Estação de comboios de Hanoi, 11:30am
Entro no edificio de reserva de bilhetes dos Caminhos de
Ferro Vietnamitas e deparo-me com uma sala quase vazia. Não é a primeira vez
que aqui venho - faço-o com alguma frequência, para ser franco. Sempre que estou para
receber um grupo de viajantes da nomad.
Ou seja: não me surpreende que apenas um dos oito guichets
esteja a funcionar. E apesar de ficar contente por não ver ninguém a ser
atendido, também não é razão para grande festa: normalmente há duas ou três
pessoas à minha frente, a fila resolve-se em dez minutos no máximo.
Atravesso a sala em confiantes passadas e acerco-me do
balcão, para finalmente perceber que também não está ninguém do outro lado do
vidro. Não há clientes, não há funcionários... mas... esperem lá um bocadinho, digo para os meus
botões, não é preciso entrar em pânico, afinal a senhora está ali - ali ao fundo, sentada de costas para mim,
debruçada sobre uma mesa... a comer?!
Exactamente: vim interromper o almoço da funcionária. Ela
olha para trás, a boca ainda aberta, os pauzinhos com os noodles pendurados, a
escorregar lentamente com a sopa, eu esboço um sorriso condescendente e com um
esgar indico claramente que pode terminar a refeição.
Não tenho pressa, não tenho ninguém à frente, não me importo
de esperar um bocadinho, ela que termine o almoço. Quero tudo menos ser
atendido por uma funcionária pública vietnamita com má vontade.
Ela volta-se de novo para a comida e debruça-se sobre a
mesa. Do outro lado da janela, vejo dois tios a jogar ténis, de calções e polo branco
apesar do frio everéstico, num court tão imaculado que não parece real. Mais
ao fundo, no parque de estacionamento: um AUDI branco cujo modelo nem consigo identificar, parece
tirado de um filme do James Bond.
Toca o telefone da estação. A senhora não esboça qualquer emoção.
Durante os próximos dez minutos, o telefone vai continuar a tocar, ela vai
continuar a comer, eu vou continuar à espera. E lá fora a bola de ténis passa
para a esquerda, para a direita, e dois tios de Hanoi correm felizes com as
raquetes em riste.
Chega uma senhora de meia idade, acompanhada de uma velhota
sem dentes, as duas têm lenços de padrões iguais à volta da cabeça. Ficam por
momentos atrás de mim, em silêncio, para pouco depois começarem a espreitar
para dentro das bilheteiras, à procura da pessoa que nos devia estar a
atender. Quando a vêm à mesa a sorver a sopa que escorre dos noodles,
retiram-se sem nada dizer e sentam-se nos degraus, na rua, a descascar uma
laranja.
Estou à espera há dezoito minutos.
De repente, toca um telemóvel. E eis que a mulher salta
da cadeira como se alguém tivesse carregado no botão de eject, o que me faz temer pela
sua saúde, visto que à velocidade que estava a comer, podia jurar que lhe restavam
poucos meses de vida. E dá duas piruetas e dá um mortal encarpado, e aterra
junto ao telemóvel antes do "trrrim" chegar ao "im".
"Haaaallooooo?"
E volta para a mesa arrastando-se sorridente.
Chega outro cliente, um chefe de família à antiga. Fala ao
telefone como se estivesse num estádio de futebol cheio, num dia de vendaval; e
fuma. Planta-se à minha esquerda, à mesma distância que teria de se plantar,
caso o edifício estivesse cheio de gente - e continua a gritar e a fumar como
se eu não estivesse presente. Depois "dá a volta" e vem para a minha
direita, à mesma distância. Além do fumo do cigarro, consigo cheirar o seu
hálito. Volta para a minha esquerda, e novamente para a direita, fumo e
gritaria em dolby surround, até que fixo o meu olhar gelado no seu, e com pose e expressão merecedoras de
um Óscar faço-lhe sinal para "desopilar".
Isso mesmo.
O senhor cala-se por um brevíssimo instante e congela,
como se eu fosse um fantasma, um extraterrestre, como se eu me estivesse a
tranformar em alguma coisa horrenda... e subitamente afasta-se, sem dizer nada, e volta à sua
peixeirada e ao seu cigarro, mas a uma distância segura.
"Vai na volta e é perigoso", deve estar a pensar.
"Vai na volta e é perigoso", deve estar a pensar.
Vinte e três minutos. Estou oficialmente irritado. Tudo o que vai para além de vinte e dois minutos e quarenta e sete segundos é, para mim, um abuso. Lá dentro, a besta de vestido às florzinhas insiste em tentar quebrar o recorde da pessoa mais lenta do mundo a comer uma
sopa vietnamita. Ou então os noodles estão muito quentes. Deve ser isso. Deve
precisar que alguém lhe sopre a sopinha. E já agora o "aviãozinho", não?
Mas eu vou aguentar, tenho tanto de teimoso como de masoquista. Não vou interrompê-la, isso pode ser
pior, dependo da sua boa vontade e conheço demasiado bem os serviços públicos vietnamitas para saber que não a posso irritar.
Começo a tirar notas para escrever um texto quando regressar ao quarto - e quando volto a levantar os olhos na direcção da ignóbil senhora, ela está a palitar os dentes.
Começo a tirar notas para escrever um texto quando regressar ao quarto - e quando volto a levantar os olhos na direcção da ignóbil senhora, ela está a palitar os dentes.
Já não falta muito para eu reservar os bilhetes de comboio
do grupo nomad.
3 comentários:
Estou aqui torcida sobre a barriga, a rir que nem uma perdida!!! Oh Jorge, quem diria...tu tão calminho, que em 20 dias de viagem só te vi realmente zangado uma vez..., desesperaste mesmo com a senhora de vestido às florzinhas?? :)))
Fora de brincadeiras, a descrição é tão perfeita que eu consegui efectivamente imaginar-te, e à senhora vietnamita a sorver os noodles, já para não falar do fulano a gritar-te ao ouvido enquanto te mandava baforadas ...
Lindo!! :))
Beijinho amigo, é sempre um prazer ler o que escreves.
Mais uma crónica espectacular!!!
E eu a pensar que já não paravas por aqui...!
LOL Jorge! Muito bom :) Ahahah o que eu já me ri!
Raquel A.
Enviar um comentário