Desde que cheguei da Índia que estou em casa de quarentena, sozinho – e se, ao princípio, o que mais me fez confusão foi o facto de estar confinado a quatro paredes e um pátio; confesso que ao fim de uma semana de cativeiro, mais do que das paisagens, sinto falta das pessoas. De um sorriso. Um abraço. Um beijo. Sinto falta do calor de outro ser humano.
Já estou mesmo a ver: no dia em que terminar esta pandemia, saio à rua e num impulso abraço o primeiro vizinho que me aparecer à frente, e entusiasmado desato a beijar a senhora do cabeleireiro à frente, mais o senhor do café, a rapariga do 3º esquerdo e o namorado, a avó e o cachorrinho, mais o periquito e basicamente todos os que tiverem o azar (ou sorte) de se cruzar comigo nesse dia.
E se mais pessoas estiverem no-estado-em-que-eu-estou, vai ser bonito.
Ou não. Porque choraminguices e lambuzices à parte, o mais provável é que o regresso à “normalidade”, se é que isso existe, com ou sem aspas – mas esse regresso há de ser gradual, meio-a-medo, baby-steps, como aquele indiano no comboio que se sentou no meu lugar, junto a meus pés, enquanto eu dormia, e aos poucos foi reclamando espaço enquanto eu ficava mais apertado, todo encolhido.
Adiante. Eu e as historinhas.
Numa fase em que tanto se fala de “distância social”, “achatar a curva” e “isolamento”, lembrei-me de um programa em que participei como convidado, há uns anos, na SIC. Não me recordo do nome, era um daqueles que passa à tarde, apresentado pelo João Baião. O tema da intervenção, em que fui acompanhado por uma psicóloga que ia contextualizando alguns dos exemplos que eu apresentava, era “cumprimentos pelo mundo”.
Nem de propósito.
Porque estava aqui eu a aterrar desta fantasia pós-isolamento, quando comecei a considerar se, entre alguns hábitos que provavelmente vão mudar a seguir à pandemia, não deveríamos (pelo menos nos primeiros tempos) reservar a beijoca e o esfreganço só para os mais íntimos, e talvez adoptar outras formas de nos cumprimentarmos uns aos outros.
E note-se que já estou a considerar um “desconto” para os mais chegados, pois imagino que muitas pessoas já sonhem com a avalanche de beijos das nossas avós. Eu falo por mim: já sonho com o aroma doce do baton de uma, vermelho e vincado nas minhas bochechas e testa; e com o abraço e a ternura da outra, a dizer-me que estou feio porque a barba está comprida, a perguntar-me quando sai o meu próximo livro.
Entretanto, alguém me disse que as tias de Cascais só têm 50% de probabilidade de ser contagiadas com corona, porque só dão um beijinho em vez de dois. Mas por muito encorajadora que seja a estatística, eu procuro uma solução que seja 100% eficaz. Assim, parece-me pertinente lembrar que há cumprimentos por esse mundo fora que não implicam contacto físico – e que, enquanto o bicho não tiver desaparecido de cena, podem ser interessantes de adoptar/adaptar. E não: não estou a falar de fenómenos como o Wuhan Shake, que sinceramente me parece meio infantil; ou o Elbow Shake, que além de um pouco pateta, acaba por não ser muito eficaz, já que os especialistas nos dizem que devemos espirrar e tossir para os braços.
A saudação que me parece mais óbvia, seja pela minha proximidade emocional com o país, como pelo facto de ter acabado de voltar de lá, é o Namasté. Suponho que saibas do que estou a falar – mas se não sabes, passas a saber.
O Namasté é um gesto com milhares de anos que se faz juntando as palmas das mãos, ao nível do peito, com os dedos juntos e a apontar para cima, ao mesmo tempo que se baixa ligeiramente a cabeça. Representa gratidão, respeito e humildade – e significa algo do género “o Divino em mim faz uma vénia ao Divino em ti”. Bonito, hem?
Curiosamente, alguns textos antigos hindus falam do facto deste mudra (gesto) proteger e conter a energia de uma pessoa, em vez de absorver a da outra. Ao contrário (digo eu), e só a título de exemplo, de um aperto de mão. Isto parece-me interessante. Porque se, por um lado, é fácil perceber o lado prático que isto tem na realidade scifi que estamos a viver; por outro, talvez contenha a explicação da própria origem do gesto, que provavelmente surgiu para proteger as pessoas de contágios, numa sociedade que era mais vulnerável contra todo o tipo de doenças. Ou seja: vai-na-volta e o Namasté nasceu num pós-pandemia, há 4 ou 5 mil anos.
O Wai tailandês é uma clara evidência da influência indiana no país. Este é um dos pormenores/curiosidades que normalmente abordo, quando acompanho grupos no Sudeste Asiático: o facto de na Tailândia (como no Myanmar, Camboja e Laos, já agora) a cultura ser tão influenciada pela Índia. Isso vê-se na comida, no vestuário tradicional e até no alfabeto, entre tantas outras manifestações. Se, por um lado, a religião dominante nestes países é o budismo; por outro, divindades como Brama, Ganesha ou Garuda são amplamente reverenciados. Só a título de exemplo: o rei da Tailândia tem o cognome de Rama X, porque acredita-se que a família real tailandesa é descendente de Rama, o príncipe de Ayodhya que é o personagem principal do épico hindu Ramayana. Nas fotografias oficiais do rei, as molduras têm sempre um Garuda em baixo, sendo que este homem-águia é o veículo de Vishnu (o deus de quem Rama é uma das encarnações). E esta, hem?
Anyway... tal, como o Namasté, o Wai também se faz juntando as mãos e baixando a cabeça. A diferença é que, no Wai, a altura a que as mãos se juntam depende do respeito que uma pessoa “deve” à outra. Entre conhecidos e amigos: começa-se com as mãos em frente ao peito e diz-se sawadee krab (se for um homem a fazer) ou sawadee kah (se for mulher) ao mesmo tempo que se elevam até quase tocar com a ponta do indicador no queixo, e enquanto se faz a vénia. Para os irmãos mais velhos e outros familiares, os dedos quase tocam o nariz. Para os pais, os polegares ficam à altura do nariz. Para os avós e outros velhotes, bem como aos monges, são os polegares que tocam na testa. E ao rei, nem pensar em estar de pé, só de joelhos, e as mãos quase que vão atrás da cabeça. O último nível é reservado ao próprio Buda, pelo que algumas pessoas chegam a deitar-se no chão, com os braços estendidos para a frente.
Noutros tempos, no Camboja e na India também era assim que se saudava os deuses. Há muitas referências gráficas (em pinturas, baixos relevos e esculturas) de pessoas deitadas no chão em adoração máxima. Nem há um mês, em Hampi, encontrei algumas esculpidas no chão.
Tanto o Namasté como o Wai são muito fluídos, e adaptam-se a variadíssimas situações, para além do cumprimento: tanto servem para agradecer como para pedir desculpa, concordar, apaziguar ânimos ou até para suplicar.
Mas há mais:
O japoneses, por exemplo, fazem o Ojihi, uma vénia que envolve toda uma complexa etiqueta, que vai desde o ângulo de inclinação até à duração, entre outros factores mais ou menos esotéricos. Confesso que, quando estive no Japão em 2018, não cheguei a viver nenhum episódio tão caricato como o Bill Murray no Lost in Translation.
Em alguns países islâmicos, o salam aleikum é acompanhado da mão direita a tocar no coração, enquanto se faz uma pequena vénia com a cabeça.
Em algumas zonas do Tibete, põe-se a língua de fora – mas só um bocadinho, para mostrar ao outro que não somos a reincarnação de um rei malvado do século IX, que tinha a língua preta.
Nas Ilhas Marshall, franze-se as sobrancelhas, enquanto que em algumas tribos da Zâmbia, as pessoas batem palmas com as mãos em concha, duas vezes, de uma forma muito particular, enquanto dizem “mulibwanji”. E os Masai, no Quénia, saltam! Okay, não é bem um cumprimento, é mais para dar as boas-vindas. Mas podia ser interessante, já estou a ver o Marcelo a cumprimentar o povo, tudo aos saltos.
Seja como for: alternativas não faltam. Nem que seja a saudação Vulcan, popularizada pelo Mr. Spock do Star Trek, e que era acompanhada pela frase “vida longa e próspera” – que, tendo em conta o cenário mundial, nem é assim tão despropositado. Aliás: a adoptar esta opção, sugiro também que se passe a usar o mesmo tipo de indumentária dos personagens da famosa série.
Enfim: acho que já deu para perceber que por um tempo, da mesma forma que os Esquimós vão ter de deixar de tocar com as suas pestanas nas pestanas dos outros, os Maoris e os Beduínos de roçar os narizes, e os Kunik de cheirarem as bochechas – a nós talvez convenha baixar o tom da beijoca e do xi-coração, pelo menos em grande parte das situações. É um tema, definitivamente, a debater.