‘Satu! Dua! Tiga! Check!’, repete até à exaustão um grito entediado, nos altifalantes, ao ponto de eu já sentir falta da estridente chinfrineira que veio substituir, há uns cinco minutos.
Estou sentado num restaurante improvisado numa tenda, a comer arroz com algo que, quando fiz o pedido, achei que era galinha. Mas estamos num templo, ou mais ou menos, e aqui não se serve carne.
‘Somos mais de três mil, hoje, aqui nas Batu Caves’, diz-me o homem sentado ao meu lado, na mesa corrida em inox, ‘alguns estão fardados, mas muitos vieram como eu, à paisana. Para garantir a segurança dos peregrinos, mas sem impor demasiado a nossa presença’ – e, depois de uma pausa carregada de cumplicidade, ‘e para apanhar os bandidos, que assim não sabem quem nós somos’.
São onze e meia da manhã e já está um calor quase insuportável. Fiz bem em vir cedo, penso para mim próprio. E para a próxima vou experimentar vir também durante a noite, várias pessoas me disseram que é a melhor altura, o ambiente está um pouco mais calmo, o ar mais fresco, menos húmido.
Mas eu quero o caos.
Vim bem cedo, aos primeiros raios de sol, porque queria assistir ao Thaipusam no auge das emoções, rodeado de quase dois milhões de cotoveladas e se-faz-favores, apertado entre telefones a filmar, crianças a chorar, famílias inteiras a gritar ‘Vel! Vel! Murugan!’, bandas a tocar música e um frenesim colorido e electrizante.
Levanto-me, pago a conta, saio para a rua - que calor!
Vejo um kavadi a ser transportado, algures no meio da multidão. Aproximo-me, tiro três ou quatro fotografias, é impossível não ficar impressionado com esta atmosfera, a devoção, os rituais. Das cores com que se vestem ao facto de raparem os cabelos, mais os anzóis espetados nas costas, e as setas na língua. Mas uma coisa de cada vez. À minha frente, e na fotografia que mais tarde hei-de descarregar no computador, está um homem com uma espécie de andor aos ombros (o kavadi), decorado com penas de pavão, grinaldas de flores, berloques e rococós vários... e, claro está, a imagem de um deus hindu.
Mas vamos lá contextualizar isto, que descrever não basta.
Chama-se Thaipusam, este festival celebrado em homenagem ao deus hindu da guerra, Lorde Murugan, filho de Shiva e Parvati. Conta a lenda que a mãe lhe ofereceu uma seta mágica chamada “Vel”, com a qual derrotou um demónio chamado Surapadman, salvando assim a Humanidade.
Por uma série de razões que posso abordar outro dia, num post próprio, a comunidade tâmil da Malásia é especialmente devota a este deus. Durante todo o ano, pedem-lhe ajuda em vários aspectos mundanos – e prometem realizar uma peregrinação às Batu Caves durante o Thaipusam.
Um bocadinho como os portugueses com Fátima – mas em vez de queimarem velas em forma de pernas e braços e cabeças, e de irem de joelhos até à capelinha (por acaso alguns até vão de joelhos, e também vi quem fosse a rebolar), aqui os peregrinos cumprem a procissão descalços, carregando em cima da cabeça ofertas (tigelas de leite, imagens do deus ou os tais kavadis, que podem ter até cem quilos!). E em vez de três voltas finais à capelinha, sobem os 272 coloridos degraus que dão acesso ao templo principal, que fica numa gruta de calcário.
Além disso, muitos dos peregrinos realizam actos de auto-mutilação, perfurando as bochechas ou a língua com pequenos espetos de prata, que simbolizam o “Vel”; ou espetando nas costas, braços e peito pequenos ganchos e anzóis, onde penduram frutas ou cordas; ou caminhando sobre sapatos de madeira com pregos espetados. Estes rituais destinam-se a derrotar os demónios internos do peregrino, tal como aconteceu com Lorde Murugan, merecendo assim a sua bênção. Até há pouco tempo, alguns sacrifícios eram muito extremos, mas começaram a ser desencorajados (e proibidos, em algum caso) pelos líderes da comunidade hindu da Malásia.
O Thaipusam é um dos festivais mais coloridos e frenéticos a que já assisti – e é visitado por quase dois milhões de pessoas, ao longo de três dias, entre peregrinos locais e curiosos, devotos de todo o mundo... e turistas que, como eu, estão ali entre o choque e o absoluto deslumbre.
QUANDO
O Thaipusam comemora-se na Lua Cheia do mês tâmil “Thai”, que normalmente calha em Janeiro ou Fevereiro. Em 2020, será no dia 8 de Fevereiro.
ONDE
Apesar da procissão ter início perto da Chinatown, no templo Mahamariamman (o mais antigo templo hindu da cidade), o epicentro da festa é nas Batu Caves, a 13km (norte) de Kuala Lumpur
COMO LÁ CHEGAR
Há quatro formas de lá chegar, durante o festival:
1) O Comboio KTM Komuter, a partir de KL Sentral ou de outra estação (consultar as linhas de comboio de Kuala Lumpur aqui). Teoricamente, o primeiro comboio é às 06:56, mas nesta altura é costume haver muitos serviços extra. Este ano, estava a funcionar 24h/dia. A viagem demora 40min e há comboios de 50 em 50 minutos. O bilhete de ida e volta custa RM9 (2 euros).
2) Há autocarros que partem da estação de LRT Pasar Seni (atrás do templo de Sri Mahamariamman, em Chinatown), estão bem sinalizados e um bilhete só de ida custa RM2 (menos de 50 cêntimos).
3) Existe uma aplicação no sudeste asiático chamada GRAB, que é a Uber lá do sítio. Aliás: comprou a Uber. É descarregar e o resto já se sabe.
4) Ou então, last but not least, a pé, com os peregrinos, desde Chinatown. Não é para todos... mas deve ser uma experiência única!