Perguntei a este-e-aquela, pesquisei no meu livro de cábulas
sobre a cultura e tradições do Myanmar e lá encontrei a resposta a esta dúvida.
A história que se segue é uma adaptação "livre", escrita num momento
de inspiração - ou não.
Ou seja, descontando as piadinhas e os floreados, o básico
da lenda está algures nas entrelinhas deste post que agora partilho:
Era uma vez uma princesa birmanesa giríssima que tinha
andado num liceu de Cascais e tudo, e que estava à espera de bebé.
Apesar da gravidez avançada, a princesa insistiu em fazer um
trekking na floresta encantada ao pé
do palácio. Sim: floresta encantada. Isto passou-se Antigamente, e nessa altura
havia florestas encantadas. Daquelas em que as árvores têm voz grossa e pegam nas
pessoas com os ramos, quando estão zangadas; e os passarinhos e os esquilos
falam, e as borboletas andam sempre à nossa volta a dançar. Depois veio o Walt
Disney. E depois veio o Castelo Branco. Mas essas são outras histórias.
Continuando.
Ia a princesa mais as suas damas de companhia, guardas reais
e bobos da corte, todos equipados a rigor com ténis nike (já havia nessa altura, eram super vintage), quando o passeio
foi interrompido pelo assustador rugido de um leão. O grupo parou e estremeceu
de medo: as damas de companhia rodearam a princesa para a proteger, os guardas
reais rodearam as damas de companhia - e os bobos da corte esconderam-se atrás
das árvores.
Silêncio.
E de repente: o leão.
Enorme, com ar ameaçador, diria que acabadinho de chegar de
um documentário da National Geographic, mas isto foi Antigamente e nessa altura
não havia televisão nem revistas. Só das côr-de-rosa.
Medo.
Nem os passarinhos cantavam - quanto mais os esquilos, que
eram conhecidos por ser os mais medricas da floresta. Então o leão quebrou o
gelo e tentou dizer alguma coisa, mas só de abrir a boca desatou toda a gente a
fugir, cada um para seu canto, foi um salve-se-quem-puder como nunca se vira
naquela floresta encantada, e no meio da confusão a princesa, coitadinha,
sempre giríssima mas a tremer que nem varas verdes, ficou sozinha, grávida, a
dar-lhe os vómitos com o susto, frente-a-frente com o rei da selva. Ainda levou
a mão ao bolso, à procura do iphone
para pedir auxílio; ou do spray de
pimenta para se defender - mas isto passou-se Antigamente, não se esqueçam, e
ainda não tinha sido inventado nem o iphone
nem o spray de pimenta.
"Bom dia," disse-lhe o leão com uma discreta vénia.
Ela respondeu com um aceno da cabeça.
"Eu chou o rei da chelva, e tu?"
"Eu sou a princesa."
"Éja princheja? Princheja do quê?"
A princesa revirou os olhos:
"Sou a princesa do palácio ali ao fundo, aquele amoroso
no topo da montanha."
Conversa puxa conversa, começaram a falar de fofoquices da
realeza e o leão começou a simpatizar com a grávida princesa. Tinham tanto em
comum: ambos eram de famílias reais... hmm... ok, só tinham isto em comum. Mas
foi o suficiente para o leão se apaixonar. Era um romântico, este leão. E como
estava a começar a chover, levou a princesa para a sua gruta e tomou conta dela
nos meses seguintes. Trazia-lhe comida todos os dias, apesar dela ser esquisitíssima
e só comer produtos gourmet;
protegia-a dos perigos da floresta (aranhas, correntes de ar e outros)... e
quase sem darem pelo tempo passar, nasceu o bebé.
Há quem diga que o leão era o verdadeiro pai da criança. As
revistas (côr-de-rosa-vintage) da altura garantiam que na verdade
"leão" não era o rei da selva, mas a alcunha de um sportinguista que
vivera um tórrido romance com a princesa e a engravidara. Seja como for, a
Birmânia recorda a história com um poderoso animal.
Nasceu o bebé, portanto.
Um rapagão gordo e rosado, que fez do leão um
"pai" babado: passou a tomar conta do miúdo, afeiçoou-se a ele como
se fosse seu filho, providenciava tudo do melhor para ele. O amor é cego. E
possessivo, por vezes. Porque o leão não só os protegia dos perigos das aranhas
e das correntes de ar, como os prendia na gruta. Estavam proibidos de sair.
Passaram-se alguns anos e o bebé cresceu. Já sabia fazer puzzles (antigos) e atrevia-se, de
quando em vez, a completar um sudoku.
Já desenhava algumas letras e fazia bem a pintinha dos iis. Estava na idade dos
Porquês.
"Mamacita... sabes porque nosotros nos quedamos por
aqui? Porque mi padre es un leon y no un hombre?"
Por razões misteriosas que nem a princesa sabia explicar, o
filho falava em portunhol. O que era super-piroso.
"Ó querido, sente-se nesta pedra giríssima porque a mãe
tem uma coisa para lhe contar. Você não é um rapaz normal, Bernardo."
O jovem Bernardo estremeceu.
"É que o seu pai não é este leão, e o seu avô (o meu
pai) é um rei... mas não o rei da selva. É ele que manda neste reino todo,
querido. Não acha o máximo?"
E com um movimento lento do braço cobriu todo o horizonte,
enquanto pombas levantavam voo assustadas. Os olhos do miúdo brilharam.
"Que bien...", murmurou ele.
"A sua mãe é uma princesa, Bernardo! Não é uma tara? E você
é um príncipe. Mas olhe, querido, ninguém sabe que estamos aqui na floresta
encantada, que é giríssima mas tem imensas aranhas e correntes de ar, é
nojenta. Ninguém lá no palácio do avô sabe que nós estamos aqui, como uns
refugiados, super pobrezinhos e com moscas nas feridas e mais-não-sei-quê... ó
Bernardo, eles pensam que o leão me comeu! Não é horrível?"
O que nem era de todo falso, segundo a imprensa côr-de-rosa.
"No te preocupes, mamacita," disse o menino no seu
peculiar sotaque. "Yo já soi mui fuerte. Manhana nosotros vamos a fugir
quando el leon va a buscar la comidita."
E assim foi. Na manhã seguinte o leão-das-beiras saiu para
ir buscar comida, e a princesa-tia e o príncipe-portunhol fugiram pela floresta
encantada fora. Nem as árvores os conseguiram agarrar, nem os passarinhos
cantaram mil aventuras e coisas queridas, nem mais nada. E quando o leão voltou
à gruta e percebeu que não estava ninguém, correu atrás deles desesperado,
cheio de medo que algo de mal lhes acontecesse, algo ainda pior que uma aranha
ou uma corrente de ar.
Quase os apanhou. Tinham acabado de atravessar o rio. O leão
ficou do-lado-de-cá da margem, eles do-lado-de-lá. Desesperado, começou a rugir,
como que convocando os deuses e os espíritos em que os leões acreditavam no
Antigamente (os leões eram animais altamente espirituais, há muito-muito-tempo),
mas de nada lhe serviu.
"No me sigas que te voy a matar," gritou o pequeno
Bernardo do outro lado do rio.
O leão tentou entrar na água. Ao ver isto, o rapaz pegou num
arco e começou a disparar flechas em direcção ao rei da selva. Mas o amor do
leão era tão grande e tão puro, que as flechas imediatamente se transformaram
em bananas e cocos - o que não impediu Bernardo de continuar a disparar, pois
acreditava que ia conseguir matar o outro. Contudo, por muito que insistisse,
todas as flechas se transformavam em oferendas - até que num brevíssimo
instante de fraqueza, apenas uma fracção de segundo, o leão pensou para a sua
juba "olha que mal-agradechido, o raio do rapaz" e imediatamente uma
seta trespassou-lhe o coração.
A princesa-tia e o príncipe-portunhol continuaram a sua fuga
e chegaram finalmente ao palácio. O rei morreria pouco tempo depois - mas feliz
por reencontrar a família. À falta de um pai, Bernardo foi nomeado rei.
El-rei Dom Bernardo mais não sei quantos apelidos.
Mas este não é o final feliz da história: porque alguns anos
volvidos da sua coroação, o rei D. Bernardo começou a ficar terrivelmente
doente. Por muito que os seus curandeiros e médicos tentassem, não conseguiam
curá-lo. Num dia de maior aflição até tentaram ligar para o 112, mas o telefone
ainda não tinha sido inventado. É preciso ter azar. Até que uma mente iluminada
lembrou-se dos dramáticos eventos ocorridos à beira-rio, uns anos antes.
Chegou-se à conclusão que o facto de D. Bernardo ter morto o
leão - quem sabe, o próprio pai - tinha funcionado como uma terrível maldição.
O rei precisava de obter o perdão do animal. Mas como, se este estava morto?
A tal mente iluminada disse então a el-rei:
"Se sua alteza desejar obter o perdão do leão, terá de
mandar erguer uma estátua à entrada de um templo, e ir lá rezar e fazer
oferendas todos os dias. E, já agora, este é o cartão do meu primo, que tem uma
empresa que constrói estátuas de leão, ele faz bons preços."
E assim foi. O rei mandou fazer a primeira estátua, e mais
outra, e mais outras. Tornou-se tradição, pôr leões à entrada dos templos.
Depois tornou-se moda. E assim se tranformaram num símbolo de dedicação na
protecção, os leões - não só contra aranhas e correntes de ar, mas todo o tipo
de males espirituais e físicos.
1 comentário:
Oh, sim! Com muita inspiração!!!
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