09/04/2020

VARANASI, SÉC. XIX

A propósito da frase de Mark Twain que mencionei no post de ontem, e que considero perfeitamente actual, resolvi fazer uma pesquisa no google e seleccionar algumas fotos antigas de Varanasi.

Assim, e sem muito mais conversa, deixo-te quinze fotos tiradas em Varanasi há mais de cem anos. Fora duas ou três que são do início do séc. XX, todas as outras foram tiradas ao longo da segunda metade do séc. XIX.

Deixa-me que te diga: fora a quantidade de plástico e o inevitável telemóvel, não há assim tantas diferenças entre essa Varanasi e aquela que eu conheço:














08/04/2020

[VM80] VARANASI

VOLTA AO MUNDO EM 80 VOLTAS

#01


Senhoras e senhores, apertem os cintos de segurança e segurem-se bem aos vossos lugares, porque esta Volta ao Mundo começa num lugar mirabolante, mais intenso que uma montanha russa, mais incrível que um número de acrobacia e malabarismo do Cirque du Soleil. Este lugar desafia todas as noções, ideias e conceitos. Este lugar não deixa ninguém indiferente.

Chama-se Varanasi mas já foi Kashi, Banaras e Benares - e, diz-quem-sabe, foi fundada por Shiva (o próprio!). É também o berço do Budismo, pois foi nesta zona que o Buda deu o seu primeiro sermão. Os hindus têm-na como a primeira de sete cidades sagradas na Índia (Sapta Puri), e acreditam que ao banharem-se aqui, nas águas do Ganges, se pode atingir o Moksha - a libertação do ciclo de morte e reencarnação.









Por conta de vários achados arqueológicos feitos na cidade e arredores, é historicamente aceite que Varanasi existe como aglomerado urbano há quase quatro mil anos. Durante o tempo em que aqui viveu Gautama, há quase dois mil e seiscentos anos, a cidade era conhecida por Kashi e há vários relatos a descrever aquilo que parece ser um importante centro industrial, religioso e artístico.

Na Idade Média, já com o nome de Benares, a cidade confirmou a sua importância ao ser elevada a segunda capital do Império Pala, que era budista e teve o seu auge nos séculos IX e X.

Mas os Impérios caem quando outros erguem-se, e os reis passam-ao-outro-e-não-ao-mesmo. Já Varanasi, essa resistiu sempre, independentemente de quem se sentava no trono ou para que lado rezavam, mantendo a sua reputação enquanto lugar de cultura, espiritualidade e pensamento. Ao ponto de, no séc. XVI, o Imperador Akbar (que era muçulmano), ter investido na construção de dois grandes templos dedicados a Vishnu e Shiva. Curioso, não? Foi também durante o Império Mugal que o Reino de Benares foi constituído. Varanasi ganhou uma importância tal, nos séculos seguintes, que vários marajás de outras paragens construíram aqui palácios e templos, à beira do Ganges, esse rio sagrado que sempre foi (e ainda é) o tesouro principal da cidade.



















Os primeiros turistas chegaram no séc. XVII e deixaram relatos que hoje nos ajudam a perceber ainda melhor a cidade. Um dos mais icónicos foi aquele que Mark Twain escreveu, em 1897, e que a dada altura diz: "Benares é mais velha que a História, mais velha que a Tradição, mais velha que as Lendas, e parece duas vezes mais velha que tudo isto junto".

Esta descrição ainda é válida, hoje - e eu pude constatá-lo, pela primeira vez, durante a minha primeira viagem à Índia, em 2003. Foi uma passagem rápida, de apenas dois dias, e confesso que vinha meio contrariado, pois nem sabia o que era Varanasi, além de uma breve descrição que lera num guia, e que insistia no cognome de "Cidade da Morte".

Surpresa a minha, portanto, quando descobri que a Cidade da Morte afinal era a Cidade da Luz, e que este era, acima de tudo, um lugar de celebração da Vida. Impressionante: ao fim de dois dias, quando nos fomos embora, saímos a fazer juras de amor eterno a este lugar, prometemos voltar, sentíamo-nos esmagados pela experiência. Depois fui assaltado, na viagem de comboio para Jaipur - mas essa história podes ler no meu livro "O Marajá faz anos", que não-é-para-aqui-chamada.






Varanasi estende-se ao longo de uma das margens do Ganges, entre dois pequenos rios: Varun e Assi. Daí o nome, portanto. Entre os imponentes palácios, os templos e o rio, há degraus onde os peregrinos e fiéis vêm tomar banho - chamam-se ghats. E há oitenta e tal ghats, ao todo, em Varanasi. A maior parte só para abluções, mas alguns para cremações. E a actividade que decorre aqui, do nascer ao pôr-do-sol, e mesmo à noite, é incrível. É a tal celebração da Vida.

Voltei em 2007 a Varanasi, mas novamente por dois dias. E só em 2019, quando fui para a Índia escrever o segundo volume da minha trilogia indiana, é que finalmente tive a disponibilidade que a cidade merecia. Fiquei aqui uma semana, só a caminhar e a familiarizar-me com os recantos e as rotinas, a escrever-escrever-escrever (o livro começa com Varanasi), e isto enquanto decorria o Khumb Mela em Allahabad, não muito longe dali. Ou seja: a cidade estava ao rubro, cheia de saddhus (homens santos) e peregrinos.

















Varanasi é espiritualidade. A cidade transpira misticismo e filosofia ao virar de cada esquina, atrás de cada porta, por baixo de cada árvore. Nos postes colados nas paredes, nas poças de lama no chão, no cheiro a incenso e a merda, nos sons de búzios a ser soprados em templos, mais os sininhos que alguém chocalha quando faz uma oração. Na música de Bollywood a tocar num rádio. Nas bostas de vaca ao longo do labirinto de ruelas. Nos pregões dos vendedores ambulantes. Na agitação dos fiéis junto ao Ganges, enquanto lavam os seus pecados nas águas sagradas do rio. No crepitar dos mortos a ser cremados à vista, mais o cheiro inconfundível da carne humana a arder. Nos clicks das máquinas fotográficas dos turistas. Hello, my friend, you first time in India?

A cidade tem alguns monumentos, e podia até dizer que determinado templo é mais importante que os outros - mas Varanasi é daqueles sítios que vale pelo todo. Visitá-la não implica saltitar de um lugar para o outro, cumprindo uma lista de must sees. Para realmente experienciar Varanasi, tens de te perder no emaranhado de ruas e becos que parecem medievais, caminhar junto ao rio e apreciar os rituais, as manias, as superstições e até as contradições da cidade. É obrigatório assistir a pelo menos um Ganga Aarti, a cerimónia dedicada ao Ganges que se realiza todas as noites, em vários ghats.

Varanasi é um lugar que desafia tudo, a começar pelas próprias noções de Espaço e Tempo.

E é mais do que obrigatória nesta minha Volta ao Mundo pelos lugares que já visitei: merece, sem qualquer dúvida ou hesitação, a honra de ser a primeira.












Se quiseres viajar mais um pouco por esta cidade e conhecer as cores, cheiros e emoções da Índia, entra em contacto comigo e encomenda já um dos meus livros sobre o país:

De Vespa na Índia
O Marajá faz anos

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