"Muitas vezes ao partilhar algumas das peripécias por
que passo, faço um esforço para lhes emprestar algum humor, ironia e emoção,
quando no próprio momento em que aconteceram só queria estar bem longe dali."
"Sim, eu sei o que é isso: olhar para trás e revisitar
alguns desafios mais complicados, ou processos mais chatos, seja em viagem como
na vida em geral, é um exercício de criatividade interessante... de
preferência, com a distância necessária para podermos rir de nós próprios e do
instante."
"O mais difícil, mas também o mais importante, é termos
consciência disso no momento e tirarmos partido da experiência."
Estávamos há duas horas sentados no muro de um viaduto, à
espera de um autocarro que nunca mais chegava, a filosofar sobre viagens e a
vida - eu, o Ahmed e o Omar, dois egípcios que acabara de conhecer e que também
iam para as ilhas Perhentian.
"Temos de conseguir ver o lado positivo deste atraso,"
continuou o Ahmed, que vive em Kuala Lumpur e também tem um blog de viagens, "por
um lado, se não fosse esta confusão toda não nos teríamos conhecido; por outro,
se o autocarro saísse a horas chegávamos ao nosso destino às cinco da manhã, e
quase de certeza teríamos de ficar à espera duas horas pelo primeiro
barco."
As coisas que uma pessoa diz.
Nem sonhávamos a epopeia que nos esperava.
Mas voltemos um pouco atrás no tempo, para dar um contexto mais
completo ao drama.
Comprara, a meio da tarde, o bilhete de autocarro para Kuala
Bhesut, a terrinha de onde parte o barco para as ilhas Perhentian, onde
planeara ir passar o fim-de-semana.
Entretanto também combinara ir jantar com um amigo ao KLCC,
o centro comercial que fica por baixo das Torres Petronas, mas como estava um
trânsito infernal (por causa da chuvada típica das quatro e meia e porque
metade da cidade estava de partida para o fim-de-semana grande com a família),
alterámos os planos e combinámos jantar perto da estação de autocarros, assim eu
não corria o risco de chegar atrasado.
Sete da tarde: a chuva tinha parado de cair há meia hora. Saí
do hotel, depois de duas corridas à casa-de-banho. Sim: estava de caganeira
(desculpem-me o francês mas não tem outro nome) e tendo em conta que ia passar
oito horas num autocarro, o cenário não me parecia nada favorável. Engoli um
Imodium, paguei o quarto e deixei a mochila grande na recepção. Vou estar fora
quatro dias, não há necessidade de levar tudo comigo.
Respira fundo, Jorge. Vai correr tudo bem.
Ai vai, vai.
Fui a pé até à estação de Masjid Jamek e de metro até ao
Putra World Trade Center, que é um pulinho até à Putra Station. O bilhete que
tinha no bolso dizia que o autocarro partia às dez da noite, mas o rapaz que mo
vendeu pediu-me para vir antes das nove e meia, por segurança. Apesar de que
"hoje deve sair um bocadinho atrasado, por causa do trânsito".
Stuck in jam, I will be late.
dizia o SMS que recebi quando cheguei à estação. Eram oito
horas. O meu amigo chegou às oito e meia, jantámos meio-a-correr e pouco depois
das nove estávamos na estação.
Caos.
Nas estrada do lado fora da estação: dezenas de autocarros
em fila, segunda fila, terceira fila. Milhares de pessoas a chegar, a entrar e
a sair, a depedir-se, à espera, à procura, a tirar selfies, a enviar mensagens.
Vai ser uma noite longa, pensei.
Mal imaginava quanto.
Lá dentro: era tanta a confusão que os autocarros nem
entravam. À medida que as pessoas se "apresentavam" ao balcão da
respectiva agência com o bilhete, mandavam-nos esperar em determinado espaço da
estação, e quando se reunia um grupo considerável, aparecia alguém para os
levar para algum lado.
Assim foi comigo. Juntei-me a um grupo e quando apareceu o
tal facilitador, despedi-me do meu amigo, que com uma paciência santa aguentara
comigo aqueles primeiros minutos. Segui a camisa às riscas azuis e amarelas pela
estação, subi vários lances de escadas e atravessei corredores, parques de
estacionamento, uma estrada, mais uns degraus - a estação estava já longe, ou
assim dava a sensação - e chegámos à parte de cima de um viaduto.
Que confusão.
Por baixo passava uma autoestrada - cheia de carros num
lento pára-arranca de faróis e farolins, acende-apaga, é preciso paciência, é
preciso saudades. Tanto caos por um fim-de-semana de três dias.
Mesmo à nossa frente, o prédio do partido do Governo, um
edifício todo coberto de LEDs onde passavam mensagens patrióticas, a bandeira
nacional da Malásia, propaganda política e até publicidade a uma estação de
rádio.
Mostrei o meu bilhete a um homem que andava de um lado para
o outro, aparentemente a coordenar autocarros, passageiros, tensões e
expectativas - disse-me para esperar. E no meio de todo este caos, reparei em
dois rapazes de mochilas às costas, que claramente não eram locais, a perguntar
(em inglês) pelo autocarro deles. Fui tentar ajudar, pareciam-me um bocado
atrapalhados, mas afinal um deles até estava a viver em KL e sabia falar a
língua local. Iam, como eu, para a Perhentian, mas o bilhete deles só os levava
até Kota Bharu, que fica a uma hora de Kuala Bhesut, onde se apanha o barco
para as ilhas - e para onde eu ia, teoricamente. Tinham comprado o bilhete há
quinze dias, já estava tudo esgotado nessa altura - eu conseguira, por sorte, vaga
num suposto autocarro extra. Eles estavam a tentar trocar os bilhetes deles por
dois lugares no meu autocarro.
Começámos a falar, disseram-me que eram do Egipto.
"Egypt, really? I was there just a few days ago!"
E assim se iniciou uma conversa de mais de duas horas,
enquanto esperávamos pelos respectivos autocarros. De vez em quando
levantávamo-nos para ir pressionar o homem que coordenava as operações, mas só
para "marcar presença", sem stress
porque cedo percebemos que não ia resolver nada stressar. A situação estava absolutamente caótica, aos poucos as
pessoas iam sendo encaminhadas para diferentes autocarros, que paravam na
estrada e deixavam ocupar as vagas que tinham. Aos poucos.
Já agora, passo a apresentar os meus futuros companheiros de
viagem:
Um chama-se Ahmed (o que só confirma a minha teoria de que
50% dos egípcios responde por este nome), vive na Malásia há sete anos,
desenvolve aplicações para telefones e escreve um blog de viagens. O outro
chama-se Omar, é primo do primeiro, vive no Cairo mas está a viajar na Malásia.
Rapidamente começámos a partilhar ideias e histórias;
falámos sobre a Nomad e sobre uma agência que está a tentar fazer algo parecido
no Egipto; ele contou-me ainda sobre uma portuguesa que esteve a viver em KL e
que agora voltou para Portugal, onde lançou uma startup de turismo com uma vertente social e ambiental. Falámos
sobre o Egipto, claro. Sobre Portugal, a Malásia, a Índia e meio-mundo. Inglês
fluente, interesses em comum: isto só podia dar bom resultado. E eu ainda a "ressacar"
a viagem ao Egipto.
O destino tem umas voltas engraçadas, hem?
Mas voltemos às peripécias da noite.
Depois de algumas falsas partidas, depois de mudarmos de
posto de espera duas ou três vezes, e de várias mensagens trocadas com os meus
amigos de KL a partilhar a minha frustração com a demora... finalmente o homem gritou
sabe-se lá de onde e quando o vimos ao fundo do viaduto fez-nos sinal para que
o seguíssemos.
Faltavam dez minutos para a meia-noite. Tinham passado cinco
horas desde que saíra do hotel. Duas horas e meia desde que nos tinham levado
para o viaduto.
"Finalmente!", disse o Ahmed.
"Finalmente!", disse o Omar ao mesmo tempo que o
primo.
"Finalmente!", repeti eu baixinho sem saber se
este era também o meu autocarro, pois teoricamente não iamos no mesmo. Mas
segui-os. Não me apetece nada ficar aqui sozinho mais duas horas e meia.
Acabara a espera - finalmente!
Mas o verdadeiro drama estava só a começar.
3 comentários:
Uau, essa estação Putra onde estavas é exactamente ao lado do prédio onde vivi em KL, mesmo ao lado de um gigante centro comercial em obras, right? E lembro-me bem desses engarrafamentos de pessoas e buses todos os dias!ahah Curioso que tenhas visto o mesmo ponto de fuga em forma de caracol na passagem por cima da linha de comboio, tenho uma foto igual! Grande abraço e fico à espera da segunda parte da aventura!
estou à espera da continuação!!!
Beijinho
tia Minan
Atentos? Claro!!! Acho que pelo andar dos autocarros vamos ter ainda pano para mais 3 ou 4 partes! ;)
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