Como descrever o ambiente à minha volta?
Estamos numa espécie de pavilhão, um gigante banho turco,
todo em pedra com torneiras à volta da sala, iluminado artificialmente com grandes
neons brancos. Ouve-se o som da água a correr, o burburinho de pessoas a falar,
o raspar das lâminas no couro cabeludo. Uma criança ou outra a chorar. Há algo
de triste nisto - mas não posso afirmar que as pessoas estejam, em geral, tristes.
Talvez seja do silêncio. Tanta gente no mesmo espaço, em qualquer lugar mas
especialmente na Índia, implica mais barulho. Mas o lugar está especialmente
calmo. Há qualquer coisa de solene, talvez seja isso. Apesar
das pessoas estarem muito descontraídas.
Muito provavelmente, as referências culturais e
históricas que carregamos, enquanto cidadão ocidentais, ajudam a esta confusão
na "leitura" deste lugar. Logo à entrada, tivemos de serpentear por uma espécie de
ziguezague - como nas filas para o aeroporto, mas em vez de baias a separar as
filas havia gradeamentos de ferro até ao tecto. Isto tem qualquer coisa de
matadouro. Isto tem, desculpem-me a comparação, qualquer coisa de campo de
concentração. As pessoas em fila. As grades para controlar a multidão. O
silêncio. Os cabelos rapados. Há aqui um peso, um aperto no coração, que só
consigo explicar com as tais referências ocidentais. Parece-me uma prisão.
E daí talvez se explique que os indianos pareçam
descontraídos, ao mesmo tempo. Para eles, a única referência
histórica é religiosa. Isto é apenas um ritual, fazem-no tanto por devoção religiosa como por
pressão social e/ou constragimentos familiares. Fazem-no porque sim; porque "faz parte". Teoricamente, um hindu deve rapar e doar aos deuses o seu cabelo pelo menos uma vez na vida.
Mas o que estamos a fazer aqui, afinal?
Os dois de tronco
nu, com um sabonete numa mão e uma lâmina na outra. Os pés descalços no chão
frio e molhado, fios de cabelo alheio enrolados nos dedos. Olhamos um para o
outro e sorrimos, meio tímidos, a pensar "que estupidez esta", mas ao
mesmo tempo nenhum tem coragem de dizer "vamos mas é embora daqui",
apesar de ambos sabermos que o outro viria sem protestar.
Daqui a nada vamos rapar cabelo e barba, vamos ficar
iguais a monges budistas e skinheads neo-nazis... iguais aos peregrinos de Tirumala.
Recuemos um bocadinho no tempo, para perceber como viemos
aqui parar.
Sabíamos quase-nada acerca de Tirupati e Tirumala. Lemos
qualquer coisa acerca de ser um dos lugares mais sagrados da Índia, visitado
anualmente por milhões de peregrinos. Dizem que ultrapassa Roma, Jerusalém e
Meca - com uma média diária de quarenta mil visitantes, mais um staff de doze mil pessoas. Incrível. Sabíamos
também que muita gente oferecia o seu cabelo a Sri Venkateshwara, como uma
espécie de sacrifício. Lemos acerca dos barbeiros - e, como é natural,
queríamos assistir ao ritual. E, quem sabe, documentá-lo.
Ficámos hospedados em Tirupati, a cidade que dá apoio
logístico a Tirumala; e depois de fazermos de mota a estrada de quinze
quilómetros que sobe a montanha, surpreendemo-nos com a dimensão e a
organização do lugar. Dezenas de parques de estacionamento, sinalética a
informar os peregrinos, tudo muito limpo... e, claro, milhares e milhares de
pessoas por todo o lado.
Muitos tinham os cabelos rapados - homens, mulheres e
crianças.
Curiosamente, apesar das multidões, o lugar era
relativamente calmo. Uma espécie de vila no topo da montanha, equipada com toda
a logística e estrutura necessárias à gestão de tanta gente.
Estacionámos as vespas e fomos à procura do templo
principal. Sabíamos que ia ser complicado visitá-lo, porque há longas filas de
várias horas de espera, mas estávamos confiantes num passe especial para
turistas que, em troco de algum dinheiro, garante uma circulação mais rápida.
Tinha escurecido, o calor era agora mais suportável,
passeámos por ruas cheias de gente e lojas, sempre à procura do templo - até
que vimos um sinal que apontava para a fila de quem vai rapar o cabelo.
Decidimos espreitar.
"Se der para fotografar ou desenhar, podemos fazer uma crónica gira acerca deste ritual."
"Vamos só ver como é."
Descalçámos os sapatos e lançámo-nos numa espécie de
corredor pouco iluminado que, em vez de paredes, tinha grades de ferro até ao
tecto. Depois começámos aos ziguezagues, dava a sensação de sermos animais no
matadouro. Havia mais pessoas, à frente e atrás, mas reinava um silêncio
perturbador. Que coisa estranha. A certa altura um homem parado numa passagem pôs-nos
nas mãos um sabonete. Um pouco mais à frente, alguém nos dá uma lâmina.
"Isto parece um campo de concentração."
"Vamos só ver como é."
Chegámos à entrada propriamente dita. Uma rampa com
acesso a uma porta, dava a sensação de ter uma piscina pública do outro lado,
ou um grande balneário. Mas não víamos nada. Apenas o homem sentado à nossa
frente, a distribuir umas senhas às pessoas que entravam.
Olhamos um para o outro. Entramos ou não entramos?
"Vamos só ver como é."
Entrámos.
O homem das senhas perguntou-nos se íamos rapar e fizemos
sinal a confirmar.
"Depois devolvemos as senhas. Vamos só ver como
é."
Passando a tal porta, entrámos num corredor com várias
passagens. Todas as portas tinham pesadas grades, algumas fechadas a cadeado,
outras abertas. Dava a sensação que estávamos numa prisão. Um grupo de mulheres
sentadas a um canto, todas de sari côr-de-laranja... uma versão indiana de
Guantanamo?
Pouco depois o corredor dividia-se em dois, com umas
escadas que desciam para o "Tonsure 1" e outras para o "Tonsure
2". Os nossos bilhetes indicavam "1". Mas entretanto reparámos
numa passagem que ia dar a uma varanda e decidimos espreitar. Abrimos o
gradeamento e encontrámos várias pessoas sentadas ou a dormir. Enconstámo-nos
ao muro: por baixo de nós estava um pavilhão rectangular, um cruzamento entre
um banho turco e um mercado de peixe. É-me difícil explicar. Dezenas de barbeiros
sentados à volta da sala, cada qual com o seu "cliente" sentado em
frente a si, de cabeça baixa. E atrás desse cliente uma pequena fila de mais
dois ou três, em espera. E as famílias à volta. Um ambiente familiar com uma
carga religiosa, ao mesmo tempo descontraído e pesado. É-me tão difícil
explicar.
Acabámos por descer. Tínhamos cumprido todo o ritual dos
corredores e passagens. Tínhamos uma lâmina na mão, um sabonete, um bilhete com
o número do respectivo barbeiro. Dezenas de milhar de pessoas vêm aqui rapar o
cabelo diariamente. Mulheres incluídas. De repente, desistir parecia algo
cobarde. Não queríamos rapar o cabelo só pela experiência
"turística", não fazia sentido. Na verdade não nos apetecia mesmo
nada levar uma "carecada". Mas ao mesmo tempo, com toda aquela carga
associada, com os pés a sentir o chão frio e molhado, as pessoas a olhar para
nós curiosas, o que estarão estes dois estrangeiros a fazer aqui.
Decidimos rapar.
O Luís até tinha feito uma espécie de promessa, não ia
cortar o cabelo, etc. Mas neste momento ou íamos embora ou rapávamos os dois.
Não havia meio termo. E quase sem querer, sem planear nada, só porque sim, só
porque já ali estávamos e faz parte... vamos lá.
Eu primeiro, o Luís depois. Não consigo agora descrever a
sensação. Um dia destes. Um dia destes prometo falar sobre isso. Tem uma carga
emocional forte, e não me apetece falar sobre isso agora.
O que interessa agora - e o post já vai bem longo - é que
rapámos o cabelo. Fomos ao baeta, à maquina zero, levámos uma carecada.
Acabámos por nem conseguir ver o templo. Havia fila para
catorze a dezasseis horas de espera. E os bilhetes VIP só no dia seguinte, ao
almoço. Voltámos para as motas e descemos o ziguezague de curvas e contracurvas
até Tirupati.
6 comentários:
E, assim, o capacete ficou a dançar. ;)
Nesta fotografia fazes-me lembrar o tio Xico :)
Top!!
são estas experiencias vindas do nada que nos ficam para sempre na memória :)
Que mais surpresas a Índia nos vai trazer ainda através de ti? Obrigada e parabéns por terem levado a experiência até ao fim. E sabes que estás de cara "muito lavada"... Aquela tua farta cabeleira foi uma mais valia para as tais toneladas. E o Ego, ficou lá?
Jorge e Luís, ficaram muito giraços!!!! :)
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