O processo de conquista e cedência (vulgo: guerra) de espaço
na estrada, aqui na Índia, é um exercício impróprio para pessoas facilmente
impressionáveis, e mesmo para pessoas dificilmente impressionáveis. É uma arte
que tem tanto de magia como de filme de terror, é um jogo de sorte e azar que
ao mesmo tempo tem fórmulas secretas, perícia e muito "jogo de
cintura".
Primeiro: porque é preciso conviver com elementos "naturais"
como buracos, crateras, lombas e barreiras de várias naturezas, árvores nas
bermas, muros e pedras, palcos de comícios políticos, obras, camiões avariados,
restos de acidentes do dia anterior, miúdos a ir para a escola, miúdos a vir da
escola, mulheres de saris coloridos à espera de outros autocarros, homens a
mijar na berma, filósofos a pensar no significado da vida, parados no meio da
estrada.
Depois: porque é necessário negociar com os
autocarros-camiões-riquexós-bicicletas-carros-triciclos-carroças-motas que
ultrapassamos, bem como com os autocarros-camiões-riquexós-bicicletas-carros-triciclos-carroças-motas
que nos ultrapassam, e os autocarros-camiões-riquexós-bicicletas-carros-triciclos-carroças-motas que se cruzam
connosco em sentido contrário, e os autocarros-camiões-riquexós-bicicletas-carros-triciclos-carroças-motas que ultrapassam os autocarros-camiões-riquexós-bicicletas-carros-triciclos-carroças-motas
no sentido contrário, e os autocarros-camiões-riquexós-bicicletas-carros-triciclos-carroças-motas que se
atravessam à nossa frente, da direita para a esquerda, da esquerda para a
direita, na perpendicular ou oblíquos, devagar e depressa, bem assinalados ou
vindos do nada. E há ainda os que vão depressa e de repente travam, e os que
vão devagar e de repente aceleram, e os que decidem dar a volta, os que se
desviam de alguma coisa, e as coisas que se desviam deles... são tantas as
possibilidades, as dimensões, os impensáveis e os tava-se-mesmo-a-ver.
Tudo ao som de um estridente buzina - não: mais do que
estridente. Estridente é elogio. Estas buzinas são como uma agulha a ser
espetada dentro do ouvido. Uma agulha fininha e comprida, a entrar lentamente
nos tímpanos. Uma buzina que ocupa o espaço todo à volta, e até o tempo todo à
volta, uma buzina capaz de incandescer. Nunca apitada menos de quatro ou cinco
segundos seguidos, às vezes tenho a sensação de que funciona como um escudo de
protecção, criando uma barreira invisivel à volta, uma bolha, porque a verdade
é que tudo se afasta à volta, trânsito e pessoas e o destino e outras
fatalidades, há uma inevitabilidade eternamente adiada. Até ao dia.
Isto para dizer que saí de manhã de Calcutá, com destino
marcado para Bishnupur - mas como não havia ligação directa, apanhei primeiro
um autocarro local para Arambag, a três horas de viagem, onde então teria de
mudar para outro, que em mais duas horas me levaria onde queria ir.
3 comentários:
completamente contagiante a tua "incandescência" sempre que chegas à Índia.
I totally get it.
:-)
Fizeste recordar e sonhar acordada com a nossa estadia na India em 2010. O trânsito caótico, os sons, a cor, o cheiro, o barulho, a confusão, o calor, a humidade ... tudo é India e eu adorei tudo :)
Uma das idiossincrasias da Índia...!
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