(parte 1)Podia ter-se chamado Alzira, fosse outra a geografia no dia em que nasceu. Podia ser alentejana, ser filha de um Joaquim e de uma Augusta – mas não. Cresceu numa aldeia vietnamita a onze mil quilómetros do Alentejo. Não se chama Alzira nem é filha de um Joaquim. Chama-se Teresa.
Teresa, em vietnamita, diz-se Thrè Sí Nhâ.
Ou pelo menos quero acreditar que sim: que se chama Teresa, e que a tradução é esta.
Nasceu numa aldeia que não aparece no mapa, de tanto se esconder atrás do nevoeiro, algures nas montanhas do Norte do Vietname. Os pais eram (e são) agricultores, tal como foram os avós, e os avós dos avós – bem vistas as coisas, Thrè Sí Nhâ nunca teve grandes alternativas profissionais. Cresceu ao ritmo das estações e das colheitas, a plantar arroz e a colher arroz – o mesmo que comia às refeições. Podia ter trabalhado com uma enxada, se fosse alentejana. Mas a geografia deu-lhe outros instrumentos, que lhe provocaram os mesmos cortes nas mãos, calos e uma aspereza que se entranhou na pele e nos modos.
Aos vinte e poucos decidiu, vá-se lá saber porquê, fugir para a cidade. Juntou uns dinheiros, ignorou avisos e perigos, apanhou um autocarro cheio de gente e um dia, duas noites e algumas avarias depois, deu por si perdida no meio de um frenético labirinto de ruas coloridas e histéricas. Hanói.
Entre sonhos não realizados e empregos improvisados, Thrè Sí Nhâ conformou-se com o equilíbrio possível. Passaram dias, semanas e meses. Agora vive uma existência pouco exigente, arranstando-se silenciosamente entre um mal-pago trabalho de limpezas no Bodega Hotel, a negligência de um namorado ausente e muito amigo de uma caneca cheia de Bia Hoi, e a ansiedade pelas cenas dos próximos episódios da sua telenovela preferida.
Aos domingos de manhã, junta-se a um grupo de velhotas que fazem ginástica nas margens do lago Hoan Kiem. Abanam-se fora de ritmo ao som de músicas latinas, massajam os ombros umas das outras, de pé, em fila indiana, e de vez em quando excitam-se com a possibilidade de ver uma tartaruga gigante a nadar no rio. Diz que dá sorte. E às quintas-feiras, ao princípio da noite, vai dar uma volta a pé pelo Bairro Antigo, a ver montras e os turistas que passam de Lonely Planet na mão.
Foi uma coincidência, conhecê-la.
Ou uma ironia. Não sei que nome dar às circunstâncias que nos levaram a cruzar destinos. Mas a verdade é que aconteceu.
Eu tinha ido jantar a uma qualquer tasca de esquina, sentei-me num minúsculo banco de plástico e apesar de não estar muito bem da barriga, insisti em pedir Pho, o prato nacional – sopa de massa de arroz com carne de vaca.
Acabada a refeição, voltei para a rua. Objectivo: regressar ao hotel. Mas, a meio-caminho, um néon brilhante chamou-me a atenção. Não era a primeira vez que o via, já tinha passado por esta rua várias vezes.
Foot Massage.
Prometera a mim mesmo, noutras ocasiões, que “um dia destes” ia parar aqui e investir noventa minutos do meu tempo num mimo absolutamente dispensável, mas delicioso. Adoro massagens. E como diriam os pacotes de açúcar em Lisboa: “hoje é o dia.”
“Ora muito boa tarde, quanto custa.” O costume. Deram-me uma lista de massagens possíveis, escolhi a Body Massage 90 Minutes, não interessa o preço. Mandaram-me esperar numa sala com três marquesas, uma televisão enorme e os canos à vista.
E enquanto esperava, imagino que tenha sido isto que aconteceu: o senhor da recepção voltou para a recepção, limpou o suor da testa e olhou em redor, à procura sabe-se lá do quê, com uma expressão enigmática no rosto. Pânico, diria quem o conhece bem.
A Thrè Sí Nhâ ia a passar na rua, distraída com um sem-número de preocupações. Tinha lido uma mensagem suspeita no telemóvel do namorado, confrontou-o e foi acusada de ser ciumenta e possessiva, de o estar a espiar, de ser a má da fita. E por falar em má da fita: a sua telenovela preferida estava mais emocionante que nunca: esta semana ia descobrir-se toda a verdade sobre quem roubou as jóias da Huóng Giang, e o Nguyên Hâi ia finalmente beijar a Thu Hà.
“Desculpe… por acaso sabe fazer massagens?”
Thrè Sí Nhâ olhou para o homem que lhe tinha dirigido a palavra. Não o conhecia. Deu um passo atrás e ele sorriu, nervoso, também atrapalhado com a situação. Trocaram algumas impressões rápidas, ele fez-lhe uma oferta e ela não recusou. Sim: sabia fazer massagens – toda a gente sabe fazer massagens. Costumava fazer ao namorado, quando ele lhe pedia. E uma vez, quando era mais nova, viu na televisão da escola um programa tailandês a explicar as técnicas tradicionais dessa velha arte – não que Thrè Sí Nhâ falasse tailandês, mas pelas imagens já deu para aprender alguma coisa.
Vestiu a bata que lhe deram e foi encaminhada para uma sala com três marquesas, uma televisão enorme e os canos à vista. Lá dentro, um estrangeiro: eu.
Coincidência? Ironia do destino? Ou uma piada de mau gosto? Não perca as cenas do próximo episódio.