Quase nem falámos de motas, para dizer a verdade. O tema
esteve sempre presente, claro: trocámos algumas impressões e dicas - mas o
facto é que as vespas foram mais paisagem que protagonistas, nos últimos dias.
Praticamente sem nos apercebermos, lançámo-nos numa redescoberta da
cidade. Eu e o Inácio já aqui estivemos dezenas de vezes. O Luís também não é
novo por estas bandas. Mas as circunstâncias das voltas que demos foram acrescentando uma
intensidade cada vez maior - e ontem, quando saímos do quarto, saímos com o
objectivo de ir à procura de hijras.
O Inácio tinha visto várias a pedir esmolas nos semáforos da
Grant Road. Perguntei ao meu "gang" de cá e todos me disseram para ir
a Grant Road. O Luís também indagou com uma amiga e ela mandou-o ir para Grant
Road.
Ou seja: fomos para a Grant Road.
Estávamos perto da maravilhosa Victoria Station e no mapa
deu a sensação que não era assim tão longe, a Grant Road. Fomos avançando por
esta e aquela rua, seguindo as instruções de quem nos apontava, vão-por-aqui,
vão-por-ali, e o calor a manifestar-se na cor das nossas t-shirts, no ritmo das
nossas passadas.
Demorámos duas horas para chegar à Grant Road, já num estado
de se-eu-soubesse-que-era-tão-longe.
Não vimos hijras nas ruas. Liguei a uma amiga a pedir novas
orientações e ela mandou-me perguntar pelo "Kamatipura" - o red light
district. Os dedos começaram aos poucos a apontar na direcção de ruas mais pequenas.
Saímos da estrada principal para o meio do caos, chão e paredes e o ar ainda
mais sujo que antes. Que calor. Vira à direita e sempre em frente, vira à
esquerda e volta atrás, parecia que nunca mais íamos lá chegar quando decidimos
parar para recuperar energias. Comprámos umas bananas, bebemos um
refrigerante... e durante este processo o Inácio conseguiu algo precioso: o
dono de uma loja de fotocópias escreveu num papel uma referência - Siddarth
Nagar - e, em hindi, as palavras "hijra community".
A partir daqui, foi uma questão de minutos. Chegámos
finalmente ao lugar onde queríamos ir. Um prédio imundo e velho, a fachada
feita de varandas viradas para a rua, a roupa pendurada era a única lembrança
de cor e vida. Um postal triste, sem esperança nem passado nem presente. Não
podia ser mais deprimente.
Apercebemo-nos que não tínhamos um guião. Não tínhamos uma
história. Um plano. Uma ideia. Queríamos ver as hijras, falar com elas, conhecer um pouco mais das suas histórias, perceber o fenómeno, fotografá-las e
desenhá-las. Mas não tínhamos uma desculpa, sequer.
Como se estivessem à nossa espera, do outro lado da rua
havia três cadeiras de plástico. Sentámo-nos. A respirar fundo. A fumar um
cigarro. A absorver a realidade à nossa volta e o potencial daquilo que nos
esperava. De tudo o que podia acontecer - ou não.
Levantámo-nos ao mesmo tempo. Vamos lá.
Atravessámos a estrada e entrámos por um corredor cheio de
lixo no chão, as paredes cuspidas com betel, sujas de fumo e histórias, os
degraus a ranger quando nos lançámos para o primeiro andar.
Não fazíamos ideia para onde íamos.
"Somos estudantes de arte", disse eu ainda a meio
das escadas. "Somos estudantes de arte e ficámos curiosos com a questão
do terceiro sexo na Índia, queremos falar com as hijras, desenhá-las, para fazer um
projecto de arte."
E ao virar a primeira esquina damos de caras com uma.
Que não teria ficado mais surpreendida se fossemos a Madre Teresa de Calcutá ou
os Beatles.
(continua no próximo post)
4 comentários:
Rápido.... o próximo post?... Mal posso esperar!
Muito interessante Jorge! Quando estive pela última vez em Mumbai, para além de fotografar a favela de Dharavi, queria também ter passado algum tempo com Hijras. Como a sorte mandou que o meu primeiro projecto consumisse quase todos os dias que estive na cidade, acabei por só dispor de um dia para o segundo. Resultado: não consegui encontrar nenhum. Fico impacientemente à espera do próximo episódio ;)
Ficamos, claro! Mas o Jorge tem sempre este pequeno prazer em nos fazer sofrer...! ;)
Hijra se escreve no feminino.
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