19/01/2014

NA ESTRADA

O processo de conquista e cedência (vulgo: guerra) de espaço na estrada, aqui na Índia, é um exercício impróprio para pessoas facilmente impressionáveis, e mesmo para pessoas dificilmente impressionáveis. É uma arte que tem tanto de magia como de filme de terror, é um jogo de sorte e azar que ao mesmo tempo tem fórmulas secretas, perícia e muito "jogo de cintura".

Primeiro: porque é preciso conviver com elementos "naturais" como buracos, crateras, lombas e barreiras de várias naturezas, árvores nas bermas, muros e pedras, palcos de comícios políticos, obras, camiões avariados, restos de acidentes do dia anterior, miúdos a ir para a escola, miúdos a vir da escola, mulheres de saris coloridos à espera de outros autocarros, homens a mijar na berma, filósofos a pensar no significado da vida, parados no meio da estrada.

Depois: porque é necessário negociar com os autocarros-camiões-riquexós-bicicletas-carros-triciclos-carroças-motas que ultrapassamos, bem como com os autocarros-camiões-riquexós-bicicletas-carros-triciclos-carroças-motas que nos ultrapassam, e os autocarros-camiões-riquexós-bicicletas-carros-triciclos-carroças-motas que se cruzam connosco em sentido contrário, e os autocarros-camiões-riquexós-bicicletas-carros-triciclos-carroças-motas que ultrapassam os autocarros-camiões-riquexós-bicicletas-carros-triciclos-carroças-motas no sentido contrário, e os autocarros-camiões-riquexós-bicicletas-carros-triciclos-carroças-motas que se atravessam à nossa frente, da direita para a esquerda, da esquerda para a direita, na perpendicular ou oblíquos, devagar e depressa, bem assinalados ou vindos do nada. E há ainda os que vão depressa e de repente travam, e os que vão devagar e de repente aceleram, e os que decidem dar a volta, os que se desviam de alguma coisa, e as coisas que se desviam deles... são tantas as possibilidades, as dimensões, os impensáveis e os tava-se-mesmo-a-ver.

Tudo ao som de um estridente buzina - não: mais do que estridente. Estridente é elogio. Estas buzinas são como uma agulha a ser espetada dentro do ouvido. Uma agulha fininha e comprida, a entrar lentamente nos tímpanos. Uma buzina que ocupa o espaço todo à volta, e até o tempo todo à volta, uma buzina capaz de incandescer. Nunca apitada menos de quatro ou cinco segundos seguidos, às vezes tenho a sensação de que funciona como um escudo de protecção, criando uma barreira invisivel à volta, uma bolha, porque a verdade é que tudo se afasta à volta, trânsito e pessoas e o destino e outras fatalidades, há uma inevitabilidade eternamente adiada. Até ao dia.

Isto para dizer que saí de manhã de Calcutá, com destino marcado para Bishnupur - mas como não havia ligação directa, apanhei primeiro um autocarro local para Arambag, a três horas de viagem, onde então teria de mudar para outro, que em mais duas horas me levaria onde queria ir.

3 comentários:

Vento no Cabelo disse...

completamente contagiante a tua "incandescência" sempre que chegas à Índia.

I totally get it.

:-)

LV disse...

Fizeste recordar e sonhar acordada com a nossa estadia na India em 2010. O trânsito caótico, os sons, a cor, o cheiro, o barulho, a confusão, o calor, a humidade ... tudo é India e eu adorei tudo :)

Clara Amorim disse...

Uma das idiossincrasias da Índia...!