09/10/2013

UMA VIAGEM "DAQUELAS"

As emoções vividas ontem, na viagem de comboio entre Yangon e Mandalay, foram tantas e tão intensas, que nem sei bem por onde começar este post.

Podia começar pelo conforto/desconforto neste comboio sabe-se lá de que tempo, de que lugar. Só rir. Não dormimos nada. Ou talvez devesse arrancar pelo mais lógico: o nosso companheiro de compartimento, o responsável por esta noite ter sido inesquecível, o senhor Wujon Win. Podia falar da vista, da bicharada ao fim da tarde, da simpatia e dos sorrisos. Ou do whisky.

Ou então: começar pelo princípio. Ainda antes de embarcarmos, quando fomos comprar os bilhetes à estação.

Foi logo de manhãzinha, tal como nos pedira o senhor da bilheteira, na noite anterior. Tomámos o pequeno almoço e seguimos directos para a estação, ainda o relógio não marcava as oito da manhã. O comboio partia às três da tarde.

Bons-dias e sorrisos, para onde vão, a que horas, quantas pessoas - o costume. Passaportes, se faz favor. E quinze-vinte minutos depois: o bilhete. Exactamente. Porque não havia sistema informático ou qualquer coisa que se parecesse com um computador... ou uma máquina de emitir bilhetes. Enfim: à antiga. Mas "do antigamente" mesmo, quando as pessoas eram mudas e a preto-e-branco.


Passeámos por Yangon o resto da manhã, almoçámos junto ao hotel e finalizei o que havia a finalizar relativamente à reserva para o grupo da Nomad, que chega dia 20 deste mês. E lá fomos. Entrámos na estação vinte minutos antes da hora de partida, instalámo-nos no compartimento que coincidia com o indicado no bilhete... e à hora marcada, o comboio arrancou.

Não me lembro se já mencionei isto ou não: mas somos três a viajar, neste momento. Comigo está o cúmplice do costume, o Bunty; e a nós juntou-se mais um amigo de Lisboa, o João.

Ou seja: Noves-fora-nada e havia um lugar livre no compartimento de dois beliches.

Livre, não! Que quando lá chegámos, já lá estava um velhote instalado, muito sossegado, passou a primeira meia hora a olhar pela janela. Nem uma palavra.

E nós: parecíamos crianças com um briquedo novo. Ora tira uma foto aqui, ora elogia isto e aquilo, vai dar uma volta aos outros compartimentos, repara nos pormenores mais insólitos. Que filme. A sério: o comboio parecia tirado de um filme de época. Daquelas telenovelas da Globo passadas sabe-se lá onde, sabe-se lá quando.

Muito antigo, arrancou em câmara lenta e assim avançou pela paisagem durante um bom bocado. Pouca-terra, pouca-terra. O nosso compartimento era enorme, os beliches largos e confortáveis. Cortinas compridas e até um pequeno armário de madeira a fazer de mesinha de cabeceira. Muito castiço, o comboio. Mas abanava por todos os lados: nunca andei num comboio assim, nem dava para ler um livro - enjoo certo. Pior que atravessar a Mancha em noite de tempestade.

Ao fim de meia hora, tomei umas notas no telefone. Fui dar uma vista de olhos, antes de escrever este post, agora que "já passou". E ri-me do que escrevi. Profético, no mínimo.

Escrevi assim: "Comprámos uma garrafa de água por 500K aos putos que passam no corredor a vender snacks, bebidas e cigarros, enquanto o comboio não arranca. Sleeper class confortável, espaçosa mas comboio velhote. Muito charme, pelo menos esta primeira meia hora foi deliciosa. O comboio abana imenso. Vamos lá ver."

Ah pois vamos!

Pouco depois de escrever estas palavras, o "abanão" chegou ao cúmulo de levantarmos voo dos nossos lugares, não uma ou duas, nem duas nem três, mas uma série de vezes consecutivas num espaço de poucos segundos. Fizemos filmes e tirámos fotos, rimos às gargalhadas, quase tanto quanto as crianças que viajavam no compartimento ao lado - e com tanta sacudidela, quebrou-se o gelo e o velhote começou a fazer conversa. De onde são, para onde vão...

...e em troca ficámos a saber que o velhote se chamava Wujon Win, tinha 78 anos, três filhas e três filhos, dois em Singapura - e que tinha trabalhado na alfândega birmanesa, pelo que vivera muito tempo na fronteira com a Índia. Chegou a ir a Calcutá e outras cidades - arranhava um pouco de hindi e adorava viajar. E agora que, segundo ele, tinha mais três ou quatro anos de vida; e que os filhos o sustentavam e ele já não precisava de trabalhar: queria viajar.

Como nós: ia a Mandalay.

Mandou vir whisky e cordonizes grelhadas, cervejas e coca-cola. Quisemos pagar, quisemos pedir coisas por nossa conta: nem pensar!

"Vocês são meus convidados, peçam tudo o que quiserem que eu não tenho problemas de dinheiro, hoje é tudo por minha conta. E podem comer tudo à vontade, é tudo bom - se for preciso tenho muitos remédios, também. Americanos."

O velhote era um castiço, quanto mais bebia mais falava, debateu família e política, falou-se de História e Religião, coisas triviais, repetiu-se quinhentas vezes, agradeceu à Sorte por nos termos encontrado, disse que estava "very, very happy" - e nós também, claro.

Foi "daqueles" encontros, a sério.

É difícil descrever tudo o que se passou naquela cabine. Das quatro da tarde às seis da manhã, muito se conversou e muito se riu. Percebíamos pouco mais de metade do que ele dizia, e ele pouco mais de metade do que nós dizíamos. Era preciso repetir tudo duas e três vezes. Mas lá nos entendemos, entre um copo disto e um golo daquilo, e "eu só tenho mais três anos", "não tem nada, mister Win, o mister Win é muito forte, very strong, and very happy."

"Yes, I'm so happyyyy..."







Só rir. E, entretanto, o Myanmar passava lá fora, a paisagem aos saltos, nós empurrados por uma força invisível para este lado, depois para aquele, que louca dança entre o mundo, o comboio e nós. Comemos e bebemos, lá fora escureceu e a certa altura o senhor Win começou a remexer na sua sua mochila e a dizer que tinha "supply".

"Nobody sleeps tonight. I have supply."

Ninguém dorme? Medo.

Imaginámos o doido do senhor Win a tirar um saco de droga da mochila. Supply. Que mais poderia ser? E eis que subitamente ele sorri e tira um rádio de pilhas lá de dentro, estica a antena e começa a tentar sintonizar um postod e rádio:

"English music? Myanmar music? Thailand? What do you like?"

O senhor Win é o maior. Hoje ninguém dorme. Tenho uma surpresa. Festaaaa!

Entretanto o comboio foi atacado por um insaciável e impiedoso exército de insectos. Mosquitos e aranhas, libelinhas e melgas, e tantos outros que não sei nomear. O fim da tarde foi fatídico, e nós não fomos a tempo de fechar janelas e apagar lizes. Que ataque! Não há como descrever, a única palavra que me vem à cabeça é "bíblico". Aliás: eram tantos que resolvemos começar a preparar as camas para depois apagar as luzes e ver se dormíamos, enquanto os insecos se iam embora.

O senhor Win ficou desapontado quando começámos, aos poucos, a recolher às nossas camas. Mas teve de ser. Apagámos as luzes... mas ninguém dormiu. Entre olímpicos saltos dignos de ser registados no livros dos recordes, o combio lá nos abanava para a esquerda e para a direita, para a frente e para trás, para cima e para baixo, e tudo isto ao mesmo tempo, em diferentes velocidades e combinações. Roda nos sentidos do ponteiro, e agora ao contrário, e agita antes de usar, não subestimes o poder da centrifugação.

É isso: centrifugação.

Eis uma palavra que define muito do que foi a noite passada, no comboio.


2 comentários:

Clara Amorim disse...

Pois esta também é uma crónica "daquelas"...!

LV disse...

Um senhor muito castiço este senhor Wujon Win a viajar à pala dos filhos, vou pensar melhor neste assunto e ver se consigo fazer o mesmo ....

E já agora queremos saber no dia seguinte como estavam essas costas com tanto abanão e saltos.
já não têm 20 anos e estas coisas doem .....