06/01/2014

ENQUANTO ISSO, EM BANGKOK


Em Portugal: a esta hora, suponho que todas as atenções estejam viradas para o último adeus a Eusébio. Pelo que tenho lido na internet ao longo da tarde, este Dia de Reis tem sido especialmente emocional. E é assim que tem de ser.

Na Tailândia: apesar do desaparecimento do Pantera Negra ter feito notícia nos jornais, a verdade é que por aqui as letras gordas estão mais viradas para outros dramas. Resume-se numa só palavra. Uma palavra que está na boca de toda a gente, no centro das atenções, no âmago de todas as preocupações, ansiedades e expectativas:

Shutdown.

Sim: comprei uma t-shirt da Revolução. Vai dar um bom souvenir. Quem sabe, faz-se História na próxima semana.

Depois de uma rápida vista de olhos nos meios portugueses, constato que ainda ninguém deu a devida importância ao que se está a passar em Bangkok. Ou melhor: ao que está prestes a acontecer.

Vamos por partes, então.

Como é sabido, a Tailândia vive tempos de alguma incerteza. Depois de um golpe de estado em 2006 e do exílio do então primeiro-ministro, Taksin Shinawatra, o país mergulhou numa profunda crise política, marcada por uma forte tensão social, protestos e até alguma violência - as imagens do centro financeiro de Bangkok a arder, há apenas três anos, estão ainda muito vivas na memória de toda a gente, aqui.

Nessa altura eram os Camisas Vermelhas quem protestavam. Queriam Taksin de volta, marcharam nas ruas pacificamente, atiraram litros de sangue às fachadas de edifícios públicos, ocuparam zonas estratégicas do centro da cidade - até que o exército interviu e o resultado foi aquele que se sabe.

Eventualmente o poder trocou de mãos, diz quase toda a gente com quem falo que foi por meios menos limpos - já não é possível dizer quem é o bom da fita. Se o há. Agora mandam outra vez os Vermelhos e à frente têm a irmã mais nova de Taksin - dizem ser um fantoche do mano -, que depois de um período sem abordar o assunto, este ano decidiu lançar na agenda política um eventual perdão ao ex-primeiro-ministro, em nome de uma suposta "reconciliação nacional". Claro que estas movimentações foram interpretadas como um tapete vermelho para um eventual regresso de Taksin à política.

Indignado, o país saiu à rua.

Liderados por Suthep Thaugsuban, os "Amarelos" estão há mais de dois meses estacionados em redor do Monumento da Democracia, ao longo da Avenida Ratchadamnoen. Os protestos têm sido tão fortes e as posições tão bem marcadas que o Governo acabou mesmo por resignar. Foram marcadas eleições antecipadas para daqui a menos de um mês. Mas obviamente que mesmo este "passo atrás" do Governo é visto como uma manobra política.

Isto está uma confusão dos diabos, é o que é.

Por um lado: o Governo diz que cedeu e que as eleições vão legitimar quem sair vencedor. Claro que num tão curto espaço de tempo há poucas oportunidades de debater ideias, nem que seja porque o maior partido da oposição já declarou que vai boicotar o acto eleitoral. Aliás: há qualquer coisa de sinistro na campanha que arrancou esta semana. Só há cartazes de um partido, o Pheu Thai, o tal que está neste momento no poder. Mais ninguém está a fazer campanha. Que democracia, esta.

Por outro lado: a ideia generalizada é que o senhor Suthep deixou o sucesso subir-lhe à cabeça. Apesar de ter colocado no topo da agenda o debate sobre a urgente reforma do sistema político na Tailândia, a verdade é que os analistas consideram que, com o plano de "desligar Bangkok", o líder da oposição está a ir longe demais.

Mas o que é o shutdown, afinal?

O plano é o seguinte: no próximo dia 13 de Janeiro, o aparato montado à volta do Monumento da Democracia vai finalmente ser abandonado - e a multidão de activistas vai separar-se em grupos e ocupar vinte pontos estratégicos da cidade, isolando assim o centro da cidade. Bloqueando a circulação de pessoas, bens e serviços. O objectivo: "desligar Bangkok". E ai de quem tente furar.

Diz a maior parte dos analistas que o senhor Suthep perdeu o "foco". No fundo, o movimento já conseguiu aquilo que exigia no início da campanha, em Novembro. O Governo foi abaixo. A insistência numa reforma política antes de haver quaisquer eleições parece a todos uma exigência demasiado radical. Eu até percebo a urgência, tendo em conta a má vontade do "outro lado". No entanto, parece-me quase unânime, em quase tudo o que tenho lido, que este seria o momento certo para parar, recuperar forças e passar ao próximo passo: negociações. Começar com a tal reforma política, definir prazos e estratégias. Nem que seja para recuperar a razão.

Mas a verdade é que não há boa vontade, nem de um lado nem do outro. Parece-me que andam a brincar ao gato e ao rato. A sério que é isso que me parece. Este "shutdown" é um passo perigoso, claramente arriscado, que afecta o cidadão comum, a imagem do país e pode descambar facilmente em violência. Suthep ameaçou de represálias todos aqueles que tentem furar os bloqueios. Fala em revolta popular. O tom do discurso está a mudar, portanto. O Governo diz que o senhor está a incitar à violência e que representa uma ameaça à estabilidade social, e foram accionados meios judiciais para confirmar se há bases legais para o acusar. Nas redes sociais surgem acusações baseadas em fotografias... "photoshopadas". Vai aqui uma salganhada das graves.

Entretanto começam a surgir movimentos que pedem o regresso à "normalidade". É a grande maioria silenciosa que agora levanta a voz. São as pessoas sem cor política, fartas deste teimoso e infantil impasse. Reconhecem a necessidade de mudança, pedem o fim da corrupção mas não aceitam este jogo de poder e contra-poder, de informação e contra-informação. Querem, como disse o Rei no seu discurso de Ano Novo, "normalidade e felicidade".

"Out with the outdated Thai regime", diz este artigo de opinião que ilustra bem o descontentamento com o que se está a passar na Tailândia.

O Governo admitiu a possibilidade de declarar o Estado de Emergência, medida que foi vista por muitos como uma manobra de marketing para extremar posições. A verdade é que se o Estado de Emergência fosse declarado, tal implicaria a actuação do exército na próxima semana. As Forças Armadas e alguns constitucionalistas, no entanto, descartaram tal possibilidade, pelo menos por agora. Não passou de um susto.

Mas a política faz-se de tantas teorias, que começou a falar-se de um possível Golpe de Estado - e daí a recusa das Forças Armadas em pactuar com o Governo. Mais uma vez, parece-me que o objectivo aqui é causar mais agitação. Nunca se sabe, claro, mas o facto do Exército estar neste momento a dar formação e apoio logístico à Polícia, para prepararem o próximo dia 13, dá a sensação de que há uma atitude responsável de quem manda aqui. Pelo menos por enquanto. A partir de dia 13, dependendo de como as coisas evoluirem, tudo pode acontecer.

Na minha muito modesta opinião, a de quem conhece apenas a ponta do iceberg, o senhor Taksin devia sair de cena. E o outro também. Pelo bem do país. Não interessa quem é o bom e quem é o mau aqui. Quem tem razão, quem não tem, se foi ou poderia vir ser um bom primeiro-ministro. O facto é que toda esta confusão se deve a Taksin, originalmente. E depois: aos que o apoiam, e aos que o perseguem. A sua presença, as suas acções e as reacções de Suthep e companhia estão a criar uma ferida horrível na sociedade tailandesa. Já ouvi muita gente a dizer que só segue Suthep porque é anti-Taksin. Aliás: o sucesso destas últimas demonstrações têm deixado bem claro que ele não é bem-vindo à Tailândia. Muito provavelmente, nunca mais voltará ao país. Porque é que não se retira, então? Enfim, lá está: quem sou eu além de um curioso.

Um curioso mais ou menos encravado, neste momento.

Estou sem passaporte, que entreguei numa agência para pedir o visto da Índia. Supostamente tenho-o de volta no dia 15 à tarde. Espero que não se atrasem. Na mesma noite tenho voo marcado para Calcutá. A ver vamos.

E o meu visto da Tailândia expira a 16.

Ou seja: por agora não me posso ausentar do país, porque não tenho passaporte. E por muito que me apeteça, também não me quero afastar muito de Bangkok, porque sabe-se lá o que vai acontecer e não calhava nada bem, ficar isolado do lado de fora da cidade. Estou a ver onde posso ir por dois ou três dias, algures aqui perto. Apetecia-me praia, queria descansar um pouco, mas não sei se vai dar. Quero estar de volta a Bangkok antes do dia 13, não posso arriscar ficar do lado de fora.

1 comentário:

Clara Amorim disse...

Grande crónica jornalística...!