Sete da manhã, estamos sentados na rua, à porta da agência de viagens. Acabou de chegar uma argentina, também vem connosco no passeio. O autocarro deve estar a chegar, diz-nos, vai levar-nos até à fronteira e só então passamos para o todo-o-terreno.
Estamos ansiosos.
Esperam-nos montanhas, vulcões e lagunas de todas as cores. Esperam-nos paisagens remotas, lugares inóspitos e momentos de cortar a respiração. Esperam-nos rochas com formatos estranhos, abrigos de montanha, folhas de coca para mascar em caso de dores de cabeça.
Esperam-nos piscinas de águas termais, cemitérios de comboios, flamingos a colorir a paisagem... e, no final, a cereja em cima do bolo: espera-nos o Salar de Uyuni.
Vem aí a camioneta.
Até daqui a três dias :)
27/06/2013
26/06/2013
ALPACAS, DESERTO E DORES DE CABEÇA
Voltámos para San Pedro de Atacama a meio da tarde, depois de pararmos setenta e nove vezes para tirar fotografias a alpacas a pastar à beira da estrada, patos e muitos outros animais cujos nomes não me recordo. Eles também não se lembram de mim, de certeza, por isso não estou muito preocupado.
Parámos também para ver uma aldeia e a sua igreja de adobe, parámos para ver um lago, para tirar fotografias aos vulcões, ao deserto, a cada pedra e arbusto - e gostámos, gostámos muito. Mas as dores de cabeça começaram a fazer sentir-se, no regresso, nem como algum cansaço acumulado das noites mal dormidas, o passeio de bicicleta, a viagem de autocarro, os muitos quilómetros a pé.
Assim que chegámos a San Pedro, atirámo-nos para as nossas camas e já só nos levantámos, quase que por momentos, para jantar. A noite também passou depressa: no dia seguinte, tínhamos de estar às sete da manhã à porta da agência de viagens... vamos para Uyuni, na Bolívia. E vamos de carro, nós e mais quatro passageiros, pelas montanhas, durante três dias.
Esta aventura promete. As expectativas são altas: desde que começámos a planear esta viagem que contamos que este seja um dos pontos altos dos noventa e nove dias na América do Sul.
Mas enquanto não nos lançamos à estrada, ficam algumas fotos das múltiplas paragens no regresso para San Pedro de Atacama, depois do passeio aos geysers e às piscinas termais.
Parámos também para ver uma aldeia e a sua igreja de adobe, parámos para ver um lago, para tirar fotografias aos vulcões, ao deserto, a cada pedra e arbusto - e gostámos, gostámos muito. Mas as dores de cabeça começaram a fazer sentir-se, no regresso, nem como algum cansaço acumulado das noites mal dormidas, o passeio de bicicleta, a viagem de autocarro, os muitos quilómetros a pé.
Assim que chegámos a San Pedro, atirámo-nos para as nossas camas e já só nos levantámos, quase que por momentos, para jantar. A noite também passou depressa: no dia seguinte, tínhamos de estar às sete da manhã à porta da agência de viagens... vamos para Uyuni, na Bolívia. E vamos de carro, nós e mais quatro passageiros, pelas montanhas, durante três dias.
Esta aventura promete. As expectativas são altas: desde que começámos a planear esta viagem que contamos que este seja um dos pontos altos dos noventa e nove dias na América do Sul.
Mas enquanto não nos lançamos à estrada, ficam algumas fotos das múltiplas paragens no regresso para San Pedro de Atacama, depois do passeio aos geysers e às piscinas termais.
25/06/2013
E DEPOIS DOS GEYSERS...
...nada como dar um mergulho mesmo ali ao lado, nas quentes termas a céu aberto. Foi preciso alguma coragem, confesso que ainda vacilámos, mas não é todos os dias que se está a 4.200m de altitude, num campo geotérmico, e se tem a oportunidade de dar um mergulho nas termas locais.
Sim: estava um frio de rachar... mas do balneário à água foi uma corridinha, e que bem que se estava no quentinho desta sopa mineral.
Uma experiência obrigatória, para começar o dia com a cabeça bem fresca.
Sim: estava um frio de rachar... mas do balneário à água foi uma corridinha, e que bem que se estava no quentinho desta sopa mineral.
Uma experiência obrigatória, para começar o dia com a cabeça bem fresca.
A MINHA PRIMEIRA VEZ #28.491
Nesta viagem, quem costuma registar, contabilizar e analisar as suas "primeiras vezes" é o Bunty. Foi assim com o guaraná, o hamburguer, o tango, o primeiro glaciar, isto-e-aquilo... mas hoje não consigo evitar mencionar que eu próprio tive uma "primeira vez". Uma não: duas. Pelo menos.
A primeira vez que vi geysers, por exemplo.
Ou seja: desta vez não nos deixámos dormir. Ouvimos o despertador, acordámos a horas. A carrinha passou quando tinha de passar, juntámo-nos aos outros estrangeiros, ensonados como eles, e terminámos a ronda dos hotéis. Depois o guia apresentou-se e explicou que ia demorar um bocado até chegarmos à montanha, disse-nos podíamos dormir mais um bocado e que haveria um pequeno-almoço à nossa espera, lá em cima. Mais tarde fez um pequeno briefing sobre o lugar e as precauções a tomar, por causa da altitude. Aconselhou-nos a não fazer movimentos bruscos, a não correr - e para avisarmos, caso tivéssemos dores de cabeça ou de estômago.
Os geysers ficam num pequeno vale a cerca de 4.200m. O que por si só é uma "primeira vez", porque nunca tinha subido a mais de 4.000m. Ora aqui está um pequeno recorde, este é agora o meu Everest pessoal.
E depois foi o campo de geysers. Ao longe pareciam nuvens a nascer do chão. Já perto, é bem diferente, é o cheiro e as sensações, é o calor que emana das entranhas da terra misturado com o ar gélido da montanha, o branco do vapor em contraste com a paisagem escura, pois o sol ainda não nascera.
Hoje deixo-vos alguns registos dos meus primeiros geysers, em El Tatio:
A primeira vez que vi geysers, por exemplo.
Ou seja: desta vez não nos deixámos dormir. Ouvimos o despertador, acordámos a horas. A carrinha passou quando tinha de passar, juntámo-nos aos outros estrangeiros, ensonados como eles, e terminámos a ronda dos hotéis. Depois o guia apresentou-se e explicou que ia demorar um bocado até chegarmos à montanha, disse-nos podíamos dormir mais um bocado e que haveria um pequeno-almoço à nossa espera, lá em cima. Mais tarde fez um pequeno briefing sobre o lugar e as precauções a tomar, por causa da altitude. Aconselhou-nos a não fazer movimentos bruscos, a não correr - e para avisarmos, caso tivéssemos dores de cabeça ou de estômago.
Os geysers ficam num pequeno vale a cerca de 4.200m. O que por si só é uma "primeira vez", porque nunca tinha subido a mais de 4.000m. Ora aqui está um pequeno recorde, este é agora o meu Everest pessoal.
E depois foi o campo de geysers. Ao longe pareciam nuvens a nascer do chão. Já perto, é bem diferente, é o cheiro e as sensações, é o calor que emana das entranhas da terra misturado com o ar gélido da montanha, o branco do vapor em contraste com a paisagem escura, pois o sol ainda não nascera.
Hoje deixo-vos alguns registos dos meus primeiros geysers, em El Tatio:
24/06/2013
HÁ GAJOS COM SORTE
Às vezes o Universo inteiro arranja formas de conspirar a nosso favor. Juntam-se os ventos e a arquitectura, os animaizinhos do campo, os riachos da montanha, os semáforos na cidade e vários fenómenos naturais; juntam-se as órbitras inter-planetárias e as bactérias e moléculas, a caneta de uma estrela de rock enquanto dá um autógrafo, um carro a passar numa poça de água, uma ovelha que se perde do rebanho, uma árvore em contraluz, a multidão que grita golo, uns atacadores desapertados. Todas as energias concentradas numa só sorte.
Às vezes, a nossa sorte.
Largámos a mochila no quarto e fomos-num-instante à casa-de-banho, saímos a correr do hotel e nem foi preciso virar a primeira esquina para dar de caras com o senhor da agência de viagens:
"Ia agora mesmo ter com vocês ao hotel. Precisamos de falar."
Não percebi muito bem a sequência de eventos, coincidências, inesperados e sorte. Mas o resultado final foi o seguinte:
"Podem ir amanhã aos geysers, não pagam nada por isso - e adiamos a viagem para a Bolívia para o dia seguinte."
Parecia bom de mais para ser verdade. Tanto que confirmáms várias vezes que não era preciso pagar nada extra. E não era mesmo. O senhor tinha-se dado ao trabalho de nos ajudar... e passou a tarde a ligar para o hotel, para confirmar connosco que estávamos de acordo. E agora vinha ter connosco!
Há gajos com sorte, não há?
E há pessoas incríveis, de uma gentileza pouco comum, que se dão ao trabalho de um esforço activo para ajudar os outros. Obrigado por isso.
Conclusão: baralha tudo e dá de novo. Amanhã vamos ver os geysers de madrugada e só depois é que arrancamos para a Bolívia. Tudo está bem quando "acaba" bem.
:)
Às vezes, a nossa sorte.
Largámos a mochila no quarto e fomos-num-instante à casa-de-banho, saímos a correr do hotel e nem foi preciso virar a primeira esquina para dar de caras com o senhor da agência de viagens:
"Ia agora mesmo ter com vocês ao hotel. Precisamos de falar."
Não percebi muito bem a sequência de eventos, coincidências, inesperados e sorte. Mas o resultado final foi o seguinte:
"Podem ir amanhã aos geysers, não pagam nada por isso - e adiamos a viagem para a Bolívia para o dia seguinte."
Parecia bom de mais para ser verdade. Tanto que confirmáms várias vezes que não era preciso pagar nada extra. E não era mesmo. O senhor tinha-se dado ao trabalho de nos ajudar... e passou a tarde a ligar para o hotel, para confirmar connosco que estávamos de acordo. E agora vinha ter connosco!
Há gajos com sorte, não há?
E há pessoas incríveis, de uma gentileza pouco comum, que se dão ao trabalho de um esforço activo para ajudar os outros. Obrigado por isso.
Conclusão: baralha tudo e dá de novo. Amanhã vamos ver os geysers de madrugada e só depois é que arrancamos para a Bolívia. Tudo está bem quando "acaba" bem.
:)
PERDIDOS... NÓS?!
"A roda enfiou-se na areia..."
Larguei a minha bicicleta e fui a correr até perto do meu
amigo. Estava sentado no chão, de cabeça baixa mas a rir baixinho, perplexo com o que lhe tinha acabado de acontecer. No entanto, era mais o cansaço que o dano. Tinha
esfolado um dos joelhos e doía-lhe um braço e o pulso, mas percebi logo que
não era nada de grave.
E apesar de apetecer descansar e recuperar forças - porque
esta queda era um claro sinal de que estávamos a precisar disso -, não tivemos
outra opção senão prosseguir. Como já disse antes, o sol tinha desaparecido e a
temperatura estava a descer. Não nos podíamos "dar ao luxo" de não
encontrar uma estrada. O mais depressa possível, se faz favor.
Tinha visto umas árvores ao longe e foi para elas que nos
dirigimos. Embrenhámo-nos numa vegetação cada mais densa, convencidos que tinha
de haver alguma coisa ali, nem que fosse uma horta, um poço, qualquer vestígio
de actividade humana.
E o instinto provou estar certo: um pouco mais à frente
encontrámos um carrinho de mão e umas tábuas, aparentemente abandonados nas
ervas. Continuámos e vimos uns baldes. E uma horta! E algures... mais à
frente... obrigado, sorte: uma casa. Um cão a ladrar. Uma criança a brincar
perto de um carro. Estamos salvos ;)
Perguntei em tom de amigalhaço onde ficava a estrada para
San Pedro, como se nada fosse, como se nem estivéssemos com sede e cansados e
um-tanto-ou-quanto desesperados. O miúdo apontou para um caminho que ia dar a
outra casa... e outra... e à medida que avançávamos, apercebemo-nos que
estávamos numa pequena aldeola de cinco ou seis casas. Um velhote chamado
Samuel juntou-se a nós e assim fomos à conversa, entre muros de lama e pedras, com um
cão muito simpático sempre a correr à nossa volta, o senhor estava muito surpreendido por ver um indiano, uma pessoa de tão longe... e eis que de repente surge uma estrada - a
estrada "principal"!
Ao fundo, do lado direito, vimos no topo de um pequeno monte a tal igreja que fora, desde
o princípio do passeio, o nosso objectivo. Para a esquerda ficava San Pedro.
"Deixa lá a igreja em paz, já vimos muitas nesta
viagem. E outras virão. Vamos para casa."
Dito e feito. Despedimo-nos do Samuel e pé no pedal, que se
faz tarde. A estrada agora seguia ligeiramente a descer, só não fomos mais
depressa porque o Bunty estava cheio de dores. Mais à frente, passámos junto à
entrada da Garganta del Diablo, onde começara esta longa e árdua aventura de uma tarde. Cruzámo-nos com um grupo de cinco ou seis hippies locais, que caminhavam descalços com
mochilas carregadas sabe-se lá do quê, guitarras debaixo do braço e garrafas de vinho. Iam passar a
noite no desfiladeiro. Cumprimentámo-los e continuámos pela estrada fora, atravessámos os
mesmos riachos de antes - e quando finalmente chegámos a San Pedro de Atacama, já era noite cerrada.
O rapaz da loja das bicicletas estava preocupado connosco - achava
que nos tínhamos perdido, algures no deserto.
Perdidos... nós?!
Que ideia... ;)
E porque um dia intenso como o de hoje não podia acabar sem
mais uma emoção forte: quando chegámos ao hotel, a menina da recepção veio a correr
ter connosco, desta vez menos sorridente, a dizer que tinham ligado várias vezes da agência de viagens e
que precisavam de falar urgentemente connosco.
E agora?! Não me digam que vão cancelar o passeio à Bolívia... só nos faltava mais esta.
23/06/2013
LOST (NA GARGANTA DO DIABO)
Do centro da cidade pedalámos por ruas de terra batida até
já não haver mais casas, e seguimos obedientemente na direcção que o "mapa" nos
indicava - e se ponho aspas na palavra "mapa" é porque na verdade
aquilo não passava de em esboço feito à pressa numa folha A4, e fotocopiado
para turista ver.
Ao princípio tudo nos pareceu muito fácil. Estabelecemos como meta uma
igreja algures no meio dos desfiladeiros, ou pelo menos assim fazia crer o
"mapa". E de acordo com a romântica/ingénua leitura que fizemos da branca
folha de papel, decidimos atravessar a Garganta del Diablo até à tal igreja, e
depois voltar pela estrada "principal", que também leva aspas porque
obviamente só é "principal" porque a alternativa são os trilhos. Não
pisámos alcatrão uma única vez ao longo da tarde - e ainda bem - e ao todo não
passaram por nós mais de meia dúzia de carros, na tal estrada "principal".
Começámos por achar estranho o facto de termos de atravessar
riachos. Tínhamo-nos convencido que isto ia ser um daqueles "passeios
saloios" para o turista que não tem nada melhor para fazer. Mas afinal a
coisa era um bocadinho mais radical.
Lá fomos, estrada "principal" afora,
descalçando-nos sempre que era preciso, atravessando a rir os tais riachos de
água gelada, tu já viste isto, afinal metemo-nos numa aventura e pêras... sempre
à procura da entrada do desfiladeiro.
Quando vimos a Garganta del Diablo, era óbvio demais para
haver confusões. Um pequeno trilho entalado entre rochas enormes, serpenteando
no meio de silenciosos desfiladeiros, ora mergulhado em sombra, ora a brilhar quente
com o terrível sol do deserto.
A primeira hora de pedaladas foi fértil em wows e amaaaazings. Parámos duzentas vezes para tirar fotografias,
rimo-nos de tão bonito que era o passeio... mas o calor começou a apertar e a
altitude depressa se fez notar. Um pouco de dores de cabeça. A respiração mais
pesada. O coração a bater mais rápido. Notámos que estávamos a beber água com
uma frequência pouco comum noutros passeios, cansávamo-nos mais depressa,
descansávamos com mais frequência.
Isto afinal não era só um "passeio saloio".
Fomos avançando pela paisagem adentro e à medida que da
Garganta passávamos para as Entranhas del Diablo ;) começámos também a desejar encontrar
depressa à igreja. Pelo "mapa", não devíamos estar longe. Mas depois
de uma curva vinha outra, e depois da outra mais uma - e nunca mais víamos o
nosso santo destino.
A água dentro da garrafa desceu ainda mais rápido que o sol
no horizonte, chegando a níveis pouco aconselháveis para quem não sabe o
caminho para casa. À medida que a tarde avançava e a temperatura descia, começámos
a ficar com pressa de sair dali - e se durante muito tempo não tivemos dúvidas
no caminho, pois era só seguir o desfiladeiro e as marcas das bicicletas - a
caso mudou de figura quando apareceram ramificações, desvios, becos sem saída. Vamos
por aqui, que tem mais marcas. Mas esta parece ser a principal, acho que vai
dar a algum lado. E esta? Deixa-me experimentar esta, espera aqui com as
bicicletas que eu vou ver a pé. Não: nada. Não vai dar a lado nenhum.
Está-se mesmo a ver, não é?
Perdemo-nos.
E o "mapa" já nem saía do bolso. Para quê.
Perdemo-nos. E não estou a falar de
"perdemo-nos-mas-na-boa-porque-se-formos-sempre-em-frente-vamos-ter-a-algum-lado.
Nada disso.
Perdemo-nos, senhoras e senhores: e estamos num deserto. Estamos
num lugar chamado Garganta del Diablo, que fica ao lado do Vale de la Muerte.
Não muito inspirador.
Tínhamos de encontrar uma saída depressa. O sol estava
prestes a desaparecer nas montanhas, a temperatura descia a olhos vistos...
tínhamos de sair daqui e não só porque tinha que ser, porque não queríamos
dormir no deserto... mas porque no dia seguinte era suposto estarmos à porta da
agência às sete da manhã, para apanharmos o jipe para a Bolívia.
E vá-se lá entender porquê, chamem-lhe preciosismos,
mariquices, manias: mas depois da desilusão matinal, não nos apetecia muito
desperdiçar mais um tour.
Ou seja: começámos a achar pouca piada ao facto de não
encontrarmos a porcaria da saída. Incrível: deixam os turistas vir para aqui e
isto não está minimamente preparado, e como é que nos deixámos perder assim, mas
isto é espectacular, já viste este trilho, e há bocado não viste um gajo ao
longe de bicicleta, onde é que ele está... enfim, os ânimos variavam muito rapidamente
entre o deslumbre e a frustração, entre a indignação e o "tira-me aí uma
fotografia com aquela pedra de fundo".
Delírio?
Nada disso: é mesmo qualquer coisa que não bate bem, aqui.
a﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽sts um gajo
ao longe de bicicleta, onde a temperatura descia a olhos vistos... to do Vale
de la Muerte. N
Mas continuando: tenho de confessar que o trilho era
espectacular. Mesmo tendo em conta as circunstâncias, o facto é que estávamos a
gozar o passeio. E logo agora, que íamos ligeiramente a descer e a altitude já não
pesava tanto com o esforço. Comecei a pedalar com mais força, a ganhar
velocidade, a deixar-me levar pelas curvas do trilho, as pequenas subidas e
descidas, as inclinações... parecia que estava numa montanha-russa comandada
pelas minhas pernas.
Fomos parar a uma espécie de vale, completamente inóspito,
manchado de sal e areia - continuávamos a não fazer ideia de onde estávamos. O
sol escondeu-se finalmente atrás das "arribas" e a temperatura desceu
ainda mais. Na minha cabeça passavam imagens de nós os dois sentados entre duas
rochas, um céu estrelado por cima, a beber o último quarto de litro de água, à
espera de ser resgatados... a sério que temi por um final desse calibre. E
tinha a certeza que, mais-volta-menos-volta, fosse-como-fosse que isto
acabasse, iríamos perder o jipe.
O Bunty entretanto ficara para trás - mas estava à vista,
ainda no início do tal vale. Eu pedalava a custo na areia cada vez mais macia.
Tinha visto umas árvores ao fundo e convenci-me que íamos encontrar alguém por
ali. Um pequeno oásis - tinha de haver alguém. Mas no auge desta espécie de
delírio ouvi um grito e o eco que se seguiu. Alguém a chamar-me. Parei a
bicicleta e olhei para trás: o Bunty estava estatelado no chão.
22/06/2013
PLANO B
Quando acordámos pela segunda vez, já de manhã, apetecia
pouco sair do quarto. A frustração era grande - e só de imaginarmos que,
naquele momento, poderíamos estar a tomar banho na água borbulhante de
umas termas, nos vulcões...
Tomámos o pequeno-almoço e fomos directos à agência, onde
confirmámos o que já estávamos à espera: não havia volta a dar. O senhor que nos atendeu hoje até era bastante simpático, pediu desculpas (!) por não poder
oferecer outro tour amanhã, mas os lugares tinham ficado vazios esta manhã - e a
transportadora não queria saber de explicações. Paciência.
Entretanto tínhamos reservado para amanhã os 3 dias
em todo-o terreno até Uyuni, na Bolívia. E apesar do senhor garantir que não haveria
problema em adiar essa viagem, a verdade é que não tínhamos alternativa no que diz respeito aos
geysers. A não ser comprar outro tour. Mas isso estava fora de questão.
Começámos então a mentalizar-nos que provavelmente os geysers não eram nada de especial.
Deve ser muito turístico. E a altitude: um gajo fica logo com dores de cabeça. Se calhar não fomos por intervenção divina. Não era suposto irmos. Azar. E até temos uma piscina de águas termais a caminho da Bolívia, no tour de amanhã. Paciência, fica para a próxima... enfim, a verdade é que não valia a pena insistir com o drama.
Voltámos para o quarto, sem saber muito bem o que fazer, e praticamente sem-querer descobri a razão de não termos acordado com o despertador. O
volume do telefone estava no mínimo.
Pois.
E um poço para eu me atirar, não há?
Pois.
E um poço para eu me atirar, não há?
"Porque é que não alugamos umas bicicletas?," diz
de repente um de nós ao outro, não me lembro se eu ao Bunty, ou se ele a mim. Também não interessa
muito.
Nem vinte minutos depois estávamos já a pedalar
pelas poeirentas ruas de San Pedro de Atacama, com um mapa no bolso e a máquina
fotográfica na mochila. Comprámos duas garrafas de água e umas bolachas - e toca
a pedalar, que já só temos o dia de hoje por aqui, e este plano B de repente até parece melhor que o original.
Lembrámo-nos que o Pablo, o espiritual guia de ontem no Vale da Morte,
nos recomendara um lugar chamado "Garganta del Diablo". Na folha A4 com o mapa desenhado, que
nos deram na agência das bicicletas, não vinha nada assinalado com esse nome. Mas perguntámos a alguns locais e depressa descobrimos onde
ficava.
Vamos lá então!
DRAMA EM FAST FORWARD ÀS 5 DA MANHÃ
Deitámo-nos relativamente cedo ontem à noite, porque
vinham-nos buscar de madrugada para o tour aos geysers de El Tatio. A senhora-da-agência bem que nos
avisou: a carrinha passa à porta do vosso hotel, mas ninguém vai acordar
ninguém. Têm de estar na rua à espera, a partir das quatro, que eles fazem a ronda
dos hotéis.
Assim sendo: marquei o despertador para as três e meia, apaguei as luzes
e boa noite, Bunty. À falta de sono contei carneiros a saltar a cerca, um carneiro, dois carneiros, três, quatro... nem
custou muito a adormecer.
O pior foi acordar.
Abri os olhos, ensonado. O quarto estava completamente
escuro, mas alguma coisa me inquietava. Insónias. Deve ser do medo de não
acordar com o despertador, pensei em slow motion. Respirei fundo e virei-me para o outro lado da cama. Tenho que adormecer outra vez, não há razões para estar preocupado, quando o
despertador tocar eu acordo.
Mas não conseguia - e não vale a pena soltar o rebanho.
Voltei a mudar de posição, sempre em slow
motion, como se cada movimento precisasse de ser negociado... e à falta de coisa melhor para fazer, decidi ver que horas são. Será que falta muito para o despertador
tocar?
Estiquei o braço - o telefone estava em cima da mesa de
cabeceira, ao lado dos óculos. Na cama ao lado, o Bunty ressonava baixinho. Cerrei os olhos para ver melhor, aproximei o telefone do rosto... eram...
...quase cinco da manhã!
Nãããããooo!
Senhoras e senhores: haviam de me ver em modo fast forward.
"Acorda, Bunty, acorda! São cinco da manhã, perdemos a
carrinha para os geysers!"
Ainda ele se estava a levantar, já eu me calçava.
Saí a correr para a rua mas não vi nada. Já devem ter passado, pensei. Então a noite
fria lembrou-me que ainda não tinha vestido o casaco, nem as luvas, nem o cachecol. Vi um casal mais à frente, também à espera, fiz-lhes sinal.
"Já foi embora," disseram-me à distância. "Esteve à
vossa espera uns dez ou quinze minutos e depois foi embora, não há muito
tempo."
Que estúpidos! Como é que nenhum dos dois não ouviu a m... do despertador!
Ainda tinha esperança que passassem segunda vez, por isso voltei
a correr ao quarto. O Bunty estava quase pronto, com cara de quem ainda não percebeu se está acordado ou a sonhar. Fui num salto à casa-de-banho, lavei os
dentes, vesti os agasalhos que tinha que vestir, enchi uma pequena mochila com o
fato-de-banho e a toalha, a máquina fotográfica, eu-sei-lá-o-quê.
Esperámos uns vinte minutos debaixo de um estreladíssimo céu. E nada, claro. Foram embora, estávamos à espera do quê. Esperaram um pouco, não aparecemos, foram embora. Simples.
Cinco e meia da manhã - decidimos voltar para o quarto
e dormir mais um bocado. Que estúpidos. Desperdiçámos dinheiro, tempo, sono,
energia e uma experiência única. Mas não vale a pena dramatizar agora: não são
horas de dramatizar. Dormir. Precisamos de dormir. E quando a agência abrir, vamos lá
explicar o que se passou. Logo se vê.
21/06/2013
ESTÁ NA HORA... DA CAMINHA...
E por hoje já chega de conversa, que amanhã temos de acordar às três e meia da manhã. Às quatro em ponto passam aqui à porta para nos vir buscar: reservámos dois lugares no tour a El Tatio, um campo de geyzers a 4.200m de altitude.
Boa noite!
Boa noite!
SABIA QUE... #09
...o nome "Vale de la Muerte" não tem nada a ver
com o facto deste ser um dos lugares mais inóspitos do planeta Terra.
Apesar de "encaixar que nem uma luva" ao lugar, a
verdade é que o nome original era "Vale de Marte" - sim, aquele dos
pequenos seres verdes com três olhos e dedos muito compridos. O planeta
vermelho.
Por ser muito parecido com aquilo que imaginava ser a
paisagem de Marte, o missionário belga R. P. Le Paige - pai da investigação
arqueológica na região - adaptou o nome do planeta ao vale.
Mas pelos vistos, o Tempo tratou de trocar as voltas ao Homem, e por causa de um mero erro de pronunciação, este inóspito lugar acabou
por ficar famoso pelo nome que toda a gente conhece, nos dias que correm.
E já agora:
Sabia também que a NASA testa aqui algum do equipamento que
leva nas suas missões a Marte?
AS TRÊS MARIAS
Disse-nos o Pablo que estas rochas se chamam "As Três
Marias" porque se parecem com três mulheres a rezar.
Hmmmm... ok.
O POST POSSÍVEL, TENDO EM CONTA QUE ME SINTO ESMAGADO PELO QUE VI HOJE
A meio da tarde apareceu o nosso guia, que se foi apresentando
à medida que nos "arrumávamos" no carro. O Pablo era freelancer, tinha estudado História e
Geologia, ou História da Geologia, ou Geologia da História - não me lembro bem,
mas o senhor era definitivamente um expert.
"De quantos pôr-do-sol vocês se lembram, na vossa
vida?"
O Pablo tinha um orgulho confesso em partilhar a sua terra
natal com os turistas, e apesar da resistência da família, que não considerava
o trabalho à altura do seu estatuto social, fez-se guia turístico.
"Hoje vão assistir a um pôr-do-sol que jamais irão
esquecer."
O Pablo tinha uma especial aversão a grupos grandes. E a
máquinas fotográficas. Ou seja: andámos o tempo todo a desviar-por-aqui e a
fugir-por-ali, despachem-se porque eles vêm aí, evitando as concentrações de
turistas, que chegavam de minibus em
ruidoso e colorido rebanho. Para nós foi óptimo, claro, porque visitámos o Vale
da Lua, o Vale da Morte, a Quebrada de Kari, as Três Marias e o Mirador do
Coyote, entre muitas dunas, formações rochosas e vulcões ao longe... tudo o que
os outros grupos viram - mas só nós seis, sem niguém à volta a maior parte do tempo. Sozinhos, aos saltos num todo-o-terreno que só acrescentou
emoções fortes ao passeio.
Diz quem sabe destas coisas que o Deserto do Atacama é o
lugar mais seco do planeta. Parece que, em algumas partes, não chove há mais de
quatrocentos anos - e o Pablo explicou-nos que uma das causas deste fenómeno é
o facto dos Andes funcionarem como uma esponja, absorvendo toda a água das
nuvens que se alojam à volta, e por isso é que "deste lado" é tão
seco, e "do outro" tão verde.
A verdade é que o cenário é absolutamente esmagador.
O Vale da Lua deve o seu nome à extraordinária semelhança
que a paisagem tem com a superfície lunar. Explicou-nos o Pablo que havia aqui,
há muitos-muitos séculos, um enorme lago de água salgada que, ao elevar-se
devido a uns "abanões", criou a Cordilheira do Sal. Os depósitos de
areia, barro e sal conviveram durante milénios com inundações, erupções
vulcânicas e muito vento - e a erosão deu nisto: uma área repleta de interessantes
formações rochosas, enormes dunas de areia, depósitos de sal.
É uma experiência inesquecível, o passeio ao Vale da Lua.
Com ou sem turistas à mistura.
"Agora esqueçam as máquinas e fechem os olhos, sintam a
energia que emana da terra, fiquem em silêncio. Encontramo-nos daqui a vinte
minutos ali ao fundo, depois da terceira rocha, eu espero por vocês lá."
O Pablo era um espiritual.
Entretanto ficámos a saber que uma das raparigas que vinha
no carro era geóloga, e tinha reservado o tour
com ele de propósito, para aprofundar um pouco mais. E como queria cortar nos
custos, disponibilizou os lugares vagos no carro para os outros hóspedes do
hotel - nós, portanto.
Há gajos com sorte.
O único lugar onde não conseguimos evitar a multidão foi ao
pôr-do-sol. Mas mal-de-nós se tivessemos a pretensão de estarmos sozinhos num
dos lugares mais bonitos do Chile!
Sentámo-nos perto do Mirador do Coyote, assim chamado por
ser parecido com aquele dos desenhos animados, e deliciámo-nos com o
espectáculo: enquanto o sol mergulhava no horizonte, a paisagem em redor reagia
numa espécie de histerismo cromático, com cores e texturas pouco próprias para
quem se oferece a esta árdua tarefa de "descrever coisas".
No regresso, o Pablo partilhou um dos momentos mais
especiais da sua "carreira". Há alguns anos os U2 vieram tocar ao
Chile e aproveitaram para dar um passeio pelo país. O Pablo foi o escolhido
para os guiar em Atacama, claro. E logo ele, que é um fã. Contou-nos um ou
outro episódio sobre esses dias, e só tinha maravilhas a dizer do Bono Vox, que
"também é um espiritual". Até chorou a ver o pôr-do-sol.
E vocês: de quantos pôr-do-sol vocês se lembram, na vossa
vida?
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