Ao princípio tudo nos pareceu muito fácil. Estabelecemos como meta uma
igreja algures no meio dos desfiladeiros, ou pelo menos assim fazia crer o
"mapa". E de acordo com a romântica/ingénua leitura que fizemos da branca
folha de papel, decidimos atravessar a Garganta del Diablo até à tal igreja, e
depois voltar pela estrada "principal", que também leva aspas porque
obviamente só é "principal" porque a alternativa são os trilhos. Não
pisámos alcatrão uma única vez ao longo da tarde - e ainda bem - e ao todo não
passaram por nós mais de meia dúzia de carros, na tal estrada "principal".
Começámos por achar estranho o facto de termos de atravessar
riachos. Tínhamo-nos convencido que isto ia ser um daqueles "passeios
saloios" para o turista que não tem nada melhor para fazer. Mas afinal a
coisa era um bocadinho mais radical.
Lá fomos, estrada "principal" afora,
descalçando-nos sempre que era preciso, atravessando a rir os tais riachos de
água gelada, tu já viste isto, afinal metemo-nos numa aventura e pêras... sempre
à procura da entrada do desfiladeiro.
Quando vimos a Garganta del Diablo, era óbvio demais para
haver confusões. Um pequeno trilho entalado entre rochas enormes, serpenteando
no meio de silenciosos desfiladeiros, ora mergulhado em sombra, ora a brilhar quente
com o terrível sol do deserto.
A primeira hora de pedaladas foi fértil em wows e amaaaazings. Parámos duzentas vezes para tirar fotografias,
rimo-nos de tão bonito que era o passeio... mas o calor começou a apertar e a
altitude depressa se fez notar. Um pouco de dores de cabeça. A respiração mais
pesada. O coração a bater mais rápido. Notámos que estávamos a beber água com
uma frequência pouco comum noutros passeios, cansávamo-nos mais depressa,
descansávamos com mais frequência.
Isto afinal não era só um "passeio saloio".
Fomos avançando pela paisagem adentro e à medida que da
Garganta passávamos para as Entranhas del Diablo ;) começámos também a desejar encontrar
depressa à igreja. Pelo "mapa", não devíamos estar longe. Mas depois
de uma curva vinha outra, e depois da outra mais uma - e nunca mais víamos o
nosso santo destino.
A água dentro da garrafa desceu ainda mais rápido que o sol
no horizonte, chegando a níveis pouco aconselháveis para quem não sabe o
caminho para casa. À medida que a tarde avançava e a temperatura descia, começámos
a ficar com pressa de sair dali - e se durante muito tempo não tivemos dúvidas
no caminho, pois era só seguir o desfiladeiro e as marcas das bicicletas - a
caso mudou de figura quando apareceram ramificações, desvios, becos sem saída. Vamos
por aqui, que tem mais marcas. Mas esta parece ser a principal, acho que vai
dar a algum lado. E esta? Deixa-me experimentar esta, espera aqui com as
bicicletas que eu vou ver a pé. Não: nada. Não vai dar a lado nenhum.
Está-se mesmo a ver, não é?
Perdemo-nos.
E o "mapa" já nem saía do bolso. Para quê.
Perdemo-nos. E não estou a falar de
"perdemo-nos-mas-na-boa-porque-se-formos-sempre-em-frente-vamos-ter-a-algum-lado.
Nada disso.
Perdemo-nos, senhoras e senhores: e estamos num deserto. Estamos
num lugar chamado Garganta del Diablo, que fica ao lado do Vale de la Muerte.
Não muito inspirador.
Tínhamos de encontrar uma saída depressa. O sol estava
prestes a desaparecer nas montanhas, a temperatura descia a olhos vistos...
tínhamos de sair daqui e não só porque tinha que ser, porque não queríamos
dormir no deserto... mas porque no dia seguinte era suposto estarmos à porta da
agência às sete da manhã, para apanharmos o jipe para a Bolívia.
E vá-se lá entender porquê, chamem-lhe preciosismos,
mariquices, manias: mas depois da desilusão matinal, não nos apetecia muito
desperdiçar mais um tour.
Ou seja: começámos a achar pouca piada ao facto de não
encontrarmos a porcaria da saída. Incrível: deixam os turistas vir para aqui e
isto não está minimamente preparado, e como é que nos deixámos perder assim, mas
isto é espectacular, já viste este trilho, e há bocado não viste um gajo ao
longe de bicicleta, onde é que ele está... enfim, os ânimos variavam muito rapidamente
entre o deslumbre e a frustração, entre a indignação e o "tira-me aí uma
fotografia com aquela pedra de fundo".
Delírio?
Nada disso: é mesmo qualquer coisa que não bate bem, aqui.
Mas continuando: tenho de confessar que o trilho era
espectacular. Mesmo tendo em conta as circunstâncias, o facto é que estávamos a
gozar o passeio. E logo agora, que íamos ligeiramente a descer e a altitude já não
pesava tanto com o esforço. Comecei a pedalar com mais força, a ganhar
velocidade, a deixar-me levar pelas curvas do trilho, as pequenas subidas e
descidas, as inclinações... parecia que estava numa montanha-russa comandada
pelas minhas pernas.
Fomos parar a uma espécie de vale, completamente inóspito,
manchado de sal e areia - continuávamos a não fazer ideia de onde estávamos. O
sol escondeu-se finalmente atrás das "arribas" e a temperatura desceu
ainda mais. Na minha cabeça passavam imagens de nós os dois sentados entre duas
rochas, um céu estrelado por cima, a beber o último quarto de litro de água, à
espera de ser resgatados... a sério que temi por um final desse calibre. E
tinha a certeza que, mais-volta-menos-volta, fosse-como-fosse que isto
acabasse, iríamos perder o jipe.
O Bunty entretanto ficara para trás - mas estava à vista,
ainda no início do tal vale. Eu pedalava a custo na areia cada vez mais macia.
Tinha visto umas árvores ao fundo e convenci-me que íamos encontrar alguém por
ali. Um pequeno oásis - tinha de haver alguém. Mas no auge desta espécie de
delírio ouvi um grito e o eco que se seguiu. Alguém a chamar-me. Parei a
bicicleta e olhei para trás: o Bunty estava estatelado no chão.
6 comentários:
Tá bonito, tá...! ;)
Bunty, é preciso chamar o INEM???
ENTÃO?!
Acabei de ler este relato e desculpa Jorge, mas acabei por me rir. Estou mesmo a imaginar tudo o que descreveste, e ainda bem que sei que já passou, mas não pude de deixar de sorrir quando escreveste que te viraste e que o Bunty estava estalado no chão.
O que mais irá acontecer .... .?
Gargantas a lembrar Petra e um "desnorte" quase parecido com a minha aventura na Amazónia Chilena (Puerto Maldonado), sózinho e 3 horas perdido e a contar a água, e os animais....
Perdão Chilena não, Peruana!
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