27/06/2013

O QUE NOS ESPERA

Sete da manhã, estamos sentados na rua, à porta da agência de viagens. Acabou de chegar uma argentina, também vem connosco no passeio. O autocarro deve estar a chegar, diz-nos, vai levar-nos até à fronteira e só então passamos para o todo-o-terreno.


Estamos ansiosos.

Esperam-nos montanhas, vulcões e lagunas de todas as cores. Esperam-nos paisagens remotas, lugares inóspitos e momentos de cortar a respiração. Esperam-nos rochas com formatos estranhos, abrigos de montanha, folhas de coca para mascar em caso de dores de cabeça.

Esperam-nos piscinas de águas termais, cemitérios de comboios, flamingos a colorir a paisagem... e, no final, a cereja em cima do bolo: espera-nos o Salar de Uyuni.

Vem aí a camioneta.

Até daqui a três dias :)

26/06/2013

ALPACAS, DESERTO E DORES DE CABEÇA

Voltámos para San Pedro de Atacama a meio da tarde, depois de pararmos setenta e nove vezes para tirar fotografias a alpacas a pastar à beira da estrada, patos e muitos outros animais cujos nomes não me recordo. Eles também não se lembram de mim, de certeza, por isso não estou muito preocupado.

Parámos também para ver uma aldeia e a sua igreja de adobe, parámos para ver um lago, para tirar fotografias aos vulcões, ao deserto, a cada pedra e arbusto - e gostámos, gostámos muito. Mas as dores de cabeça começaram a fazer sentir-se, no regresso, nem como algum cansaço acumulado das noites mal dormidas, o passeio de bicicleta, a viagem de autocarro, os muitos quilómetros a pé.

Assim que chegámos a San Pedro, atirámo-nos para as nossas camas e já só nos levantámos, quase que por momentos, para jantar. A noite também passou depressa: no dia seguinte, tínhamos de estar às sete da manhã à porta da agência de viagens... vamos para Uyuni, na Bolívia. E vamos de carro, nós e mais quatro passageiros, pelas montanhas, durante três dias.

Esta aventura promete. As expectativas são altas: desde que começámos a planear esta viagem que contamos que este seja um dos pontos altos dos noventa e nove dias na América do Sul.

Mas enquanto não nos lançamos à estrada, ficam algumas fotos das múltiplas paragens no regresso para San Pedro de Atacama, depois do passeio aos geysers e às piscinas termais.











25/06/2013

E DEPOIS DOS GEYSERS...

...nada como dar um mergulho mesmo ali ao lado, nas quentes termas a céu aberto. Foi preciso alguma coragem, confesso que ainda vacilámos, mas não é todos os dias que se está a 4.200m de altitude, num campo geotérmico, e se tem a oportunidade de dar um mergulho nas termas locais.

Sim: estava um frio de rachar... mas do balneário à água foi uma corridinha, e que bem que se estava no quentinho desta sopa mineral.

Uma experiência obrigatória, para começar o dia com a cabeça bem fresca.





A MINHA PRIMEIRA VEZ #28.491

Nesta viagem, quem costuma registar, contabilizar e analisar as suas "primeiras vezes" é o Bunty. Foi assim com o guaraná, o hamburguer, o tango, o primeiro glaciar, isto-e-aquilo... mas hoje não consigo evitar mencionar que eu próprio tive uma "primeira vez". Uma não: duas. Pelo menos.

A primeira vez que vi geysers, por exemplo.

Ou seja: desta vez não nos deixámos dormir. Ouvimos o despertador, acordámos a horas. A carrinha passou quando tinha de passar, juntámo-nos aos outros estrangeiros, ensonados como eles, e terminámos a ronda dos hotéis. Depois o guia apresentou-se e explicou que ia demorar um bocado até chegarmos à montanha, disse-nos podíamos dormir mais um bocado e que haveria um pequeno-almoço à nossa espera, lá em cima. Mais tarde fez um pequeno briefing sobre o lugar e as precauções a tomar, por causa da altitude. Aconselhou-nos a não fazer movimentos bruscos, a não correr - e para avisarmos, caso tivéssemos dores de cabeça ou de estômago.

Os geysers ficam num pequeno vale a cerca de 4.200m. O que por si só é uma "primeira vez", porque nunca tinha subido a mais de 4.000m. Ora aqui está um pequeno recorde, este é agora o meu Everest pessoal.

E depois foi o campo de geysers. Ao longe pareciam nuvens a nascer do chão. Já perto, é bem diferente, é o cheiro e as sensações, é o calor que emana das entranhas da terra misturado com o ar gélido da montanha, o branco do vapor em contraste com a paisagem escura, pois o sol ainda não nascera.

Hoje deixo-vos alguns registos dos meus primeiros geysers, em El Tatio:











24/06/2013

OU SEJA:

Amanhã temos geysers ao pequeno-almoço!


HÁ GAJOS COM SORTE

Às vezes o Universo inteiro arranja formas de conspirar a nosso favor. Juntam-se os ventos e a arquitectura, os animaizinhos do campo, os riachos da montanha, os semáforos na cidade e vários fenómenos naturais; juntam-se as órbitras inter-planetárias e as bactérias e moléculas, a caneta de uma estrela de rock enquanto dá um autógrafo, um carro a passar numa poça de água, uma ovelha que se perde do rebanho, uma árvore em contraluz, a multidão que grita golo, uns atacadores desapertados. Todas as energias concentradas numa só sorte.

Às vezes, a nossa sorte.

Largámos a mochila no quarto e fomos-num-instante à casa-de-banho, saímos a correr do hotel e nem foi preciso virar a primeira esquina para dar de caras com o senhor da agência de viagens:

"Ia agora mesmo ter com vocês ao hotel. Precisamos de falar."

Não percebi muito bem a sequência de eventos, coincidências, inesperados e sorte. Mas o resultado final foi o seguinte:

"Podem ir amanhã aos geysers, não pagam nada por isso - e adiamos a viagem para a Bolívia para o dia seguinte."

Parecia bom de mais para ser verdade. Tanto que confirmáms várias vezes que não era preciso pagar nada extra. E não era mesmo. O senhor tinha-se dado ao trabalho de nos ajudar... e passou a tarde a ligar para o hotel, para confirmar connosco que estávamos de acordo. E agora vinha ter connosco!

Há gajos com sorte, não há?

E há pessoas incríveis, de uma gentileza pouco comum, que se dão ao trabalho de um esforço activo para ajudar os outros. Obrigado por isso.

Conclusão: baralha tudo e dá de novo. Amanhã vamos ver os geysers de madrugada e só depois é que arrancamos para a Bolívia. Tudo está bem quando "acaba" bem.

:)

PERDIDOS... NÓS?!

"A roda enfiou-se na areia..."

Larguei a minha bicicleta e fui a correr até perto do meu amigo. Estava sentado no chão, de cabeça baixa mas a rir baixinho, perplexo com o que lhe tinha acabado de acontecer. No entanto, era mais o cansaço que o dano. Tinha esfolado um dos joelhos e doía-lhe um braço e o pulso, mas percebi logo que não era nada de grave.

E apesar de apetecer descansar e recuperar forças - porque esta queda era um claro sinal de que estávamos a precisar disso -, não tivemos outra opção senão prosseguir. Como já disse antes, o sol tinha desaparecido e a temperatura estava a descer. Não nos podíamos "dar ao luxo" de não encontrar uma estrada. O mais depressa possível, se faz favor.

Tinha visto umas árvores ao longe e foi para elas que nos dirigimos. Embrenhámo-nos numa vegetação cada mais densa, convencidos que tinha de haver alguma coisa ali, nem que fosse uma horta, um poço, qualquer vestígio de actividade humana.

E o instinto provou estar certo: um pouco mais à frente encontrámos um carrinho de mão e umas tábuas, aparentemente abandonados nas ervas. Continuámos e vimos uns baldes. E uma horta! E algures... mais à frente... obrigado, sorte: uma casa. Um cão a ladrar. Uma criança a brincar perto de um carro. Estamos salvos ;)

Perguntei em tom de amigalhaço onde ficava a estrada para San Pedro, como se nada fosse, como se nem estivéssemos com sede e cansados e um-tanto-ou-quanto desesperados. O miúdo apontou para um caminho que ia dar a outra casa... e outra... e à medida que avançávamos, apercebemo-nos que estávamos numa pequena aldeola de cinco ou seis casas. Um velhote chamado Samuel juntou-se a nós e assim fomos à conversa, entre muros de lama e pedras, com um cão muito simpático sempre a correr à nossa volta, o senhor estava muito surpreendido por ver um indiano, uma pessoa de tão longe... e eis que de repente surge uma estrada - a estrada "principal"!

Ao fundo, do lado direito, vimos no topo de um pequeno monte a tal igreja que fora, desde o princípio do passeio, o nosso objectivo. Para a esquerda ficava San Pedro.

"Deixa lá a igreja em paz, já vimos muitas nesta viagem. E outras virão. Vamos para casa."


Dito e feito. Despedimo-nos do Samuel e pé no pedal, que se faz tarde. A estrada agora seguia ligeiramente a descer, só não fomos mais depressa porque o Bunty estava cheio de dores. Mais à frente, passámos junto à entrada da Garganta del Diablo, onde começara esta longa e árdua aventura de uma tarde. Cruzámo-nos com um grupo de cinco ou seis hippies locais, que caminhavam descalços com mochilas carregadas sabe-se lá do quê, guitarras debaixo do braço e garrafas de vinho. Iam passar a noite no desfiladeiro. Cumprimentámo-los e continuámos pela estrada fora, atravessámos os mesmos riachos de antes - e quando finalmente chegámos a San Pedro de Atacama, já era noite cerrada.

O rapaz da loja das bicicletas estava preocupado connosco - achava que nos tínhamos perdido, algures no deserto.

Perdidos... nós?!

Que ideia... ;)

E porque um dia intenso como o de hoje não podia acabar sem mais uma emoção forte: quando chegámos ao hotel, a menina da recepção veio a correr ter connosco, desta vez menos sorridente, a dizer que tinham ligado várias vezes da agência de viagens e que precisavam de falar urgentemente connosco.

E agora?! Não me digam que vão cancelar o passeio à Bolívia... só nos faltava mais esta.

23/06/2013

LOST (NA GARGANTA DO DIABO)

Do centro da cidade pedalámos por ruas de terra batida até já não haver mais casas, e seguimos obedientemente na direcção que o "mapa" nos indicava - e se ponho aspas na palavra "mapa" é porque na verdade aquilo não passava de em esboço feito à pressa numa folha A4, e fotocopiado para turista ver.

Ao princípio tudo nos pareceu muito fácil. Estabelecemos como meta uma igreja algures no meio dos desfiladeiros, ou pelo menos assim fazia crer o "mapa". E de acordo com a romântica/ingénua leitura que fizemos da branca folha de papel, decidimos atravessar a Garganta del Diablo até à tal igreja, e depois voltar pela estrada "principal", que também leva aspas porque obviamente só é "principal" porque a alternativa são os trilhos. Não pisámos alcatrão uma única vez ao longo da tarde - e ainda bem - e ao todo não passaram por nós mais de meia dúzia de carros, na tal estrada "principal".

Começámos por achar estranho o facto de termos de atravessar riachos. Tínhamo-nos convencido que isto ia ser um daqueles "passeios saloios" para o turista que não tem nada melhor para fazer. Mas afinal a coisa era um bocadinho mais radical.



Lá fomos, estrada "principal" afora, descalçando-nos sempre que era preciso, atravessando a rir os tais riachos de água gelada, tu já viste isto, afinal metemo-nos numa aventura e pêras... sempre à procura da entrada do desfiladeiro.

Quando vimos a Garganta del Diablo, era óbvio demais para haver confusões. Um pequeno trilho entalado entre rochas enormes, serpenteando no meio de silenciosos desfiladeiros, ora mergulhado em sombra, ora a brilhar quente com o terrível sol do deserto.






A primeira hora de pedaladas foi fértil em wows e amaaaazings. Parámos duzentas vezes para tirar fotografias, rimo-nos de tão bonito que era o passeio... mas o calor começou a apertar e a altitude depressa se fez notar. Um pouco de dores de cabeça. A respiração mais pesada. O coração a bater mais rápido. Notámos que estávamos a beber água com uma frequência pouco comum noutros passeios, cansávamo-nos mais depressa, descansávamos com mais frequência.

Isto afinal não era só um "passeio saloio".

Fomos avançando pela paisagem adentro e à medida que da Garganta passávamos para as Entranhas del Diablo ;) começámos também a desejar encontrar depressa à igreja. Pelo "mapa", não devíamos estar longe. Mas depois de uma curva vinha outra, e depois da outra mais uma - e nunca mais víamos o nosso santo destino.

A água dentro da garrafa desceu ainda mais rápido que o sol no horizonte, chegando a níveis pouco aconselháveis para quem não sabe o caminho para casa. À medida que a tarde avançava e a temperatura descia, começámos a ficar com pressa de sair dali - e se durante muito tempo não tivemos dúvidas no caminho, pois era só seguir o desfiladeiro e as marcas das bicicletas - a caso mudou de figura quando apareceram ramificações, desvios, becos sem saída. Vamos por aqui, que tem mais marcas. Mas esta parece ser a principal, acho que vai dar a algum lado. E esta? Deixa-me experimentar esta, espera aqui com as bicicletas que eu vou ver a pé. Não: nada. Não vai dar a lado nenhum.

Está-se mesmo a ver, não é?

Perdemo-nos.

E o "mapa" já nem saía do bolso. Para quê.

Perdemo-nos. E não estou a falar de "perdemo-nos-mas-na-boa-porque-se-formos-sempre-em-frente-vamos-ter-a-algum-lado.

Nada disso.

Perdemo-nos, senhoras e senhores: e estamos num deserto. Estamos num lugar chamado Garganta del Diablo, que fica ao lado do Vale de la Muerte. Não muito inspirador.

Tínhamos de encontrar uma saída depressa. O sol estava prestes a desaparecer nas montanhas, a temperatura descia a olhos vistos... tínhamos de sair daqui e não só porque tinha que ser, porque não queríamos dormir no deserto... mas porque no dia seguinte era suposto estarmos à porta da agência às sete da manhã, para apanharmos o jipe para a Bolívia.

E vá-se lá entender porquê, chamem-lhe preciosismos, mariquices, manias: mas depois da desilusão matinal, não nos apetecia muito desperdiçar mais um tour.

Ou seja: começámos a achar pouca piada ao facto de não encontrarmos a porcaria da saída. Incrível: deixam os turistas vir para aqui e isto não está minimamente preparado, e como é que nos deixámos perder assim, mas isto é espectacular, já viste este trilho, e há bocado não viste um gajo ao longe de bicicleta, onde é que ele está... enfim, os ânimos variavam muito rapidamente entre o deslumbre e a frustração, entre a indignação e o "tira-me aí uma fotografia com aquela pedra de fundo".

Delírio?

Nada disso: é mesmo qualquer coisa que não bate bem, aqui.
a﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽sts um gajo ao longe de bicicleta, onde a temperatura descia a olhos vistos... to do Vale de la Muerte. N

Mas continuando: tenho de confessar que o trilho era espectacular. Mesmo tendo em conta as circunstâncias, o facto é que estávamos a gozar o passeio. E logo agora, que íamos ligeiramente a descer e a altitude já não pesava tanto com o esforço. Comecei a pedalar com mais força, a ganhar velocidade, a deixar-me levar pelas curvas do trilho, as pequenas subidas e descidas, as inclinações... parecia que estava numa montanha-russa comandada pelas minhas pernas.


Fomos parar a uma espécie de vale, completamente inóspito, manchado de sal e areia - continuávamos a não fazer ideia de onde estávamos. O sol escondeu-se finalmente atrás das "arribas" e a temperatura desceu ainda mais. Na minha cabeça passavam imagens de nós os dois sentados entre duas rochas, um céu estrelado por cima, a beber o último quarto de litro de água, à espera de ser resgatados... a sério que temi por um final desse calibre. E tinha a certeza que, mais-volta-menos-volta, fosse-como-fosse que isto acabasse, iríamos perder o jipe.

O Bunty entretanto ficara para trás - mas estava à vista, ainda no início do tal vale. Eu pedalava a custo na areia cada vez mais macia. Tinha visto umas árvores ao fundo e convenci-me que íamos encontrar alguém por ali. Um pequeno oásis - tinha de haver alguém. Mas no auge desta espécie de delírio ouvi um grito e o eco que se seguiu. Alguém a chamar-me. Parei a bicicleta e olhei para trás: o Bunty estava estatelado no chão.

22/06/2013

PLANO B

Quando acordámos pela segunda vez, já de manhã, apetecia pouco sair do quarto. A frustração era grande - e só de imaginarmos que, naquele momento, poderíamos estar a tomar banho na água borbulhante de umas termas, nos vulcões...

Tomámos o pequeno-almoço e fomos directos à agência, onde confirmámos o que já estávamos à espera: não havia volta a dar. O senhor que nos atendeu hoje até era bastante simpático, pediu desculpas (!) por não poder oferecer outro tour amanhã, mas os lugares tinham ficado vazios esta manhã - e a transportadora não queria saber de explicações. Paciência.
Entretanto tínhamos reservado para amanhã os 3 dias em todo-o terreno até Uyuni, na Bolívia. E apesar do senhor garantir que não haveria problema em adiar essa viagem, a verdade é que não tínhamos alternativa no que diz respeito aos geysers. A não ser comprar outro tour. Mas isso estava fora de questão.

Começámos então a mentalizar-nos que provavelmente os geysers não eram nada de especial. Deve ser muito turístico. E a altitude: um gajo fica logo com dores de cabeça. Se calhar não fomos por intervenção divina. Não era suposto irmos. Azar. E até temos uma piscina de águas termais a caminho da Bolívia, no tour de amanhã. Paciência, fica para a próxima... enfim, a verdade é que não valia a pena insistir com o drama.

Voltámos para o quarto, sem saber muito bem o que fazer, e praticamente sem-querer descobri a razão de não termos acordado com o despertador. O volume do telefone estava no mínimo.

Pois.

E um poço para eu me atirar, não há?

"Porque é que não alugamos umas bicicletas?," diz de repente um de nós ao outro, não me lembro se eu ao Bunty, ou se ele a mim. Também não interessa muito.

Nem vinte minutos depois estávamos já a pedalar pelas poeirentas ruas de San Pedro de Atacama, com um mapa no bolso e a máquina fotográfica na mochila. Comprámos duas garrafas de água e umas bolachas - e toca a pedalar, que já só temos o dia de hoje por aqui, e este plano B de repente até parece melhor que o original.

Lembrámo-nos que o Pablo, o espiritual guia de ontem no Vale da Morte, nos recomendara um lugar chamado "Garganta del Diablo". Na folha A4 com o mapa desenhado, que nos deram na agência das bicicletas, não vinha nada assinalado com esse nome. Mas perguntámos a alguns locais e depressa descobrimos onde ficava.

Vamos lá então!



DRAMA EM FAST FORWARD ÀS 5 DA MANHÃ

Deitámo-nos relativamente cedo ontem à noite, porque vinham-nos buscar de madrugada para o tour aos geysers de El Tatio. A senhora-da-agência bem que nos avisou: a carrinha passa à porta do vosso hotel, mas ninguém vai acordar ninguém. Têm de estar na rua à espera, a partir das quatro, que eles fazem a ronda dos hotéis.

Assim sendo: marquei o despertador para as três e meia, apaguei as luzes e boa noite, Bunty. À falta de sono contei carneiros a saltar a cerca, um carneiro, dois carneiros, três, quatro... nem  custou muito a adormecer.

O pior foi acordar.

Abri os olhos, ensonado. O quarto estava completamente escuro, mas alguma coisa me inquietava. Insónias. Deve ser do medo de não acordar com o despertador, pensei em slow motion. Respirei fundo e virei-me para o outro lado da cama. Tenho que adormecer outra vez, não há razões para estar preocupado, quando o despertador tocar eu acordo.

Mas não conseguia - e não vale a pena soltar o rebanho. Voltei a mudar de posição, sempre em slow motion, como se cada movimento precisasse de ser negociado... e à falta de coisa melhor para fazer, decidi ver que horas são. Será que falta muito para o despertador tocar?

Estiquei o braço - o telefone estava em cima da mesa de cabeceira, ao lado dos óculos. Na cama ao lado, o Bunty ressonava baixinho. Cerrei os olhos para ver melhor, aproximei o telefone do rosto... eram...

...quase cinco da manhã!

Nãããããooo!

Senhoras e senhores: haviam de me ver em modo fast forward.

"Acorda, Bunty, acorda! São cinco da manhã, perdemos a carrinha para os geysers!"

Ainda ele se estava a levantar, já eu me calçava. Saí a correr para a rua mas não vi nada. Já devem ter passado, pensei. Então a noite fria lembrou-me que ainda não tinha vestido o casaco, nem as luvas, nem o cachecol. Vi um casal mais à frente, também à espera, fiz-lhes sinal.

"Já foi embora," disseram-me à distância. "Esteve à vossa espera uns dez ou quinze minutos e depois foi embora, não há muito tempo."

Que estúpidos! Como é que nenhum dos dois não ouviu a m... do despertador!

Ainda tinha esperança que passassem segunda vez, por isso voltei a correr ao quarto. O Bunty estava quase pronto, com cara de quem ainda não percebeu se está acordado ou a sonhar. Fui num salto à casa-de-banho, lavei os dentes, vesti os agasalhos que tinha que vestir, enchi uma pequena mochila com o fato-de-banho e a toalha, a máquina fotográfica, eu-sei-lá-o-quê.

Esperámos uns vinte minutos debaixo de um estreladíssimo céu. E nada, claro. Foram embora, estávamos à espera do quê. Esperaram um pouco, não aparecemos, foram embora. Simples.

Cinco e meia da manhã - decidimos voltar para o quarto e dormir mais um bocado. Que estúpidos. Desperdiçámos dinheiro, tempo, sono, energia e uma experiência única. Mas não vale a pena dramatizar agora: não são horas de dramatizar. Dormir. Precisamos de dormir. E quando a agência abrir, vamos lá explicar o que se passou. Logo se vê.

21/06/2013

ESTÁ NA HORA... DA CAMINHA...

E por hoje já chega de conversa, que amanhã temos de acordar às três e meia da manhã. Às quatro em ponto passam aqui à porta para nos vir buscar: reservámos dois lugares no tour a El Tatio, um campo de geyzers a 4.200m de altitude.

Boa noite!

SABIA QUE... #09

...o nome "Vale de la Muerte" não tem nada a ver com o facto deste ser um dos lugares mais inóspitos do planeta Terra.

Apesar de "encaixar que nem uma luva" ao lugar, a verdade é que o nome original era "Vale de Marte" - sim, aquele dos pequenos seres verdes com três olhos e dedos muito compridos. O planeta vermelho.

Por ser muito parecido com aquilo que imaginava ser a paisagem de Marte, o missionário belga R. P. Le Paige - pai da investigação arqueológica na região - adaptou o nome do planeta ao vale.

Mas pelos vistos, o Tempo tratou de trocar as voltas ao Homem, e por causa de um mero erro de pronunciação, este inóspito lugar acabou por ficar famoso pelo nome que toda a gente conhece, nos dias que correm.

E já agora:

Sabia também que a NASA testa aqui algum do equipamento que leva nas suas missões a Marte?

AS TRÊS MARIAS


Disse-nos o Pablo que estas rochas se chamam "As Três Marias" porque se parecem com três mulheres a rezar.

Hmmmm... ok.

O POST POSSÍVEL, TENDO EM CONTA QUE ME SINTO ESMAGADO PELO QUE VI HOJE

A meio da tarde apareceu o nosso guia, que se foi apresentando à medida que nos "arrumávamos" no carro. O Pablo era freelancer, tinha estudado História e Geologia, ou História da Geologia, ou Geologia da História - não me lembro bem, mas o senhor era definitivamente um expert.

"De quantos pôr-do-sol vocês se lembram, na vossa vida?"

O Pablo tinha um orgulho confesso em partilhar a sua terra natal com os turistas, e apesar da resistência da família, que não considerava o trabalho à altura do seu estatuto social, fez-se guia turístico.

"Hoje vão assistir a um pôr-do-sol que jamais irão esquecer."

O Pablo tinha uma especial aversão a grupos grandes. E a máquinas fotográficas. Ou seja: andámos o tempo todo a desviar-por-aqui e a fugir-por-ali, despachem-se porque eles vêm aí, evitando as concentrações de turistas, que chegavam de minibus em ruidoso e colorido rebanho. Para nós foi óptimo, claro, porque visitámos o Vale da Lua, o Vale da Morte, a Quebrada de Kari, as Três Marias e o Mirador do Coyote, entre muitas dunas, formações rochosas e vulcões ao longe... tudo o que os outros grupos viram - mas só nós seis, sem niguém à volta a maior parte do tempo. Sozinhos, aos saltos num todo-o-terreno que só acrescentou emoções fortes ao passeio.





Diz quem sabe destas coisas que o Deserto do Atacama é o lugar mais seco do planeta. Parece que, em algumas partes, não chove há mais de quatrocentos anos - e o Pablo explicou-nos que uma das causas deste fenómeno é o facto dos Andes funcionarem como uma esponja, absorvendo toda a água das nuvens que se alojam à volta, e por isso é que "deste lado" é tão seco, e "do outro" tão verde.

A verdade é que o cenário é absolutamente esmagador.





O Vale da Lua deve o seu nome à extraordinária semelhança que a paisagem tem com a superfície lunar. Explicou-nos o Pablo que havia aqui, há muitos-muitos séculos, um enorme lago de água salgada que, ao elevar-se devido a uns "abanões", criou a Cordilheira do Sal. Os depósitos de areia, barro e sal conviveram durante milénios com inundações, erupções vulcânicas e muito vento - e a erosão deu nisto: uma área repleta de interessantes formações rochosas, enormes dunas de areia, depósitos de sal.

É uma experiência inesquecível, o passeio ao Vale da Lua. Com ou sem turistas à mistura.



"Agora esqueçam as máquinas e fechem os olhos, sintam a energia que emana da terra, fiquem em silêncio. Encontramo-nos daqui a vinte minutos ali ao fundo, depois da terceira rocha, eu espero por vocês lá."

O Pablo era um espiritual.

Entretanto ficámos a saber que uma das raparigas que vinha no carro era geóloga, e tinha reservado o tour com ele de propósito, para aprofundar um pouco mais. E como queria cortar nos custos, disponibilizou os lugares vagos no carro para os outros hóspedes do hotel - nós, portanto.

Há gajos com sorte.




O único lugar onde não conseguimos evitar a multidão foi ao pôr-do-sol. Mas mal-de-nós se tivessemos a pretensão de estarmos sozinhos num dos lugares mais bonitos do Chile!

Sentámo-nos perto do Mirador do Coyote, assim chamado por ser parecido com aquele dos desenhos animados, e deliciámo-nos com o espectáculo: enquanto o sol mergulhava no horizonte, a paisagem em redor reagia numa espécie de histerismo cromático, com cores e texturas pouco próprias para quem se oferece a esta árdua tarefa de "descrever coisas".





No regresso, o Pablo partilhou um dos momentos mais especiais da sua "carreira". Há alguns anos os U2 vieram tocar ao Chile e aproveitaram para dar um passeio pelo país. O Pablo foi o escolhido para os guiar em Atacama, claro. E logo ele, que é um fã. Contou-nos um ou outro episódio sobre esses dias, e só tinha maravilhas a dizer do Bono Vox, que "também é um espiritual". Até chorou a ver o pôr-do-sol.

E vocês: de quantos pôr-do-sol vocês se lembram, na vossa vida?