"No available seats. You take ordinary class."
Resignados, dirigimo-nos à pequena multidão que se empurrava em frente da bilheteira da ordinary class. A minha sugestão, o Vasco ficou a observar a um canto, a guardar as mochilas - e eu atirei-me de corpo e alma ao caótico bocadinho de universo à nossa frente.
Custava alguma coisa fazer fila? Vá-se lá entender a lógica.
Faz-te à vida, diz-me a vozinha imaginária que às vezes viaja comigo.
Faço pois. Que remédio. Até porque, se fizéssemos muita questão de viajar em upper class, podíamos sempre adiar a viagem para amanhã, tratar da reserva agora e ficar mais um dia em Yangon. Mas já aqui estávamos com as mochilas. E de autocarro não apetecia nada.
Que calor.
Seis e meia e tenho a t-shirt ensopada, a testa a pingar, a paciência no limite. E um plano.
Eu tenho um plano.
Enquanto eu insistia e tentava a minha sorte com o senhor da bilheteira da upper class, reparei que no livro onde estão registadas as reservas havia alguns lugares assinalados com a palavra "Bago". Em inglês, felizmente, porque se fosse em birmanês não teria percebido nada. Ainda perguntei se podia comprar-lhe bilhetes de Bago para Mawlamyine, mas o homem confirmou aquilo que eu já sabia: os bilhetes de comboio no Myanmar compram-se somente na respectiva estação de partida. E o horário indicava uma paragem dois minutos em Bago. Ou seja: era virtualmente impossível sair a correr com as mochilas, verificar disponibilidade na upper class, comprar os bilhetes (o processo demora sempre imenso tempo, com o registo do passaporte no livro de reservas, cópias disto-e-daquilo... e tudo à mão) e ainda voltar a tempo de embarcar na nova carruagem.
Mas eu tenho um plano.
Que calor!
Ao fim de dez minutos lá consegui comprar os bilhetes para a ordinary class. Dirigimo-nos até ao comboio e sentámo-nos nos lugares indicados nos bilhetes. Enquanto não arrancávamos fui comprar algumas provisões para a viagem. E assim que o comboio deixou Yangon, telefonei a uma rapariga chamada Thu Zar.
A Thu Zar é a dona do San Francisco Motel, a guesthouse onde fiquei com os dois últimos grupos em Bago. Uma trintona cheia de entusiasmo, com um coração que não cabe neste mundo e um sorriso que devia ser Património da Humanidade.
"I need your help, Thu Zar. Preciso que vás à estação de comboios perguntar se há lugares vagos na upper class, no comboio para Mawlamyine que saiu agora de Yangon. E, se houver: preciso que me compres dois."
Meia hora depois estava a ligar-me de volta a dizer que sim - havia lugares.
"Diz-me os números dos vossos passaportes, e diz-me também em que carruagem estás agora."
Uma hora depois, vínhamos à conversa e nem demos pelo comboio abrandar. Quando olhei pela janela estávamos a chegar a Bago.
"Depressa! Temos de sair aqui!"
Dezenas de passageiros tinham começado a entrar no comboio, quando finalmente conseguimos pegar nas mochilas. Tivemos de furar, aos gritos de "deixa passar!", não sei como conseguimos mas aos poucos aproximámo-nos da porta. Lá fora estava a Thu Zar, que é mulher de porte forte e conseguiu estancar o fluxo de pessoas que queriam entrar na carruagem.
"Empurra! Empurra!", gritei ao meu irmão.
Empurrámos. E assim que pisámos o solo foi um vê-se-te-avias na plataforma, a correr atrás da Thu Zar, na minha cabeça um countdown imaginário, começou em dois minutos mas agora aproxima-se vertiginosamente do zero, o comboio vai arrancar e nós vamos ficar em terra, nós vamos ficar em terra, nós vamos ficar em terra... e quando finalmente parámos, cinco carruagens depois, então tive a certeza que tudo ia acabar bem. A Thu Zar deu-me os bilhetes e eu passei-lhe para as mãos o dinheiro, o comboio apitou e no meio de obrigados e thank yous e djisu temares, subimos para a nossa nova carruagem e finalmente respirámos.
Bancos que pareciam poltronas!
Pendurei-me na janela e segurei nas mãos da Thu Zar, muuuuito obrigado, foste a nossa salvação, não há palavras, e ela a sorrir aquele sorriso que acaba com guerras, e de repente aparece a irmã dela a correr na plataforma, veio-se despedir, penso eu, aceno e o comboio dá um solavanco, e ela estica os braços na minha direcção, tem um saco de plástico cheio de qualquer-coisa:
"Take this! It's for you!"
E eu seguro no saco, pela janela, no momento em que o comboio começa a andar - e assim que seguro nele percebo que tem bebidas e muita comida, um picnic completo de sanduiches e sumos e fruta, estas mulheres não existem, este país não existe, fico com um nó na garganta e não encontro palavras, já foi tudo dito e ao mesmo tempo falta dizer tanto.
"Djisu bá, djisu bá, obrigado."
Elas ficam mais pequenas à medida que o comboio avança pelos carris, acabo por me sentar e vejo o meu irmão a sorrir, com o saco de plástico na mão.
"Isto é para nós?!"
É a primeira vez do Vasco na Birmânia. A primeira vez na Ásia. Eu nem consigo imaginar o turbilhão de emoções e sensações e sentimentos e constrastes que ele deve estar a sentir neste momento.
O comboio avança, dançando nos carris. São nove e um quarto, esperam-nos mais oito horas de viagem - mas o dia está ganho.
3 comentários:
Um povo extraordinário ....
espectacular! quem tem amigos assim tem tudo!!
Esta viagem de comboio vai constar do novo livro, de certeza absoluta!
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