Quando finalmente entrámos no refúgio, eram dez da noite. A
sala estava praticamente vazia: as cadeiras pousadas nas mesas, de pernas para
o ar; as três chilenas sentadas a um canto a beber um copo de vinho, e dois
rapazes andavam de um lado para o outro, a limpar e a arrumar. Descalçámo-nos,
como é regra, e pousámos as mochilas a um canto. Fizemos o check in ao mesmo tempo que respondíamos à curiosidade das
chilenas. Elas também se tinham perdido uma vez, e chegaram cinco minutos antes
de nós.
Perguntámos se era possível jantar e a primeira reacção foi
"não, já passou a hora" - mas devíamos estar com um ar tão miserável
que, apesar de nem termos insistido, alguém preparou uma mesa e acabámos por
comer um belo bife de peru com batatas. Deitámo-nos logo a seguir a lavar pés e
cara, aplicámos tiger balm nos pés,
joelhos e ombros, tomei um anti-inflamatório. Dormi no segundo andar de um
beliche que me pareceu gigante, o Bunty no terceiro.
Na manhã seguinte, acordámos todos "partidos". É o
que acontece a quem puxa os limites como puxámos, nos dois primeiros dias. Já
caminhámos cerca de 55km, ao todo - a distância tinha de começar a pesar.
Lá fora: chuva.
Cá dentro: que bem que se está no quentinho do saco-cama.
Decidimos ficar a descansar, hoje. Não podemos abusar da
sorte, é estupidez insistir, ainda nos magoamos a sério - e acabamos por nem
gozar o passeio.
A miúda da recepção falou, via rádio, com Paine Grande - o
terceiro refúgio - e adiou a nossa reserva um dia. Pagámos uma noite extra,
aqui. Hoje passamos o dia no refúgio, a recuperar energias.
Conhecemos uma estónia cuja mãe fora médica durante o regime
soviético, estudou em Cuba, fala espanhol fluentemente, já viajou por toda a
América Latina; uma cubana nascida na Polónia, que viveu no Canadá e agora está
nos Estados Unidos; um casal australiano, ele muito "bife" e ela
filha de pais vietnamitas; um pai e dois filhos a fazer o circuito total; uma
chinesa muito tímida com quem já tinhamos estado à conversa no primeiro dia; um
grupo de japoneses freaks; um casal de alemães todos hi-tech, equipados ao milímetro com as mesmas cores, as mesmas
coisas, o espelho um do outro, sempre a estudar notas de campo e a preparar a
estratégia para o dia seguinte; um grupo de amigos chilenos vestidos à militar;
outros completamente descontraídos, de calções e t-shirt; uma bailarina
austríaca sempre muito direitinha, que para apertar os atacadores baixava-se
sem dobrar os joelhos; os amigos fashion
da bailarina; umas inglesas gordinhas, muito coradas e pouco femininas no
andar; e um casal húngaro muito porreiro, que foi com quem ficámos mais tempo à
conversa, também têm um blog com as aventuras de viagem.
À tarde, quando o tempo melhorou, demos um pequeno passeio
pelas imediações, subimos a umas rochas para ver as montanhas, descemos até às
margens do lago - voltámos pouco depois. Experimentámos pela primeira vez pisco sour e sentámo-nos no alpendre a
ver um grupo de irlandeses que ia chegando aos poucso, alguns "com idade
para ter juízo" - fascinante. Iam batendo palmas aos que chegavam, riam e
trocavam impressões sobre o passeio, parecia o final de uma maratona. Uma
festa. Que alegria. Que energia!
Entretanto, quando pedimos a segunda dose de pisco, uma senhora desse grupo
"imitou-nos" e meteu conversa connosco. Tem 64 anos e faz parte de um
"walking club" de amigos e amigos-de-amigos, organizam caminhadas lá
na terrinha e pela Irlanda fora, e uma vez por outra aventuram-se para mais
longe. A senhora já fez dois Caminhos de Santiago - o Francês a pé, o Português
de bicicleta - e nesta caminhada chilena está a dormir sempre em tendas. Hoje
será a única noite num refúgio. Que delícia, esta mulher - e que inspiração. O
Bunty ainda estava mais fascinado que eu, porque: na Índia, aos 64 anos, uma
mulher quase não se mexe, fica em casa a tratar dos netos, a queixar-se de
dores aqui-e-ali, a rezar. Uma mulher com esta idade e esta energia: é raro
encontrar na Índia.
Deitámo-nos cedo. Amanhã arrancamos outra vez - vamos lá ver
em que estado.
1 comentário:
Descanso dos Guerreiros...! :)
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