28/10/2014

A LENDA DA PRINCESA "BEM" E DO LEÃO DAS BEIRAS

Uma das imagens mais características do Myanmar de hoje são os leões enormes plantados à porta dos templos e pagodas. Apesar da motivação para estas estátuas me parecer óbvia - protecção - andava curioso em saber se havia alguma história por detrás de tão singulares bonecos. E há.

Perguntei a este-e-aquela, pesquisei no meu livro de cábulas sobre a cultura e tradições do Myanmar e lá encontrei a resposta a esta dúvida. A história que se segue é uma adaptação "livre", escrita num momento de inspiração - ou não.

Ou seja, descontando as piadinhas e os floreados, o básico da lenda está algures nas entrelinhas deste post que agora partilho:

Era uma vez uma princesa birmanesa giríssima que tinha andado num liceu de Cascais e tudo, e que estava à espera de bebé.

Apesar da gravidez avançada, a princesa insistiu em fazer um trekking na floresta encantada ao pé do palácio. Sim: floresta encantada. Isto passou-se Antigamente, e nessa altura havia florestas encantadas. Daquelas em que as árvores têm voz grossa e pegam nas pessoas com os ramos, quando estão zangadas; e os passarinhos e os esquilos falam, e as borboletas andam sempre à nossa volta a dançar. Depois veio o Walt Disney. E depois veio o Castelo Branco. Mas essas são outras histórias.

Continuando.

Ia a princesa mais as suas damas de companhia, guardas reais e bobos da corte, todos equipados a rigor com ténis nike (já havia nessa altura, eram super vintage), quando o passeio foi interrompido pelo assustador rugido de um leão. O grupo parou e estremeceu de medo: as damas de companhia rodearam a princesa para a proteger, os guardas reais rodearam as damas de companhia - e os bobos da corte esconderam-se atrás das árvores.

Silêncio.

E de repente: o leão.

Enorme, com ar ameaçador, diria que acabadinho de chegar de um documentário da National Geographic, mas isto foi Antigamente e nessa altura não havia televisão nem revistas. Só das côr-de-rosa.

Medo.

Nem os passarinhos cantavam - quanto mais os esquilos, que eram conhecidos por ser os mais medricas da floresta. Então o leão quebrou o gelo e tentou dizer alguma coisa, mas só de abrir a boca desatou toda a gente a fugir, cada um para seu canto, foi um salve-se-quem-puder como nunca se vira naquela floresta encantada, e no meio da confusão a princesa, coitadinha, sempre giríssima mas a tremer que nem varas verdes, ficou sozinha, grávida, a dar-lhe os vómitos com o susto, frente-a-frente com o rei da selva. Ainda levou a mão ao bolso, à procura do iphone para pedir auxílio; ou do spray de pimenta para se defender - mas isto passou-se Antigamente, não se esqueçam, e ainda não tinha sido inventado nem o iphone nem o spray de pimenta.

"Bom dia," disse-lhe o leão com uma discreta vénia.

Ela respondeu com um aceno da cabeça.

"Eu chou o rei da chelva, e tu?"

"Eu sou a princesa."

"Éja princheja? Princheja do quê?"

A princesa revirou os olhos:

"Sou a princesa do palácio ali ao fundo, aquele amoroso no topo da montanha."

Conversa puxa conversa, começaram a falar de fofoquices da realeza e o leão começou a simpatizar com a grávida princesa. Tinham tanto em comum: ambos eram de famílias reais... hmm... ok, só tinham isto em comum. Mas foi o suficiente para o leão se apaixonar. Era um romântico, este leão. E como estava a começar a chover, levou a princesa para a sua gruta e tomou conta dela nos meses seguintes. Trazia-lhe comida todos os dias, apesar dela ser esquisitíssima e só comer produtos gourmet; protegia-a dos perigos da floresta (aranhas, correntes de ar e outros)... e quase sem darem pelo tempo passar, nasceu o bebé.

Há quem diga que o leão era o verdadeiro pai da criança. As revistas (côr-de-rosa-vintage) da altura garantiam que na verdade "leão" não era o rei da selva, mas a alcunha de um sportinguista que vivera um tórrido romance com a princesa e a engravidara. Seja como for, a Birmânia recorda a história com um poderoso animal.

Nasceu o bebé, portanto.

Um rapagão gordo e rosado, que fez do leão um "pai" babado: passou a tomar conta do miúdo, afeiçoou-se a ele como se fosse seu filho, providenciava tudo do melhor para ele. O amor é cego. E possessivo, por vezes. Porque o leão não só os protegia dos perigos das aranhas e das correntes de ar, como os prendia na gruta. Estavam proibidos de sair.

Passaram-se alguns anos e o bebé cresceu. Já sabia fazer puzzles (antigos) e atrevia-se, de quando em vez, a completar um sudoku. Já desenhava algumas letras e fazia bem a pintinha dos iis. Estava na idade dos Porquês.

"Mamacita... sabes porque nosotros nos quedamos por aqui? Porque mi padre es un leon y no un hombre?"

Por razões misteriosas que nem a princesa sabia explicar, o filho falava em portunhol. O que era super-piroso.

"Ó querido, sente-se nesta pedra giríssima porque a mãe tem uma coisa para lhe contar. Você não é um rapaz normal, Bernardo."

O jovem Bernardo estremeceu.

"É que o seu pai não é este leão, e o seu avô (o meu pai) é um rei... mas não o rei da selva. É ele que manda neste reino todo, querido. Não acha o máximo?"

E com um movimento lento do braço cobriu todo o horizonte, enquanto pombas levantavam voo assustadas. Os olhos do miúdo brilharam.

"Que bien...", murmurou ele.

"A sua mãe é uma princesa, Bernardo! Não é uma tara? E você é um príncipe. Mas olhe, querido, ninguém sabe que estamos aqui na floresta encantada, que é giríssima mas tem imensas aranhas e correntes de ar, é nojenta. Ninguém lá no palácio do avô sabe que nós estamos aqui, como uns refugiados, super pobrezinhos e com moscas nas feridas e mais-não-sei-quê... ó Bernardo, eles pensam que o leão me comeu! Não é horrível?"

O que nem era de todo falso, segundo a imprensa côr-de-rosa.

"No te preocupes, mamacita," disse o menino no seu peculiar sotaque. "Yo já soi mui fuerte. Manhana nosotros vamos a fugir quando el leon va a buscar la comidita."

E assim foi. Na manhã seguinte o leão-das-beiras saiu para ir buscar comida, e a princesa-tia e o príncipe-portunhol fugiram pela floresta encantada fora. Nem as árvores os conseguiram agarrar, nem os passarinhos cantaram mil aventuras e coisas queridas, nem mais nada. E quando o leão voltou à gruta e percebeu que não estava ninguém, correu atrás deles desesperado, cheio de medo que algo de mal lhes acontecesse, algo ainda pior que uma aranha ou uma corrente de ar.

Quase os apanhou. Tinham acabado de atravessar o rio. O leão ficou do-lado-de-cá da margem, eles do-lado-de-lá. Desesperado, começou a rugir, como que convocando os deuses e os espíritos em que os leões acreditavam no Antigamente (os leões eram animais altamente espirituais, há muito-muito-tempo), mas de nada lhe serviu.

"No me sigas que te voy a matar," gritou o pequeno Bernardo do outro lado do rio.

O leão tentou entrar na água. Ao ver isto, o rapaz pegou num arco e começou a disparar flechas em direcção ao rei da selva. Mas o amor do leão era tão grande e tão puro, que as flechas imediatamente se transformaram em bananas e cocos - o que não impediu Bernardo de continuar a disparar, pois acreditava que ia conseguir matar o outro. Contudo, por muito que insistisse, todas as flechas se transformavam em oferendas - até que num brevíssimo instante de fraqueza, apenas uma fracção de segundo, o leão pensou para a sua juba "olha que mal-agradechido, o raio do rapaz" e imediatamente uma seta trespassou-lhe o coração.

A princesa-tia e o príncipe-portunhol continuaram a sua fuga e chegaram finalmente ao palácio. O rei morreria pouco tempo depois - mas feliz por reencontrar a família. À falta de um pai, Bernardo foi nomeado rei.

El-rei Dom Bernardo mais não sei quantos apelidos.

Mas este não é o final feliz da história: porque alguns anos volvidos da sua coroação, o rei D. Bernardo começou a ficar terrivelmente doente. Por muito que os seus curandeiros e médicos tentassem, não conseguiam curá-lo. Num dia de maior aflição até tentaram ligar para o 112, mas o telefone ainda não tinha sido inventado. É preciso ter azar. Até que uma mente iluminada lembrou-se dos dramáticos eventos ocorridos à beira-rio, uns anos antes.

Chegou-se à conclusão que o facto de D. Bernardo ter morto o leão - quem sabe, o próprio pai - tinha funcionado como uma terrível maldição. O rei precisava de obter o perdão do animal. Mas como, se este estava morto?

A tal mente iluminada disse então a el-rei:

"Se sua alteza desejar obter o perdão do leão, terá de mandar erguer uma estátua à entrada de um templo, e ir lá rezar e fazer oferendas todos os dias. E, já agora, este é o cartão do meu primo, que tem uma empresa que constrói estátuas de leão, ele faz bons preços."

E assim foi. O rei mandou fazer a primeira estátua, e mais outra, e mais outras. Tornou-se tradição, pôr leões à entrada dos templos. Depois tornou-se moda. E assim se tranformaram num símbolo de dedicação na protecção, os leões - não só contra aranhas e correntes de ar, mas todo o tipo de males espirituais e físicos.

1 comentário:

Clara Amorim disse...

Oh, sim! Com muita inspiração!!!