São raríssimas as viagens que gostaria de esquecer. Normalmente, por mais atribulada que seja uma aventura, encontro sempre algo de positivo: uma lição, uma surpresa, um pormenor qualquer que alimenta o optimista que há em mim. Mas tenho que admitir que esse não é o caso da peripécia que hoje partilho contigo. A sério: se pudesse, apagava esta memória do meu arquivo de vivências.
Então não é que apanhei um ladrão em minha casa?!
Aconteceu na passada sexta-feira. Tinha uma jantarada apalavrada com amigos – mas, com o recente galopar do coron’apocalipse e as medidas instituídas pelo Governo durante a semana, decidimos não sair e combinámos um programa mais calminho, só meia dúzia de nós, em minha casa.
O jantar correu como tinha de correr: boa paparoca (modéstia à parte), muita conversa, copos e gargalhadas – e a sensação recorrente de que este poderia ser um dos últimos eventos da temporada, se de repente “isto tudo fechar outra vez”. Ou seja: à medida que as pessoas começaram a ir para casa, os abraços eram especialmente fortes, como se recordassem toda a viagem que são as nossas amizades. E o facto de já estarmos bem bebidos também ajudava, claro.
Os últimos convidados saíram às três e pouco. E antes que a narrativa tome outras direcções, deixa-me explicar-te mais ou menos como é a minha casa.
A minha casa não é uma casa muito comum. É um apartamento mínimo na cave de um prédio: uma sala e um quarto, apenas, mais a cozinha logo à entrada e uma casa-de-banho minúscula. São, na verdade, três pequenos armazéns adaptados. A porta dá directamente para um pátio afundado, nas traseiras do prédio, rodeado por um muro de mais de cinco metros, e o único acesso possível é através de um portão na parte da frente do prédio, que tem uma espécie de corredor/túnel que atravessa o edifício e vem desembocar numas escadinhas para o tal pátio, onde depois fica a minha casa. Ou seja: nos quase quatro anos que aqui já vivi, nunca entrei no prédio propriamente dito, não faço ideia de como seja o hall, sequer – porque entro sempre pelo portão e pelo túnel. E como sou eu o único a viver ali em baixo, tenho no pátio uns chapéus de sol, mesa e cadeiras, etc. Parece que vivo numa aldeia, estou sempre de porta e janelas abertas. Sempre.
Voltando a sexta-feira. Ou sábado, para os mais puristas, visto que passava das três da manhã. As duas últimas pessoas despediram-se, estamos bem bebidos, chamam um Uber e eu acompanho-os à porta. Como não trouxe a chave comigo e estamos à frente do prédio, deixo o portão aberto. A minha zona é muito calma, não se vê ninguém a esta hora.
O Uber nunca mais chegava, um dos meus amigos olhava insistentemente para o telefone e o carro parecia estar às voltas aqui perto. Perdido, portanto. Ligámos-lhe, ele não fazia ideia de onde estava, pareceu-nos mais desorientado que nós, eu ainda tentei explicar como vir aqui ter, mas ele não me pareceu querer assim tanto entender – e acabámos por cancelar o carro. Sem problema: ali em cima há uma praça de táxis, ou se quiserem chamam outro Uber mas pedem para vos apanhar ali na Avenida, que é mais central. E acompanhei os meus amigos até essa via principal. Quando lá cheguei, despedi-me e voltei para casa em passo apressado, pois tinha deixado o portão aberto e não tinha trazido nem chaves nem telefone.
Foram cinco minutos, no máximo.
Entrei e fechei o portão, atravessei o túnel, passei pela janela da sala, curvei a esquina e entrei em casa. Nada de extraordinário. A música ainda estava a tocar, a mesa cheia de copos e alguns pratos. Tinha sobrado alguma comida, especialmente entradas: queijo da serra, presunto, etc. Fui direto ao sofá, pois tinha deixado lá o telefone e queria terminar uma mensagem que estava a escrever, antes deles irem embora. Mas o telefone não estava no sofá.
Que estranho. Talvez o tivesse levado comigo, quando eles saíram, e deixei-o na mesa de fora, no pátio. Ou seja: voltei para trás, meia dúzia de passos e estava na porta de casa outra vez, saí... mas em vez de encontrar o telefone na mesa, vejo um vulto a saltar pela janela do meu quarto, do meu lado direito.
Só de recordar e escrever isto, sinto uma descarga de adrenalina. Juro. Um arrepio que começa na nuca e se espalha pela espinha abaixo. E parece que me dói o corpo todo. É uma angústia. Mas isto há de passar.
Continuando: sim, estava um homem dentro de minha casa, quando eu entrei; e tentou fugir pela janela do meu quarto... ao mesmo tempo que eu saí pela porta. Ficámos frente a frente, praticamente, a olhar um para o outro. E eu sei que pode parecer ridículo, mas a minha primeira reacção, que durou pouco mais que um segundo, foi pensar “mas quem é que não se foi embora”, como se fosse normal um amigo meu estar a saltar pela janela.
Mas foi só um segundo – se tanto.
Tal como esse instante em que ficámos de olhos fixos nos olhos do outro.
Ele com uma expressão de isto-não-é-o-que-parece.
Eu como que a dizer como-foste-capaz-de-fazer-tal-coisa.
Como se tivesse sido atraiçoado. A sério! E não pelo ladrão em si, mas pelo destino. Porque em quase quatro anos nesta casa, acreditei sempre que vivia no lugar mais calmo e pacífico de Lisboa, como que numa aldeia dentro da cidade, uma espécie de refúgio intocável... deixava janelas abertas quando saía, nunca tranquei a porta... e, este momento... este instante era o desmoronar dessa ilusão – a dentada na maçã.
Não sei o que me deu.
Um calor que veio do mais fundo de mim, de um lugar escuro alimentado pelas frustrações e medos da vida – e eu sei que não devia, agora sei que ele até podia estar armado, etc e tal... mas, no momento, isso nem me passou pela cabeça. E assim que ele começou a correr, eu saltei para cima dele, derrubando os chapéus de sol que trouxe da Birmânia, e dei-lhe logo dois ou três socos.
Eu, que nunca bati em ninguém em toda a minha vida.
Ele começou a pedir desculpa, disse que tinha fome – eu só pensava “como é que foste capaz, como é que foste capaz”. Levantou-se e eu levantei-me a seguir, corremos até aos degraus que dão acesso ao túnel, voltei a apanhá-lo e deixou cair um livro. Lembro-me de no momento perguntar-me por que raio me tinha roubado aquele livro e, ao agarrá-lo pelo colarinho, perguntei se ele tinha alguma coisa com ele, “o que é que me roubaste, cabrão”, não sei se lhe dei mais dois ou três murros, nesta fase as coisas estão meio desfocadas, confesso.
Não gritei por socorro, não chamei ninguém, não pedi ajuda. Se o tivesse feito, de certeza que alguém me ouvia. Na altura, não me passou pela cabeça. Mas também não sussurrei. Todas estas peripécias, insultos e ameaças foram feitas de viva voz.
Enfim: ele lá se soltou e, por momentos, pensei que o melhor era mesmo deixá-lo ir. Senti uma tristeza enorme invadir-me, só me apetecia chorar, tinha o coração a mil e todo o corpo tremia de raiva.
Mas eis que me lembrei do telefone. Não tinha encontrado o telefone. E não o tinha escondido, também – por isso, de certeza que ele o tinha levado. Olhei na direção do portão e ele ainda ia a meio do túnel, a correr que nem um cobarde. Senti apoderar-se de mim uma nova vaga de adrenalina e, qual Chuck Norris qual quê, lancei-me pelo túnel adentro e investi com todo o meu peso (ainda bem que a dieta só começa pra semana!) em cima dele, esmagando-o contra as grades do portão.
Debatemo-nos um pouco e não sei como conseguiu abrir o portão, mas só me lembro de já estarmos na rua: eu com um pé no portão, para que não se fechasse (deixando-me sem chave, do lado de fora), a mão esquerda agarrada ao colarinho dele, a direita suspensa sobre o seu rosto, a ameaçá-lo com um murro.
“Dá-me o telemóvel!”
“Eu não tenho nada, juro que não roubei nada!”
“Dá-me o telemóvel, caralho!”
“Eu juro, eu não tenho nada!”
De repente acalmei-me e baixei o braço, tentei serená-lo:
“Okay, vamos ter calma, eu não te quero fazer mal... vamos acalmar... eu preciso do telefone, tenho muito trabalho aí, tu vais devolver-me isso e eu vou esquecer que esta noite aconteceu.”
“Mas eu não tenho...”
“A sério, eu só quero o telefone. Devolve-me e eu nem faço queixa, senão vou ter de chamar a polícia.”
E realmente que merda de mundo é este, em que baixar a guarda e ser mais humano é logo interpretado como uma fraqueza... mas a verdade é que, mal me viu mudar a atitude, ele próprio também alterou a dele. Mas para pior.
“Eu parto-te a boca toda, se não me largares já. Deixa-me ir embora ou parto-te todo.”
E a isto reagi como um vulcão.
Como num filme, levantei o punho cerrado e puxei-o pelo colarinho, ficámos com os rostos muito perto um do outro, a minha mão suspensa sobre ele (e nenhum dos dois usava máscara, mas na altura nem pensei nisso, enfim... nos tempos que correm...), e rosnei-lhe, meio a rir, com toda a raiva acumulada:
“Meu cabrão, antes de tu me tentares fazer seja o que for, eu já te parti todo. DÁ-ME JÁ O TELEFONE!”
E não sei se voltei a bater nele ou não, sinceramente tanto acho que sim como penso que não, mas comecei a revistá-lo com a mão direita, enquanto o segurava com a esquerda. Ele debateu-se, mas era mais pequeno que eu e não tinha os deuses a dar-lhe força extra. Apalpei-lhe os bolsos da frente e os de trás, e à volta da cintura, e num casaco que ele insistia em agarrar. Aliás: ele nunca largou esse casaco, daí também ser mais difícil reagir ao meu ataque.
Foi então que se conseguiu soltar – e fugir. Acho que foi quando eu estava a apalpar o tal casaco. Mas não senti nada. Não sei se tinha o telefone nos pés, ou nos tomates, ou enfiado sabe-se lá onde... mas a verdade é que não senti o telefone nenhum. E quando ele desatou a correr pela rua abaixo, sinceramente já não tive mais energias. Estava exausto, mentalmente destruído, fisicamente acabado.
Voltei para casa a correr e procurei freneticamente pelo telefone: pode ser que não o tenha levado, pode ser que o tenha deixado cair, pode ser que o tenha atirado para algum lado. Que desespero.
Lancei-me ao computador – por sorte, não o levou – e tentei ligar por facetime aos meus amigos, o tal casal que deixara na avenida. Nenhum atendeu. Talvez o Messenger funcione...
“Rodrigo, acabei de ser assaltado!”
“WTF?!”
“Tinha um gajo em casa, quando voltei!”
“Vou já para aí!”
Resumindo: fiquei sem telefone. E sem confiança. Já passaram mais de quarenta e oito horas e, por muito que não me sinta profundamente traumatizado, isto ainda está muito vivo. Ainda fico nervoso só de recordar. E agora tranco sempre portas e janelas, mais o portão da rua. Quando apago as luzes, à noite, antes de me deitar, tenho a sensação de ver vultos junto às janelas, do lado de dentro da casa. Mas sei que é porque isto tudo ainda está muito fresco. Vai passar.
Por agora, acho que é tudo. Senti que tinha de partilhar esta autêntica, horrível viagem que vivi no fim-de-semana. Amanhã conto como se desenvolveu o resto da noite (só consegui ir para a cama às dez da manhã), e também a minha teoria acerca do que aconteceu.
E, desde já, fica explicado o motivo pelo qual, nos próximos dias, não vou estar muito activo online. Sem telefone, fico muito limitado.
Numa última nota: faltam duas semanas para terminar o crowdfunding. A campanha está bem lançada, já reuni metade do que preciso para financiar o livro novo. Passem por lá e façam a vossa contribuição. Se todos participarem com um pouco, vamos conseguir realizar muito. E até recebem livros autografados, passeios a Sintra comigo... melhor não podia ser ;)
Aliás: se forem generosos, até pode ser que passe o valor estipulado e, com o dinheiro extra que receber, consigo comprar um telefone novo. Até porque, se assim não for, só mesmo se for emprestado.
Abraços, usem máscara, mantenham a distância e não se armem em heróis, que isto parece muito emocionante mas foi estupidez pura, eu não devia ter reagido assim. Tive sorte.