21/05/2015

A REVIRAVOLTA DA REVIRAVOLTA

O dia de ontem é a prova-provada que esta viagem vive do Momento, da Sorte e dos Humores - os nossos e os das motas.

Estamos neste momento em Chittoor, uma terrinha no estado do Andhra Pradesh. Mas era suposto termos ficado em Vellore, uma cidade no Tamil Nadu. E, quando arrancámos de Gingee, ainda de manhãzinha, o objectivo era chegar à capital: Chennai.

Vamos a matemáticas e geografias:

Chennai fica a cerca de 150km a nordeste de Gingee.
Vellore, cento e pouco a noroeste.
Chittoor, a pouco mais de quarenta de Vellore, mas para norte.

Ou seja: que reviravoltas foram estas, as de ontem?

Para contextualizar o cenário, recuemos primeiro até à manhã em que arrancámos de Auroville. Que deve ter sido há dois ou três dias, apesar de termos a sensação que aconteceu há uma vida atrás.

Reféns dos capacetes que estavam guardados em Pondicherry, acabámos por passar uma noite em Auroville, na cabana simpática que vos mostrei há dois ou três posts. Aproveitámos o tempo livre para kitar um bocadinho as vespas - e, na manhã seguinte, preparámo-nos para finalmente arrancar. Estávamos "sedentos" de estrada, "esfomeados" por quilómetros. Queríamos viagem. Depois de dez dias em Bombaim, só apetecia era estrada. Mas a meio caminho entre a cabana e a casa onde estavam guardados os capacetes, a vespa do Luís começou a dar problemas. Parecia estar a afogar-se, cada vez que ele acelerava ela ia-se abaixo, e fazia mais fumo do que era costume. Passámos na oficina, "isto não é normal, esteve mais de uma semana a ser arranjada e não é suposto dar problemas destes agora."

Resumindo: só duas ou três horas depois é que finalmente deixámos Pondicherry para trás. Já com os capacetes postos, o pequeno-almoço tomado - e, teoricamente, com a mota a funcionar como deve ser.

Foram oitenta-e-tal quilómetros de viagem, nesse dia. Um regresso à estrada que nos deixou um sorriso enorme na cara - e um escaldão nos braços e no pescoço. Filmámos com a gopro, fizemos algumas fotos, mas acima de tudo foi um prazer enorme estar outra vez em cima das motas, com a Índia a rolar por baixo, a paisagem e os sons e os cheiros à nossa volta.

E, no entanto, os últimos dez quilómetros do dia mudaram o estado das coisas. A estrada estava péssima (tantos buracos, e poças de lama, e carros em todas as direcções)... e a vespa do Luís começou a engasgar-se outra vez. Quando chegámos a Gingee instalámo-nos num pequeno hotel junto à estrada e fomos imediatamente a uma oficina, para perceber o que realmente se passa com a mota - e eis que o veredicto era o menos animador possível:

"O motor está a agarrar. Não podemos fazer nada aqui. A peça que vocês precisam só existe em Pondicherry. Têm de voltar para trás. Se quiserem nós tratamos disso, mas são três dias no mínimo. Ou então ponham o dobro do óleo quando encherem o depósito e ainda dá para levarem a mota para Pondicherry."

Ao que parece, andamos a pôr pouco óleo na mistura com a gasolina.

Culpa minha, que devo ter interpretado mal a explicação que me deram ao início. Ou então foi realmente mal dada. Não posso garantir. Mas quando devíamos pôr 50ml de óleo por cada litro de gasolina, temos estado a pôr 20ml. E a vespa do Luís acusou isso mesmo, agora.

Enfim: era imperativo repensar a viagem. Ou, pelo menos, o ritmo da viagem.


Acabámos por ficar mais um dia em Gingee - por um lado, meio à nora sem sabermos o que fazer; por outro, porque depois de uma manhã toda a subir fortes e castelos, a visitar ruínas e a destilar litros e litros de suor, chegámos a meio da tarde tão cansados que não havia energias para ir para lado nenhum.

O objectivo inicial era irmos para Tiruvannamalai, quarenta quilómetros a oeste. Tínhamos enchido o depósito com o dobro do óleo necessário. O mecânico garantira-nos que isso era suficiente para voltar para Pondicherry. E nós pensámos: se dá para isso, dá para avançar de vagar, e depois logo se vê se a mota recupera ritmo ou se precisa mesmo de ir "à faca".

Enfim: o plano inicial era seguirmos para Tiruvannamalai, quarenta quilómetros a oeste. Mas como acabámos por ficar em Gingee mais uma noite, mudámos os planos e na reviravolta apontámos a agulha para Vellore, cento e pouco quilómetros a noroeste. Com o óleo reforçado, a mota ia ao lugar - pensámos.

Mas na manhã seguinte - ontem - a mota do Luís parecia estar igual, ou pior - e não tivemos hipóteses senão alterar os planos novamente. E se, como disse o mecânico, com o óleo reforçado dá para ir para Pondicherry, então vamos para Chennai, sempre é mais para Norte e avançamos um pouco. Além de que tínhamos perdido a confiança dos mecânicos de Pondy. Quer dizer: mais de uma semana com as motas e não deram por nada? Incrível.

Vamos para Chennai, então.

"Saquei" uns contactos na net, assim era só chegar lá e ir directos às melhores oficinas. Arrancámos de manhã cedo, foi provavelmente o dia em que saímos mais cedo. Pensámos na rota de maneira a viajarmos em estradas mais secundárias, com pouco trânsito, era mais do que suficiente aquele que iríamos encontrar à chegada a Cheennai. O dia estava ainda fresco, mas prometia muito calor. E os espíritos, apesar das contrariedades, estavam animados. As voltas que a viagem dá - são só voltas. Havemos sempre de tirar o melhor partido da aventura, seja por onde for, seja como for. E se temos de ir para Chennai... vamos para Chennai.

Tínhamos avançado uns trinta ou quarenta quilómetros - cerca de uma hora, pois íamos a poupar o motor - quando o Luís começou a fazer-me sinal para parar.

Imaginei logo o pior.

E. no entanto, a expressão dele apontava para o contrário. Ria como uma criança a quem foi oferecido um brinquedo novo.

"Estás a ouvir?"

Eu sorria, mais por solidariedade que outra coisa, porque não estava a perceber nada.

"Não vês, Jorge? Olha!"

E eu olhava. Mas não entendia.

"A mota! A Freen não se vai abaixo!"

Ah: a vespa do Luís tem nome. Chama-se Freen. Free + Green. Eu ainda não dei nome à minha, eu sei que é uma falha enorme mas... enfim. Hei-de dar. A seu tempo, hei-de dar-lhe um nome também.

Anyway: a mota não se ia abaixo. Parecia... solta?

"Epá, a mota descolou. Eu até senti. Vinha a guiar e ela sempre com aquela sensação de estar constipada, e de repente senti-a a soltar-se. Está arranjada!"

A sério?, pensei.

"Estas vespas são um espectáculo! Dá-lhes um remédio e elas curam-se, não precisam de ir ao médico."

Parecia estranho - mas a verdade é que a mota estava, aparentemente, a funcionar bem. E agora?, pensei. Fazemos o quê?

"Esquece Chennai, vamos para Vellore. Eu sei que já nos desviámos um bocado da rota, mas apanhamos a próxima terrinha e se até lá estiver tudo bem, viramos outra vez para oeste."

Yes, sir! Se ele tem confiança na mota, quem sou eu para insistir.

Assim aconteceu mais uma reviravolta - e que reviravolta! De repente já não estávamos a caminho da urbaníssima, suja e caótica Chennai, mas de uma terra chamada Vellore, sobre a qual pouco sabíamos além de que era muito famosa pelos seus hospitais, e que tinha um forte enorme rodeado de um canal sereno.

Seguimos mais uns vinte quilómetros até à próxima vila, só para ter a certeza que a mota estava boa. Confirmou-se: impecável. Vamos lá então!

Que manhã boa! As duas vespas a rolar no alcatrão, o calor a apertar mas nada de dramático, pelo menos enquanto estávamos em andamento. Estradas rurais em bom estado e em mau estado, aldeias e vilas, cidades até. Fomos parar a uma estrada nacional, com mais trânsito mas nada de outro mundo. E na recta final acabámos numa autoestrada de três faixas para cada lado. Quando chegámos a Vellore tínhamos cento e trinta quilómetros feitos, ao todo. Nada mau. E era ainda hora de almoço.

Calor. Fome. Sede. A gasolina estava na reserva. Precisávamos de ir a um ATM.

Pouco passava do meio-dia e o calor era insuportável: trinta e oito graus com sessenta por cento de humidade. Começámos à procura de um poiso, parecia haver muita oferta... mas entre hotéis cheios, outros que não recebiam estrangeiros, alguns que tinham quartos mas eram miseráveis... o tempo foi passando e o desconforto aumentando. Apesar de mais ou menos desesperados, não conseguíamos encontrar nada de jeito. Eu já ficava enjoado só de ver as manchas nos lençóis, só de pensar que a maioria dos hóspedes nesta cidade são doentes que vêm para ser tratados nos hospitais de Vellore. A cidade estava um forno. Os hotéis nojentos. Tanta gente. Muitos doentes, muitos acidentados, muitas caras tristes. Nas recepções dos hostéis, era quase sempre recebido com má cara, trombas e palavras pouco simpáticas. Eu próprio comecei a ceder. O Luís, que hoje ficava a guardar as motas enquanto eu ia ver os quartos, lá se aguentava emocionalmente - mas o calor estava a deixá-lo estafado.

Decidimos comer qualquer coisa - e depois logo se veria. Sentámo-nos numa espécie de garagem imunda e pedimos um biryani. Que bem que nos soube. A galinha estava tenra e saborosa, o arroz nada de especial mas o molho era bom. Quando saímos, as energias estavam novamente "em cima". O termómetro marcava quarenta e dois, feels like quarenta e oito.

Quarenta e oito!?

Não: aqui é que não ficamos. Vamos embora. Esta terra tem uma energia feia. Há qualquer coisa de pesado aqui, qualquer coisa de negativo, não sei se é dos hospitais ou do calor ou se é só o cansaço, sensação nossa. Não interessa: vamos embora. Avançamos mais um pouco e dormimos na próxima terrinha.

Arrancámos. Enchemos os depósitos e seguimos para Norte. Atravessámos a ponte e começámos à procura de algum sinal a dizer "lodge" ou  "guesthouse", mas o mapa mostrava que o Andhra Pradesh estava já tão perto... e...

"Olha lá, Luís... e se avançássemos mais um pouco e passássemos para outro estado?"

"Por mim óptimo, acho que o Tamil Nadu já nos deu o que tinha a dar. E ainda não é tarde, temos tempo para rolar mais um bocado, a minha mota está boa... 'bora!"

Atravessámos a fronteira de um estado para o outro, com direito a paragem para xixi e fotos. E só parámos em Chittoor, uma terrinha pequena e bem mais calma, onde encontrámos um quarto simpático - o mesmo de onde escrevo agora. A noite correu sem precalços, estávamos estafados depois de quase cento e oitenta quilómetros na estrada, caímos redondos na cama, a seguir ao jantar.

E agora ala que se faz tarde, hoje a etapa é mais curta mas o calor aperta e quanto mais depressa partirmos, melhor.

Fui! Ou melhor: fomos!


1 comentário:

Clara Amorim disse...

Que tantas peripécias...! Isso é que é aventura! :)