31/07/2014

MOMENTOS INTENSOS NA TERRA DO KAMASUTRA

Este assalto e perseguições no Porto - esta não foi a primeira vez que vivi emoções fortes, com polícia e ladrões ao barulho, com o Inácio e a Leninha.

Recuemos um bocadinho no tempo e no espaço:

Índia, Março de 2011

Ainda tinha no sorriso e no corpo as coloridas memórias do Holi, o Festival das Cores, que festejara com mais alguns estrangeiros e milhares de indianos nas ruas de Mathura, o lugar onde nasceu o Lord Krishna.

Viajei com uma holandesa para Agra, era a minha terceira vez na cidade do Taj Mahal por isso nem me dei ao trabalho de ficar (mais uma vez) boquiaberto perante aquele assombro de monumento. Fiquei um dia inteiro no hotel a ressacar a festa. E depois fomos para Khajuraho, a terra do Kamasutra, ou pelo menos assim gostam de nos convencer os indianos.

Tinha feito uns contactos no couchsurfing, depois de uma primeira experiência espectacular em Amritsar - e quando chegámos a Khajuraho, esperava-me um rapaz muito magro e um bocado eléctrico, sempre a rir e muito conversador, um bocado habituado demais a estrangeiros para o meu gosto. Acabei por ficar numa guesthouse, mas fiz algumas refeições com a família, deixei que o miúdo nos acompanhasse nos templos, e foi engraçado rever todas aquelas esculturas em posições de forte teor sexual - as tais posições que dizem ter inspirado o Kamasutra.

Até que chegou a Chamuça.

A Chamuça é uma mota com sidecar. Provavelmente já ouviram falar dela: é a mota em que o Inácio e a Leninha viajaram pela Índia durante já-nem-me-lembro-quantos meses.

Tínhamos combinado um encontro para pôr a conversa em dia - e ao meu segundo dia em Khajuraho chegou a Chamuça, o Inácio, a Leninha e a Kashi: sentámo-nos num terraço de um restaurante ao final da manhã... e só nos levantámos ao início da noite. Pequeno-almoço, almoço e jantar - três refeições à mesma mesa, horas a fio a trocar histórias e a partilhar emoções, que dia inesquecível. E depois do jantar: casa que se faz tarde. Estávamos todos no mesma guesthouse, fomos a pé pela estrada, incluindo o tal miúdo que me recebera pelo couchsurfing, que depois seguiria para casa dele.

Mas pouco depois de chegarmos à nossa guesthouse, estávamos a fumar um cigarro no alpendre virado para a estrada, quando de repente apareceu uma mota em alta velocidade, fez uma travagem brusca e veio estacionar mesmo à nossa frente. Os dois ocupantes, condutor e pendura, estavam visivelmente alcoolizados.

E agora, para contextualizar um bocadinho o drama que se vai desenrolar, penso que é importante dar conta de um pormenor relevante: eu já tinha estado em Khajuraho, dez anos antes, quando viajara pela primeira vez na Índia. Tínhamos conhecido um grupo de indianos que nos tentou vender nem-me-lembro-o-quê, mostraram-nos um orfanato que o irmão de um deles tinha, jantaram connosco uma vez. Cheguei a manter contacto com um deles, durante pouco mais de um ano, mas acabámos por nunca mais falar, e quando voltei a contactá-lo antes deste meu regresso a Khajuraho, tinha-se casado com uma espanhola e vivia em Bilbao. Assunto arrumado.

O rapaz do meio é o Charli, que agora vive em Bilbao. O dos óculos escuros é o mauzão da história que conto hoje. A foto tem uns doze ou treze anos.

No meu primeiro dia deste regresso a Khajuraho, ia a passar junto a umas lojas de souvenirs e pareceu-me reconhecer um dos tais "amigos" de há dez anos. Abordei-o e obviamente que ele não fazia ideia de quem eu era, mas eu lembrava-me da cara dele por causa das fotografias da viagem. Enfim: a conversa durou cinco minutos, não levou a conclusão alguma, acabei por voltar ao meu passeio.

Voltemos ao alpendre da guesthouse, à mota que aparece do nada e vem parar mesmo à nossa frente. O pendura que salta para junto de mim é o Pintu, o tal que eu abordei na rua e que não me reconheceu, um dos indianos de há dez anos. Está completamente bêbado, começa a falar numa mistura de hindi e inglês, a rir mas com qualquer coisa de provocador na postura. O amigo dele mete-se com a Kashi, que começa a ladrar. O miúdo magricelas que nos acompanhou pelos templos está com ar assustado. Eu tento dizer algo simpático e apaziguador, porque parece-me realmente haver algo de provocador no discurso do outro. E eis que entre outras palavras em hindi, dirige-se para mim e chama-me benshod.

Do pouco que sei de hindi, uma das palavras é benshod.

Não a vou traduzir aqui, mas acreditem quando vos digo. Não é uma palavra simpática.

Ao que lhe respondi qualquer coisa do género "what benshod, please watch your language" e a partir daqui não sei muito bem como é que as coisas se desenrolaram, foi uma confusão de gritos e empurrões, a Kashi a ladrar e o outro a tentar fazer-lhe sei lá o quê, a Leninha a gritar-lhe em português, o Inácio a tentar acalmar os ânimos, o Pintu a querer bater no miúdo, a dizer que ele lhe tinha roubado o turista dele - eu.

Tentei chamar-lo à razão: lembrei-o que ele nem sabia quem eu era, quando o abordei na rua; que tinham passados dez anos e não havia qualquer tipo de contrato ou obrigação; e que além disso, eu é que tinha entrado em contacto com o outro pelo couchsurfing... mas não havia volta a dar, nem razão nem lógica que o convencessem. Os olhos brilhavam de uma raiva que não encaixava com a situação, o bafo tresandava a whisky barato. A certa altura tentou bater no miúdo, eu tenteu agarrar nele, não-sei-quem disse que ia chamar a polícia, depois o miúdo fugiu e o mauzão libertou-se e foi atrás, apanhou-o na estrada e começou aos pontapés e socos, eu e o Inácio a tentar acabar com aquela anormalidade, a Kashi a ladrar... e de repente sirenes e desaparecem os mauzões e a mota, nós vamos para o hotel a pedido do dono, o miúdo esconde-se connosco e a coisa fica por ali.

Mas na manhã seguinte repetiu-se a dose, apareceu o miúdo e pouco depois o mauzão, e depois o tio do miúdo e os amigos do mauzão, e a certa altura havia cadeiras a voar na estrada, sangue a salpicar o chão, gritaria e insultos e nós a ver, porque agora alguém nos explicara que aquela era uma guerra antiga, qualquer coisa de terrenos e castas, e que nós tínhamos sido só o último pretexto.

Acabou tudo na esquadra, fizemos questão de apresentar queixa mas no final a polícia não aceitou os nossos depoimentos, por muito que insistissemos - tanto drama para nada. Fomos parar à mesma esplanada do dia anterior, agora a tentar perceber o que se tinha passado, também a rir do caricato da situação

E três anos e meio depois: esta noite louca no Porto.

A Leninha acha que temos uma energia qualquer que atrai peripécias destas. Não me parece que seja tanto assim. Mas estou curioso para ver o que vai acontecer daqui a outros três anos e meio. ;)

Olha nós e a Chamuça! :)

2 comentários:

Clara Amorim disse...

Proponho um livro, entre outros, só de peripécias e aventuras...! :-)

Anónimo disse...

Olá,Jorge!
Perco-me uma vez mais nos seus testemunhos maravIlhosos!
Em Outubro perco-me,juntamente com o meu namorado,pela Índia... Numa altura em que as violações em grupo enchem as manchetes jornalísticas, e perante as suas múltiplas idas à Índia, ainda que enquanto homem,parece-lhe arriscado?!