sair de casa (uma vez para pôr o lixo, à noite, mas fui a correr e voltei logo, prometo), sem ver ninguém a não ser uns amigos que no outro dia passaram para dizer olá, ao portão. De resto: casa. Casa. Casa. A namorá-la, a mimá-la e a pô-la (mais) bonita, a viajar em cada recanto e nas histórias que contam as coisas que a enchem. A ler e a escrever, a organizar os arquivos de fotos no computador, a cozinhar petiscos de vários países (como já deves ter reparado no Instagram), a pôr a conversa em dia com amigos, no WhatsApp; a aprender a saudar o sol, de manhã e a meditar - nem que seja cinco minutos. Só me faltou cravar riscos na parede, com o canivete.

Duas semanas, my friend. E apesar de saber que o cenário não vai mudar por-aí-além, nos próximos tempos, pois o planeta mantém-se em modo Apocalipse, já é um alívio poder ir à rua, nem que seja só para ir às compras, ou para passar nos Correios e enviar os livros que entretanto me vão encomendando.

Fora isso, e como diz o hashtag: stay the fuck home.


Acordei um bocado ansioso, portanto. E excitado, como já disse. Tinha planeado uma viagem cheia de perigos e emoções. Arrisquei a melhor fatiota de domingo, perfumei-me e meti os livros no carrinho das compras. Enfiei a máscara na cara, ou a cara na máscara. E fui dar uma volta.


Confesso que estava à espera de ver menos pessoas na rua. Muito menos, aliás. É verdade que a cidade está muito vazia. Tudo fechado. Poucos carros a circular. Ouvem-se os passarinhos e a poluição baixou. Certo. Mas vi muita gente. Parecia mais Agosto do que propriamente o Faroeste em dia de duelo. Mas o pior, além daqueles que estavam claramente a ir-às ou a voltar-das compras, ou a passear o cão, ou a ir para o trabalho, foi a quantidade de velhotes a passear, muitos sem máscara - e não sei se é por problemas de ordem técnica com os aparelhos de audição, Alzheimer ou só teimosia, mas ó velhinhos: a não ser que sejam adeptos de desportos radicais ou estejam a praticar algum tipo de eutanásia-free-style, não me parece que seja propriamente o momento para passeiozinhos. Além de ser uma atitude muito pouco solidária com todo o cenário actual: desde os profissionais de saúde que estão a "dar o litro" e muito mais, para tentar apaziguar o bicho; às pessoas que pura-e-simplesmente ficam em casa, com todo o transtorno que isso pode causar, para não fazerem parte da estatística e da cadeia de infeções e doentes.


Ao cruzar-me com outras pessoas na rua, notei que a maior parte baixava os olhos. Eu fiz o mesmo a maior parte das vezes, admito. Como se estivesse envergonhado por estar fora de casa. Como num sonho em que de repente percebes que estás nu, numa situação qualquer que não-tem-nada-a-ver. A sério: sentia-me um transgressor, observado, culpado de alguma coisa - e acredita que fiz-o-que-tinha-a-fazer o mais depressa que pude, correios, supermercado e olhar-à-volta-e-respirar-fundo, e ala pra casa, triste e revoltado porque faz-me falta o mundo e as suas paisagens, as pessoas e as sensações; mas mais-ou-menos conformado com o facto de saber que não estou sozinho nesta tempestade. E não: não acho que estamos todos no mesmo barco - mas estamos claramente a atravessar o mesmo mar. Com tudo o que isso implica para o Indivíduo, que é ao mesmo tempo membro de uma Família, parte de uma Comunidade, membro da Sociedade.

Que grande cambalhota esta, hem?

Com duplo mortal encarpado e pirueta invertida. Pontuação máxima, sim senhor, recorde olímpico, leva lá a bicicleta e vai-te embora, ó Covid.

Como tu, espero que passe depressa, a Tempestade. Vai passar, não tenho dúvidas. Não sei - ninguém sabe! - o que vem a seguir, mas acredito na sabedoria popular e essa diz-me que a Bonança há de vir.


Já convoquei meia dúzia de deuses hindus, tive uma conversa de homem para homens com o Gautama e o JC, rezei virado pra Meca, fiz oferendas a Yemanjá, Rainha do Mar, Princesa de Aiocá, bati três vezes na madeira, atirei sal por trás do ombro esquerdo, queimei velinhas e incenso, pendurei um daqueles olhos turco atrás da porta. Algum há de funcionar.

E como diz outro hashtag, vamos todos ficar bem.

2 comentários:

Fernando Costa disse...

Gostei e só quero dizer que também tenho essa sensação de culpabilidade e transgressão cada vez que saio à rua para fazer compras. E são muito poucas. Não estás sozinho.

Clara Amorim disse...

É bom ler-te aqui com mais frequência!
Vai dando notícias e encanta-nos com as tuas histórias cheias de humor!
Beijinhos!!!