(ENSAIO SOBRE A MARSHRUTKA)
A paisagem do lado de fora da marshrutka tem suficientes atributos para, por si só, justificar uma crónica. Picos de montanhas cobertos de neve, verdíssimos vales e vertiginosos penhascos, cruas cicatrizes provocadas por deslizes de terras, pacatos rebanhos e respectivos pastores, riachos, quedas-de-água, a estrada a serpentear numa fotografia cheia de adjectivos.
Sim: a paisagem do lado de fora da marshrutka tem suficientes atributos para, por si só, justificar uma crónica. Mas não esta. Esta crónica não é sobre o lado de fora da marshrukta.
Esta crónica é sobre o lado de dentro da marshrutka.
E pergunta o leitor: o que é uma marshrutka?
Uma marshrutka é... hmmm... digamos que a marshrutka está para a Geórgia como o dolmus está para a Turquia. Esclarecido? Talvez não. Recomeçemos, então.
Fui à Wikipedia à procura de uma explicação. Dizia assim:
Marshrutka é um taxi partilhado com rota definida, muito utilizado nos países da ex-União Soviética, nos estados do Báltico e na Bulgária. O papel da marshrutka moderna é similar ao de um minibus, em outros países.
E esta crónica (que já devia ter arrancado mas anda aqui "enrolada" em definições e distracções) é sobre o lado de dentro da marshrutka onde viajei, há pouco mais de uma semana, entre Tbilisi (a capital da Geórgia) e Kazbegi (uma aldeia nas montanhas, no norte do país, junto à fronteira com a Rússia).
Partida. Largada. Fugida.
Dentro desta marshrutka, viajava eu + nove:
1. um amigo georgiano, que conheci no couchsurfing - estudou Turismo na Áustria, fez Erasmus em Espanha, viajou de carro por Portugal e está de partida para um estágio nos Estados Unidos. Uma espécie de nómada moderno, portanto.
2. três beatas a benzer-se constantemente - uma muito calada, sempre a rezar; a outra igualmente silenciosa, mas sorridente e muito curiosa; e a terceira mais conversadora, cheia de entusiasmo, inglês arranhado, sorriso perpétuo.
3. dois peregrinos georgianos - um com ares de brasileiro, outro com ares de russo.
4. um casal de américas, vindos das chuvas de Seattle para visitar a mãe na Ucrânia - e aproveitaram as férias para viajar à volta do Mar Negro, mas parecem ainda mais perdidos que eu.
5. um homem com ar de lobisomem, ou um lobisomem com ar de homem - não percebi muito bem. Cicatrizes num rosto marcado, rugas cheias de histórias, traumas e sucessos, olhos brilhantes mas gastos pelo tempo e pela paisagem. Apenas três ou quatro dentes na boca, mas enormes. Pêlos a sair das mangas, a sair do colarinho, a sair de todo o lado. Mãos enormes, deformadas - mãos de predador.
Entrámos nesta marshrutka em Tbilisi, mas só depois de uma intensa discussão noutra viatura, onde era suposto termos viajado. Tudo por causa de uma pessoa que o condutor queria, à força, encaixar entre nós. Em protesto, o meu amigo austro-hispânico-americano conseguiu convencer sete passageiros a sair da carrinha - e depois de meia hora à procura de outro transporte, com as beatas em permanente oração e a fazer o sinal da cruz de dois em dois minutos, os américas a olhar à volta à procura de bananas e garrafas de água, eu a assitir sorridente a tudo e o lobisomem atento... atento... eis que surge a marshrutka. Esta marshrutka.
Saltámos lá para dentro, pouco depois apareceram os dois peregrinos e lá fomos nós para a estrada. Fiquei a saber que era fim-de-semana de peregrinação, que havia milhares de pessoas a dirigir-se à montanha para rezar e prestar homenagem a algum santo, não-sei-bem-qual, não-sei-bem-porquê. As beatas iam passar a noite a rezar na igreja, os peregrinos iam dar apoio a quem passava a noite a rezar na igreja. Os americanos queriam acampar na montanha e fazer yoga com vista sabe-se lá para onde, o lobisomem sabe-se lá que planos teria... a mim, só me apetecia descansar. Uma cama, duche de água quente e uma janela com vista para a montanha.
A paisagem do lado de fora da marshrutka, como disse, passava cheia de atributos e elaborados adjectivos. Mas esta crónica é, também já disse, sobre o lado de dentro da marshrutka.
E cá dentro fazia-se o sinal da cruz, três vezes de seguida, sempre que surgia na paisagem uma igreja. Cá dentro, sonhavam-se viagens e outros tempos. Aprendiam-se coisas novas, informações valiosíssimas, factos irrefutáveis como:
"O chip dos cartões de crédito são obra do Demo."
Juro que uma das senhoras disse isso.
Pedimos que explicasse, e "como toda a gente sabe, existe um 666 escondido nestes chips. E não são só os cartões de crédito. Os telemóveis também."
Por isso é que a senhora não tinha (como nos explicou) conta no banco, nem telemóvel, nem nada que tivesse um chip. Porque o chip é coisa do demónio, e vamos todos para o Inferno, e temos a alma possuída, etc, etc.
Tudo dito com um sorriso terno e olhos brilhantes. Quase tão brilhantes quanto os do lobisomem, que não pronunciou uma só palavra durante toda a viagem. Sempre atento. Sempre atento.
Os dois peregrinos expressaram a sua curiosidade pelos três estrangeiros (eu e os américas), tentaram contacto, arranharam how-are-yous e where-are-you-froms, foi divertido tentar perceber a história de cada um.
E as beatas benziam-se.
O meu amigo viajado ia cruzando as informações, traduzia-me histórias, irritava-se com as teorias mas não alimentava debates, ia arbitrando o ambiente dentro da marshrutka.
E o lobisomem atento... atento.
A marshrutka parou duas vezes, em toda a viagem. Saímos para esticar pernas, tirar fotografias, fumar cigarros, fazer xixi, apreciar a paisagem. Mas era no regresso à viatura que a verdadeira viagem acontecia. Nos sorrisos de cortesia, no importa-se-que-eu-abra-a-janela, na máquina apontada às montanhas, click click, esta foto vai ficar bem no blog.
Curvas e contra-curvas, de vez em quando um buraco, de quando em vez uma lomba.
E as beatas a benzer-se. Três vezes, vezes sem conta.
Chegámos ao fim da tarde a Kazbegi, quase-quase na fronteira com a Rússia, quase-quase na fronteira da minha paciência. Já fiz viagens (muito) mais longas e (muito) mais desconfortáveis. Mas depois de tanto tempo dentro de autocarros e dolmus, na Turquia, o meu estado de espírito na Geórgia estava muito mais virado para o dolce fare niente. Ou seja, quando finalmente parámos, foi como uma benção de Deus-Nosso-Senhor.
Não me benzi, como fizeram as beatas. Não beijei a moldurinha com a imagem de Jesus, como fizeram as beatas.
Mas sorri ao ver, no topo de um monte com um glaciar em pano de fundo, uma igreja. Que imagem! As nuvens a dançar atrevidas em redor, o sol a pôr-se atrás e a desenhar abstractos jogos de luz e sombra... e o ar fresco, tão fresco que arrepiava.
Bem-vindo a Kazbegi, pensei. E apaixonei-me.