Ok. Temos o Polícia Bom. Felizmente
é o que fala inglês. Mas o outro não desiste. O Polícia Mau já nos obrigou a apagar
fotografias da câmara (felizmente não tínhamos nada das fábricas, mas mesmo
assim tivemos de apagar duas ou três), copiou os dados do passaporte e do visto
indiano. Já nos tiraram fotografias. Estamos aqui há vinte minutos e não
aconteceu nada. Não nos deixam ir embora.
PARTE 2:
QUEM ESPERA...
"Eu entendo, mas está um calor
infernal e nós estamos na estrada desde as seis da manhã. Estamos cansados,
sujos, com fome e com sede. Só queremos chegar ao nosso hotel e tomar um
duche."
Oferecem-nos cadeiras para nos
sentarmos à sombra, copos de água. A senhora agente até nos ofereceu
fruta-caju. Não nos podemos queixar de estar a ser maltratados. Mas este é o
último lugar onde nos apetece passar a tarde.
"E onde é que está o superior
que chamaram?"
Tentamos manter a calma, stressar
não vai ajudar nada. Mas de vez em quando convém mostrar alguma firmeza.
"Cinco minutos."
Olhamos para o relógio. Passou meia
hora.
"Cinco minutos? Disseste cinco
minutos há quinze."
"Está a caminho."
Entretanto explicamos a situação
dos outros que nos chamaram, e que nós pensámos serem só mais uns a querer chatear.
Pedimos ao polícia para lhes ligar, para confirmar a história. E pensando bem no assunto... porque não vieram atrás de nós,
se este lugar é de segurança tão apertada? Isto é uma grave falha da segurança. Nós não passamos de vítimas de uma falha de segurança!
Calma, Jorge. Não interessa nada ir por
aí. Temos de nos manter serenos e resolver isto da melhor forma. O calor aperta,
estão quarenta e cinco graus e isso não ajuda a manter o raciocínio
"limpo". Calma.
Passou uma hora.
Passaram mais dez minutos.
Já explicámos que temos uns trinta quilómetros pela frente, que passa das quatro da tarde e daqui a uma hora começa a escurecer. Somos apenas turistas que foram parar ao lugar errado. Só queremos ir para o hotel. Ainda ponho a hipótese de dizer que tenho as luzes avariadas, mas a) ainda me pedem para confirmar e depois é pior, constatar que funcionam; e b) ainda invoco um mau karma qualquer e depois as luzes avariam mesmo. Não disse nada.
Passaram mais dez minutos.
Já explicámos que temos uns trinta quilómetros pela frente, que passa das quatro da tarde e daqui a uma hora começa a escurecer. Somos apenas turistas que foram parar ao lugar errado. Só queremos ir para o hotel. Ainda ponho a hipótese de dizer que tenho as luzes avariadas, mas a) ainda me pedem para confirmar e depois é pior, constatar que funcionam; e b) ainda invoco um mau karma qualquer e depois as luzes avariam mesmo. Não disse nada.
Uma hora e um quarto, uma hora e
vinte. Foi o tempo que ficámos neste posto de controlo. Até que apareceu um
jipe e uma mota. Parecia um filme. A porta abriu-se à nossa frente e saiu um
cinquentão de barriga grande, todo vestido de branco, óculos escuros e bigode.
À Bollywood. Ou melhor: à Tollywood, que é o Bollywood do sul da Índia.
Estende-nos a mão e
cumprimentamo-lo.
"Então contem lá o que vem a ser
isto."
Como é que se explica a um gajo
destes o facto de estarmos a viajar pela Índia... por uma estrada de terra
batida, por atalhos que não fazem sentido (pelo menos aos olhos dos indianos).
"Mas porque não foram pela
autoestrada? Não percebo o que estão a fazer aqui, sinceramente."
"Não gostamos dos camiões.
Fugimos muitas vezes às estradas grandes para irmos com mais calma, mais
relaxados, e às vezes o GPS manda-nos por caminhos... hmmm... mais
alternativos."
Voltamos a contar a história dos
gajos que nos chamaram, voluntariamo-nos para tirar as mochilas das motas e
abrir tudo à frente deles. Somos só uns turistas, aparentemente um bocado
tontos, mas é só isso que somos. Adventurists, é a palavra que os ouvimos dizer
várias vezes, entre outras que não fazemos ideia do que signifcam. Sim, é isso
mesmo: somos adventurists.
"Sigam-me, se faz favor",
diz sem expressão no final de cinco minutos de conversa.
"Mas vamos onde?",
pergunto com calma, mas firme.
"O gabinete do comissário da
polícia fica mais à frente. Precisamos de confirmar os vossos vistos."
Ok: por um lado, temos aqui um
desenvolvimento. Implica que vamos passar para o lado de fora da zona do
"crime". Mas fugir não é uma opção. Temos de resolver isto Bem
Resolvido. Por outro lado, isto de cinfirmar vistos, etc. Temos tudo em ordem,
mas não convinha nada termos os meios oficiais a registar que somos suspeitos
de espionagem industrial. Ou terrorismo.
Enfim: não temos outra opção. Vamos atrás deles. Mas não sem alguma emoção extra pelo caminho. A meio de uma recta, rodeados por pântanos e lixo e alguns arbustos mortos, a vespa do Luís foi abaixo. Sem explicação.
"Se calhar entrou na
reserva!", grito do sítio onde parei. Cem metros à frente do Luís, cem
metros atrás do jipe e da mota, que começa a dar meia volta.
"O que se passa?",
pergunta-me o polícia.
"Não sei... se calhar é a
gasolina."
A mota pega e arrancamos novamente.
Mas apenas por duzentos metros. Volta a parar. Os polícias estão visivelmente
nervosos. O que não é de estranhar. Isto tem todo o ar de sermos nós a ganhar
tempo. Alguma coisa não está bem aqui, devem pensar eles. E nós também já
ansiosos, sem saber o que fazer.
"Não é a gasolina,
Jorge!", diz-me o Luís.
"Mas experimenta... eu também
estou quase a entrar na reserva."
E o polícia ao meu lado:
"Ele que deixe a mota aí. Vem
contigo, ou vem a três connosco. Vamos embora!"
E de repente a mota pegou outra
vez. Era mesmo da gasolina. Que susto. O Luís a rir e eu a rir, e os polícias
com cara de desconfiados. Avançámos então para o centro deste mundo triste.
Passámos por nova cancela, desta vez sem problema porque vínhamos escoltados, e
se antes víamos muitos camiões, agora era um exagero. Que corropio. A estrada
toda suja de pó preto e lama preta, nos separadores praticamente já nem se distinguem
as riscas amarelas. Fábricas por todo o lado, gente suja com olhar triste. Nós
somos o único apontamento de cor neste lugar. Nós - e a casinha onde fomos ter.
Uma vivenda verde com um pequeno parque de estacionamento à frente, onde
parámos as motas sempre sob o olhar frio e atento de dois polícias. Qualquer
movimento, qualquer coisa que de repente caía ao chão. Que nervos.
O jipe entretanto desaparecera.
"Ainda acabamos a jantar com
eles, vais ver", disse-me o Luís antes de sermos escoltados para dentro de
casa.
Eu percebi o que ele queria dizer.
Além de toda a rigidez com a segurança, havia aqui o omnipresente factor
indiano da "curiosidade". Algum deslumbre, diria. Tínhamos os olhos todos em
nós, na forma como reagíamos, naquilo que representamos de ameaça mas também de
sonho, de algo extraordinário. Os indianos ficam sempre muito surpreendidos com
a nossa viagem. Por ser em vespas em vez de motões; por estarmos a fazer uma
rota completamente fora do circuito clássico; porque vamos um bocado sem
destino; e porque optamos muitas vezes pelas estradas pequenas, em vez de ir
directos pelas "autoestradas".
Abre-se a porta e recebemos no
rosto a deliciosa sensação de um ar condicionado. Já valeu a pena vir aqui.
"Sentem-se", diz o
quarentão por detrás da secretária. Tem um tique que o faz piscar o olho
direito cada vez que começa uma frase nova.
"Querem um chai?"
OK: pode ser que isto afinal seja
mais soft do que estávamos à espera.
Ou não.
Preciso
de mais uma pausa... este calor entranha-se até entre os dedos. Apesar de estar
neste momento num quarto com o ar condicionado. Enfim: já continuo com o
relato.
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