"Alma", diz-me a empregada em contra-luz, na varanda cheia de sol, enquanto eu afago a simpática boxer que me veio dar os bons-dias à mesa. "Alma", repete com um sorriso curioso. Levo a chávena de café com leite à boca com a mão direita, sem nunca parar de dar festas à cadela, que se abana toda, cauda tronco e pernas, contorce-se e respira como respiram os boxers, e o meu português para ela é o mesmo que russo, o que interessa é o tom que empresto às palavras "ai tão linda que tu ééés, uma cadela muito linda, muito linda, muito linda" - adora-me.
O hotel onde estou hospedado, em T'bilisi, não é bem um hotel. É uma casa de família, enorme como é suposto serem as coisas antigas, agora adaptada à necessidade de "fazer render". Tem quatro quartos de pé direito altíssimo, mobilados ao gosto de quem viveu anos sob domínio soviético, móveis pesados de madeira que conversam à noite connosco, relógios de parede há muito tempo a dar as mesmas horas, sofás que podiam ser tronos, alguns dourados e muitos cristais, porcelanas, cortinados que escondem mais a rua da gente que a gente da rua. Tudo a querer ser clássico. Este hotel não é bem um hotel, é uma casa que queria ser palácio.
O meu quarto tem duas camas: uma grande e uma pequena. Nos lençóis com flores estampadas, há mensagens em inglês. O da cama grande tem escrito "Merry Christmas"; o outro diz "You're very special to me". São as únicas palavras em inglês que cabem no hotel que não é bem hotel. A velha senhora que ontem me deu as boas-vindas - a dona da casa - fala apenas russo, que para mim é chinês. Os gestos ajudam à comunicação, claro - e uma ou outra palavra em francês são recebidas com um sorriso.
Mas voltemos à sala de estar, que não é bem uma sala de estar. É também escritório, é também sala do pequeno-almoço, é também museu. Numa casa antiga cheia de antigas coisas, esta sala é a jóia mais valiosa do tesouro. As paredes estão literalmente cobertas de quadros.
A velhota que fala russo salpicado de francês é, afinal, uma artista. O velho soalho avisa-me da sua chegada, o que não me impede de continuar a tirar fotografias às paredes. Dou-lhe os bons-dias ao vê-la entrar na sala, retribui-me a simpatia com um sorriso georgiano, orgulhosa pelo meu interesse na sua arte. Explico-lhe por gestos e meias-palavras que gosto muito da sala, começa a falar-me sobre a sua paixão, eu nada entendo mas muito sorrio, bêbado com a criatividade que me rodeia, sorrisos de rainhas e czars, cenas napoleónicas, naturezas mortas, cavalos a correr na floresta e camelos a atravessar desertos, mulheres a olhar o mar, o inevitável S. Jorge a matar o dragão. Até uma grávida nua há. Estas paredes contam histórias, contam uma vida.
Quem me dera falar russo.
Olho em redor, estudo os cantos à casa. Não são só as paredes que contam histórias. Há uma miniatura da Torre Eiffel em cima do armário das loiças. Há um computador ligado e muita papelada em cima da mesa de jantar. Há vários relógios de parede, todos eles parados. Um piano que não deve ser usado há muito tempo, vasos com rosas fresquíssimas, miniaturas de barcos, marinheiros a espreitar de uma janela, molduras sem quadro e quadros sem moldura. Há uma estante com livros em russo, livros em francês, livros em georgiano. Há uns cornos (de que animal serão?) pendurados a um canto, por cima de um sofá que às vezes deve servir de cama, pela disposição das almofadas. Uma ventoinha velha, uma ventoinha nova, um aquecedor a óleo, fotografias a preto e branco de um militar.
A novo sorriso meu, a senhora aponta-me o "balcon" e diz-me qualquer coisa que eu traduzo como "vai lá espreitar". Saio para a luz de uma manhã que parece Lisboa e, entre roupa pendurada, molas e vassouras, descubro pincéis e tinta, descubro cores e misturas de cores, descubro um quadro inacabado. "É o meu atelier", diz-me sem que eu entenda uma única palavra.
Depois chama-me de volta para a sala, a casa range à nossa passagem, mas não é um ranger de queixume, é só uma afirmação de idade, como se fosse preciso lembrar "eu sou antiga, eu sei coisas que mais ninguém se lembra, vi muito e ouvi mais ainda.
A cadela a enrolar-se nas minhas pernas num delírio de mimos que a velhota tenta a custo acalmar. Paramos junto a nada e então vejo duas pinturas em cima do aquecimento central. "Baby", diz-me. O inglês libertou-se dos lençóis e, palavra a palavra, promete conquistar terreno. Os retratos na parede não parecem aprovar a ideia, mas também não me parece que se oponham. Tanto lhes faz, já viram o suficiente para não se importarem com pormenores linguísticos. Quanto às pinturas que a senhora me aponta: são dois desenhos feitos pelo neto. Uma família de artistas, portanto.
De repente tocam à campaínha, acordo de uma viagem sonhada e a velhota já não está ali. Novamente a campaínha, oiço gritos e gargalhadas de uma mulher lá fora a chamar a outra cá de dentro, que não aparece. Decido ir ver o que se passa, entreabro a porta e sou surpreendido por uma tempestade de saudades, duas crianças e uma mulher, nem bons-dias nem quem-és-tu, entram a correr e aos gritos, a casa enche-se de alegria e saudades, prevejo beijos e abraços e estás-tão-crescidoooo, mas não fico para assistir. Recolho-me ao meu quarto, quero escrever um texto sobre este bocadinho de mundo que eu habito, em T'bilisi.
15/07/2011
ESTE BOCADINHO DE MUNDO QUE EU HABITO, EM T'BILISI
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5 comentários:
Adorei! Quero livro :)
Eu também ,amei !!!!
Obrigada Jorge
Tia Guida
Que poética descrição. Adorei. Grande bj
Tia Minan
Este comentário não é bem um comentário... :))
É apenas um grande elogio ao magnífico texto que acabei de ler!!!
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