UMA ESTRANHA SURPRESA

Acordo ao som de uma música infantil, gargalhadas e movimento. A casa treme. Algo se passa. Olho à minha volta e não reconheço o espaço que me rodeia. Onde estou? Que frio.

Aos poucos, enquanto desperto desta espécie de sonho que já não é sonho, lembro-me que não estou em casa. Onde é "casa"? Também não estou em nenhum dos lugares onde me habituei a acordar, em Hanói, em Istambul, em Luang Prabang, em Bombaim. Não estou em Puerto Natales, a última morada. Estou em Punta Arenas, quase-quase na pontinha sul deste continente onde me atrevo a viajar, depois de dez anos a dizer que "é pró ano".

Hoje é hoje. Estou aqui, no sul-mais-sul do meu mapa, junto ao Estreito de Magalhães, a dois passos da Antártica.

Assim que saímos do autocarro, ontem de manhã vindos de Puerto Natales, fomos logo abordados por um tio de sapatos de vela e pullover de marca - teletransportado de uma Hola! dos anos 90 para esta cidade nos confins do continente americano. De mochilas às costas, aceitámos a sugestão do senhor e acompanhámo-lo a sua casa, que não ficava longe.

O Samuel mudou-se para Punta Arenas há cerca de um ano, com a esposa Marcela e as filhas, e começou a alugar quartos a estrangeiros há pouco mais de três meses. Antes, vivera durante alguns anos na Europa, em Vigo - e chegou a visitar o Porto, cidade que gostou muito.

Mas voltando ao Chile: ao nosso quarto. Simples, mas muito barato e relativamente bem localizado - e a simpatia do casal conquistou-nos. O Samuel e a sua pose impecável, de entrevista. A Marcela e o seu sorriso que tem tanto de maternal como de sensual, com promessas e convites escondidos, não deve ser nada, deve ser só da nossa imaginação.

Decidimos ficar.

Esta cidade é uma surpresa estranha, difícil de se explicar.

Mas posso dar alguns exemplos:

A pancada pelo Fernão. Eu entendo o orgulho, percebo a ligação histórica, tudo o mais. Mas roça a obsessão, quando quase tudo adopta o nome do senhor. Há universidades, boutiques, seguradoras, cabeleireiros, pracetas, drogarias, gasolineiras, ópticas, rotundas, oficinas. A paisagem está infestada com este nome, é pior que o Vasco da Gama no Parque das Nações. E muito pouco original. Mas gosto disto.

Também se vêm muitas referências à Croácia. Uma avenida com o nome do país, outras com cidades como Split, Zagreb... por todo o lado há referências a nomes acabados em "vic". Parques e estátuas dedicados a poetas croatas, uma dependência do Banco da Croácia - e o escudo que é emblema da bandeira tem direito a monumento. O cemitério está cheio de sepulturas e jazigos com nomes croatas - que lugar é este? Segundo o nosso anfitrião, no início do século XX houve uma vaga grande de imigração vinda da Croácia. Mas quem é que se lembra de vir para tão longe...

E não foram os únicos. Houve alemães e americanos, ingleses e italianos - e até indianos. Há uma comunidade significativa que se mudou há duas gerações, os mais jovens já nem sequer falam hindi! Fomos ao templo e foi coisa-estranha-de-se-ver, estes indianos a rezar a Vishnu em espanhol.

Ah! E até houve um português que para cá veio em tempos, com vinte e um anos, de letras sabia apenas assinar o nome mas fez-se homem respeitado, foi o "pai" da navegação mercantil em Magalhães e criou as bases da Sociedade de Exploração da Terra do Fogo, território onde o governo local lhe ofereceu, em sinal de gratidão, mais de um milhão de hectares de terra. O sr. José Nogueira tinha a casa mais bonita da cidade (é hoje hotel e restaurante) e a sua esposa mandou erigir um monumento em sua honra, depois dele falecer permaturamente, aos 47 anos, no Peru. E esta, hem?

Eu não disse que era uma estranha surpresa, este fim do mundo?

Até o Exupery andou por aqui. Trabalhou na Aeropostales Argentinos no final da década de 20, viajou extensivamente pela Patagónia, existe inclusivamente um Monte com o seu nome, mais a norte, em El Chalten. Quanto a Punta Arenas: supostamente foi nomeada uma praça, em homenagem ao autor - mas na internet há informações contraditórias, e por muito que procurasse (e acreditem que procurei), a única coisa que encontrei foi um parque infantil vandalizado, com aviões, camiões e tratores de madeira... triste referência ao livro que colecciono, e que fez-e-faz as delícias de miúdos e graúdos, pelo mundo fora.

Este lugar que atraiu tanta gente viu também chegar uma família de suíços, há mais de cem anos. Abriram uma fábrica de chocolates e hoje têm uma loja que ainda faz as delícias de locais e turistas, onde me sentei a folhear a mais recente edição do "Principezinho", ou como lhe chamam aqui, "El Principito". E os chocolates: que perdição! :)

A visita que fizemos ao cemitério só veio confirmar o que já nos tínhamos apercebido, ao longo do primeiro dia em Punta Arenas. Aqui vieram parar milhares de estrangeiros, vindos de todo o lado, fugindo sabe-se lá de que fantasmas, atrás sabe-se lá de que sonhos. Vimos um monumento ao Índio Desconhecido; um túmulo de portugueses; jazigos de croatas, ingleses, alemães... tudo decorado com flores de plástico em cores berrantes, fotos dos falecidos, uma parafernália pouco comum, nos cemitérios que me são mais familiares.

À noite jantámos num buffet local - nada de especial, mas soube bem encher o prato várias vezes ;)

E cá estamos de novo no quarto: oito da manhã, na minha cabeçam o nevoeiro de estranhos sonhos está finalmente a dissipar-se, aos poucos a realidade à minha volta começa a fazer sentido. A música que atravessa as paredes da casa obriga-me a levantar depressa, tomo banho e visto-me, desço para tomar o pequeno-almoço e encontro a família inteira, pai-mãe-filhas e até um hóspede, todos a dançar ao ritmo de um som infantil debitado pelas colunas do computador, via youtube, as crianças eufóricas, abana a anca, levanta os braços, respiração ofegante, aeróbica em família é o que está a dar por aqui.

Sentamo-nos à mesa e explicam-me que fazem aquilo todas as manhãs. Esta família é especial - de uma forma única, quase estranha, mas especial. Tal como a cidade onde vivem.