Eu já partilhei aqui o final do último dia: milhares de morcegos a voar no céu que escurecia. Já partilhei alguns dos petiscos que me conquistaram. Hoje até fiz um "apanhado", instagram style.
Ainda me falta mostrar as fotos do bamboo train, quem sabe deste ou daquele templo... e falta-me descrever o ambiente do autocarro em que viajei, durante quatro horas, entre Siem Reap e Battambang.
A ordem está toda trocada, este devia ter sido o primeiro post, e devia acabar com os morcegos. Mas o que é o tempo, afinal, senão uma misturada louca de experiências e estímulos, de reacções e decisões, de encontros e imprevistos.
Quero lá saber se este veio primeiro que aquele. Desde que faça sentido.
Assim sendo: passo a partilhar um momento anterior àqueles que o precedem neste blog.
Comprei o bilhete para Battambang na tarde anterior à viagem, não fosse esgotar, para ter a certeza que tinha lugar no autocarro. Eu sabia lá se ia cheio ou não. Just in case. E na manhã seguinte lá fiz checkout do hotel, pedi-lhes para me guardarem a mochila grande durante alguns dias e lá fui. Primeiro para o office, mesmo ao pé do Old Market; esperei dez minutos e lá apareceu uma minivan a cair de podre, quase tão antiga quanto as ruínas de Angkor, já deve ter umas boas histórias para contar.
Sentei-me com um casal de cambodjanos em lua-de-mel, mais um pai e um filho, uma velhota e os seus sacos de plástico. Na estação dos autocarros pediram-me para esperar mais um pouco e sentei-me a beber um café (com leite condensado e muito gelo, nem é costume preocupar-me muito com estas questões mas desta vez vi de onde a senhora tirou o gelo... e confesso que tive dúvidas em beber o café).
Fizeram-me sinal para entrar e sentei-me no lugar que vinha marcado no bilhete. O motorista convidou-me a ocupar um dos lugares de frente, mas agradeci e deixei-me ficar onde era suposto. No entanto, ainda nem tínhamos saído e acabei por mudar de lugar.
Porquê?
Porque sentado mesmo atrás de mim vinha uma criança rechonchudinha toda divertida, que achou imensa piada ao estrangeiro sentado à frente e começou a dar-lhe uns toques com o indicador no ombro.
Virei-me para trás a sorrir, na primeira vez.
"Hallo", disse-me o pequenito khmer.
"Hallo", respondi.
E virei-me outra vez para a frente.
Uns segundos depois: novo toque. Virei-me para trás, a sorrir mas já com cara de páras-quietinho-se-faz-favor.
"Hallo", disse-me o roliço mogli.
"Bye bye", respondi.
E virei-me para a frente.
Novo toque. Isto não pode estar a acontecer. E antes que me virasse para trás a deitar fumo pelas narinas e ouvidos, ele antecipou-se e disparou um bye bye. Aparentemente era indiferente eu reagir, por isso aproveitei a dica e decidi fingir que não tinha reparado. Continuei a olhar pela janela. Ele há-de desistir.
"Bye bye", mais uma vez.
Não me mexi.
"Bye bye. Hallo. Bye bye."
Respira fundo, Jorge.
"Hallo. Hallo. Bye bye. Hallo."
Levantei-me. É só uma criança, Jorge. Aceitei a proposta do motorista e mudei-me para um dos lugares da frente.
O autocarro acabou por sair antes da hora marcada. Em câmara lenta. A passo de caracol, a pisar ovos, passo-ante-passo porque devagar se vai longe, grão a grão e mais-não-sei-quê. Que seca. Apanhávamos pessoas e mercadoria, encostávamos à espera sabe-se lá do quê, era como se estivesse trânsito... mas quase não havia carros à nossa volta.
Felizmente, assim que saímos de Siem Reap, o mundo começou a andar para trás, do lado de fora da janela. Avançámos Cambodja fora, primeiro por uma estrada que conheço bem - a estrada para Poipet, na fronteira com a Tailândia - mas a meio virámos "para dentro" e lá fomos desbravando novas geografias, quais Vascos-da-Gama na sua caravela de quatro rodas, a apitar a quem passa, a quem se cruza, a quem está parado na estrada. E quanto mais nos aproximávamos do destino final, mais o motorista apitava.
Mal saímos de Siem Reap ligaram a televisão instalada no início do corredor, mesmo à minha frente. Primeiro passaram uns telediscos cambodjanos, com legendas em khmer para se cantar karaoke. Felizmente não havia artistas no autocarro. Os videos eram uma espécie de telenovela misturada com "malucos do riso", com muitas cenas filmadas em fast forward, os maus a levarem com coisas na cabeça e a entortarem os olhos, muitos trambolhões e trolitadas - e pelo meio algum romance e drama entre o herói e a sua donzela.
Entretanto entrou um casal com um bebé, sentaram-se mesmo atrás de mim. Estava escrito no meu destino, só pode ser. Não era o redondinho a dar-me toques no ombro, passa a ser a criancinha a guinchar aos meus ouvidos. Bem coladinho a mim.
Ainda saquei dos phones, coloquei-os nos ouvidos com a música no máximo, e não estou a falar de um Bon Iver, Mayra Andrade ou Jose Gonzalez... pus a tocar Black Keys, Arcade Fire e outros sons que conseguissem anular o choro do bebé.
Mas sem sucesso. Ele era pior do aqueles vocalistas das bandas de hard rock dos anos setenta, com vozes fininhas e cabelos compridos. Era um bebé death metal, vindo do Inferno, com um choro daqueles que racha vidros e afugenta animais, que provoca acidentes e faz com que as pessoas arranquem os próprios cabelos, de horror.
Não estou a brincar.
E sim: mesmo aos meus ouvidos.
A meio da viagem parou o autocarro e parou o choro demoníaco. Saí para respirar ar puro e sorri com o som harmonioso das motas que passavam, das vendedoras a tentar impingir-me os seus produtos. Comprei um kralan, aquele bambu recheado com arroz e coco de que já falei na semana passada.
Quando retomámos a viagem, vá-se lá entender porquê mas não me interessam as razões, a criança não voltou a chorar. Na televisão passava um filme do Jackie Chan, tão velho que cheirava a mofo, as cores desbotadas e as roupas fora de moda. Já o Jackie Chan: fresco que nem uma alface, saltos e pancadaria, palhaçadas e caretas, o costume. Dobrado para khmer ainda soava pior, com umas vozes estridentes que pareciam desenhos animados. Só rir.
Ou seja: soube bem chegar a Battambang, no meio de um batalhão de drivers de tuktuk aos gritos com promoções e tours e nomes de hotéis. Algures entre a confusão, o meu nome escrito numa folha de papel. E lá vou eu.
2 comentários:
Estou com o síndrome "Jorgismo". Sigo os blogs e mais-não-sei-quês de vários viajantes, mas é aqui, com esta escrita, que me sinto em casa. Dito isto, fui dar uma volta.
Bela crónica, sem dúvida...!
Viva a Jorgemania!!!!
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