28/02/2012

OSSOS DO OFÍCIO

















Estação de comboios de Hanoi, 11:30am

Entro no edificio de reserva de bilhetes dos Caminhos de Ferro Vietnamitas e deparo-me com uma sala quase vazia. Não é a primeira vez que aqui venho - faço-o com alguma frequência, para ser franco. Sempre que estou para receber um grupo de viajantes da nomad.

Ou seja: não me surpreende que apenas um dos oito guichets esteja a funcionar. E apesar de ficar contente por não ver ninguém a ser atendido, também não é razão para grande festa: normalmente há duas ou três pessoas à minha frente, a fila resolve-se em dez minutos no máximo.

Atravesso a sala em confiantes passadas e acerco-me do balcão, para finalmente perceber que também não está ninguém do outro lado do vidro. Não há clientes, não há funcionários... mas... esperem lá um bocadinho, digo para os meus botões, não é preciso entrar em pânico, afinal a senhora está ali - ali ao fundo, sentada de costas para mim, debruçada sobre uma mesa... a comer?!

Exactamente: vim interromper o almoço da funcionária. Ela olha para trás, a boca ainda aberta, os pauzinhos com os noodles pendurados, a escorregar lentamente com a sopa, eu esboço um sorriso condescendente e com um esgar indico claramente que pode terminar a refeição.

Não tenho pressa, não tenho ninguém à frente, não me importo de esperar um bocadinho, ela que termine o almoço. Quero tudo menos ser atendido por uma funcionária pública vietnamita com má vontade.

Ela volta-se de novo para a comida e debruça-se sobre a mesa. Do outro lado da janela, vejo dois tios a jogar ténis, de calções e polo branco apesar do frio everéstico, num court tão imaculado que não parece real. Mais ao fundo, no parque de estacionamento: um AUDI branco cujo modelo nem consigo identificar, parece tirado de um filme do James Bond.

Toca o telefone da estação. A senhora não esboça qualquer emoção. Durante os próximos dez minutos, o telefone vai continuar a tocar, ela vai continuar a comer, eu vou continuar à espera. E lá fora a bola de ténis passa para a esquerda, para a direita, e dois tios de Hanoi correm felizes com as raquetes em riste.

Chega uma senhora de meia idade, acompanhada de uma velhota sem dentes, as duas têm lenços de padrões iguais à volta da cabeça. Ficam por momentos atrás de mim, em silêncio, para pouco depois começarem a espreitar para dentro das bilheteiras, à procura da pessoa que nos devia estar a atender. Quando a vêm à mesa a sorver a sopa que escorre dos noodles, retiram-se sem nada dizer e sentam-se nos degraus, na rua, a descascar uma laranja.

Estou à espera há dezoito minutos.

De repente, toca um telemóvel. E eis que a mulher salta da cadeira como se alguém tivesse carregado no botão de eject, o que me faz temer pela sua saúde, visto que à velocidade que estava a comer, podia jurar que lhe restavam poucos meses de vida. E dá duas piruetas e dá um mortal encarpado, e aterra junto ao telemóvel antes do "trrrim" chegar ao "im".

"Haaaallooooo?"

E volta para a mesa arrastando-se sorridente.

Chega outro cliente, um chefe de família à antiga. Fala ao telefone como se estivesse num estádio de futebol cheio, num dia de vendaval; e fuma. Planta-se à minha esquerda, à mesma distância que teria de se plantar, caso o edifício estivesse cheio de gente - e continua a gritar e a fumar como se eu não estivesse presente. Depois "dá a volta" e vem para a minha direita, à mesma distância. Além do fumo do cigarro, consigo cheirar o seu hálito. Volta para a minha esquerda, e novamente para a direita, fumo e gritaria em dolby surround, até que fixo o meu olhar gelado no seu, e com pose e expressão merecedoras de um Óscar faço-lhe sinal para "desopilar".

Isso mesmo.

O senhor cala-se por um brevíssimo instante e congela, como se eu fosse um fantasma, um extraterrestre, como se eu me estivesse a tranformar em alguma coisa horrenda... e subitamente afasta-se, sem dizer nada, e volta à sua peixeirada e ao seu cigarro, mas a uma distância segura.

"Vai na volta e é perigoso", deve estar a pensar.

Vinte e três minutos. Estou oficialmente irritado. Tudo o que vai para além de vinte e dois minutos e quarenta e sete segundos é, para mim, um abuso. Lá dentro, a besta de vestido às florzinhas insiste em tentar quebrar o recorde da pessoa mais lenta do mundo a comer uma sopa vietnamita. Ou então os noodles estão muito quentes. Deve ser isso. Deve precisar  que alguém lhe sopre a sopinha. E já agora o "aviãozinho", não?

Mas eu vou aguentar, tenho tanto de teimoso como de masoquista. Não vou interrompê-la, isso pode ser pior, dependo da sua boa vontade e conheço demasiado bem os serviços públicos vietnamitas para saber que não a posso irritar.

Começo a tirar notas para escrever um texto quando regressar ao quarto - e quando volto a levantar os olhos na direcção da ignóbil senhora, ela está a palitar os dentes.

Já não falta muito para eu reservar os bilhetes de comboio do grupo nomad.