23/06/2013

LOST (NA GARGANTA DO DIABO)

Do centro da cidade pedalámos por ruas de terra batida até já não haver mais casas, e seguimos obedientemente na direcção que o "mapa" nos indicava - e se ponho aspas na palavra "mapa" é porque na verdade aquilo não passava de em esboço feito à pressa numa folha A4, e fotocopiado para turista ver.

Ao princípio tudo nos pareceu muito fácil. Estabelecemos como meta uma igreja algures no meio dos desfiladeiros, ou pelo menos assim fazia crer o "mapa". E de acordo com a romântica/ingénua leitura que fizemos da branca folha de papel, decidimos atravessar a Garganta del Diablo até à tal igreja, e depois voltar pela estrada "principal", que também leva aspas porque obviamente só é "principal" porque a alternativa são os trilhos. Não pisámos alcatrão uma única vez ao longo da tarde - e ainda bem - e ao todo não passaram por nós mais de meia dúzia de carros, na tal estrada "principal".

Começámos por achar estranho o facto de termos de atravessar riachos. Tínhamo-nos convencido que isto ia ser um daqueles "passeios saloios" para o turista que não tem nada melhor para fazer. Mas afinal a coisa era um bocadinho mais radical.



Lá fomos, estrada "principal" afora, descalçando-nos sempre que era preciso, atravessando a rir os tais riachos de água gelada, tu já viste isto, afinal metemo-nos numa aventura e pêras... sempre à procura da entrada do desfiladeiro.

Quando vimos a Garganta del Diablo, era óbvio demais para haver confusões. Um pequeno trilho entalado entre rochas enormes, serpenteando no meio de silenciosos desfiladeiros, ora mergulhado em sombra, ora a brilhar quente com o terrível sol do deserto.






A primeira hora de pedaladas foi fértil em wows e amaaaazings. Parámos duzentas vezes para tirar fotografias, rimo-nos de tão bonito que era o passeio... mas o calor começou a apertar e a altitude depressa se fez notar. Um pouco de dores de cabeça. A respiração mais pesada. O coração a bater mais rápido. Notámos que estávamos a beber água com uma frequência pouco comum noutros passeios, cansávamo-nos mais depressa, descansávamos com mais frequência.

Isto afinal não era só um "passeio saloio".

Fomos avançando pela paisagem adentro e à medida que da Garganta passávamos para as Entranhas del Diablo ;) começámos também a desejar encontrar depressa à igreja. Pelo "mapa", não devíamos estar longe. Mas depois de uma curva vinha outra, e depois da outra mais uma - e nunca mais víamos o nosso santo destino.

A água dentro da garrafa desceu ainda mais rápido que o sol no horizonte, chegando a níveis pouco aconselháveis para quem não sabe o caminho para casa. À medida que a tarde avançava e a temperatura descia, começámos a ficar com pressa de sair dali - e se durante muito tempo não tivemos dúvidas no caminho, pois era só seguir o desfiladeiro e as marcas das bicicletas - a caso mudou de figura quando apareceram ramificações, desvios, becos sem saída. Vamos por aqui, que tem mais marcas. Mas esta parece ser a principal, acho que vai dar a algum lado. E esta? Deixa-me experimentar esta, espera aqui com as bicicletas que eu vou ver a pé. Não: nada. Não vai dar a lado nenhum.

Está-se mesmo a ver, não é?

Perdemo-nos.

E o "mapa" já nem saía do bolso. Para quê.

Perdemo-nos. E não estou a falar de "perdemo-nos-mas-na-boa-porque-se-formos-sempre-em-frente-vamos-ter-a-algum-lado.

Nada disso.

Perdemo-nos, senhoras e senhores: e estamos num deserto. Estamos num lugar chamado Garganta del Diablo, que fica ao lado do Vale de la Muerte. Não muito inspirador.

Tínhamos de encontrar uma saída depressa. O sol estava prestes a desaparecer nas montanhas, a temperatura descia a olhos vistos... tínhamos de sair daqui e não só porque tinha que ser, porque não queríamos dormir no deserto... mas porque no dia seguinte era suposto estarmos à porta da agência às sete da manhã, para apanharmos o jipe para a Bolívia.

E vá-se lá entender porquê, chamem-lhe preciosismos, mariquices, manias: mas depois da desilusão matinal, não nos apetecia muito desperdiçar mais um tour.

Ou seja: começámos a achar pouca piada ao facto de não encontrarmos a porcaria da saída. Incrível: deixam os turistas vir para aqui e isto não está minimamente preparado, e como é que nos deixámos perder assim, mas isto é espectacular, já viste este trilho, e há bocado não viste um gajo ao longe de bicicleta, onde é que ele está... enfim, os ânimos variavam muito rapidamente entre o deslumbre e a frustração, entre a indignação e o "tira-me aí uma fotografia com aquela pedra de fundo".

Delírio?

Nada disso: é mesmo qualquer coisa que não bate bem, aqui.
a﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽sts um gajo ao longe de bicicleta, onde a temperatura descia a olhos vistos... to do Vale de la Muerte. N

Mas continuando: tenho de confessar que o trilho era espectacular. Mesmo tendo em conta as circunstâncias, o facto é que estávamos a gozar o passeio. E logo agora, que íamos ligeiramente a descer e a altitude já não pesava tanto com o esforço. Comecei a pedalar com mais força, a ganhar velocidade, a deixar-me levar pelas curvas do trilho, as pequenas subidas e descidas, as inclinações... parecia que estava numa montanha-russa comandada pelas minhas pernas.


Fomos parar a uma espécie de vale, completamente inóspito, manchado de sal e areia - continuávamos a não fazer ideia de onde estávamos. O sol escondeu-se finalmente atrás das "arribas" e a temperatura desceu ainda mais. Na minha cabeça passavam imagens de nós os dois sentados entre duas rochas, um céu estrelado por cima, a beber o último quarto de litro de água, à espera de ser resgatados... a sério que temi por um final desse calibre. E tinha a certeza que, mais-volta-menos-volta, fosse-como-fosse que isto acabasse, iríamos perder o jipe.

O Bunty entretanto ficara para trás - mas estava à vista, ainda no início do tal vale. Eu pedalava a custo na areia cada vez mais macia. Tinha visto umas árvores ao fundo e convenci-me que íamos encontrar alguém por ali. Um pequeno oásis - tinha de haver alguém. Mas no auge desta espécie de delírio ouvi um grito e o eco que se seguiu. Alguém a chamar-me. Parei a bicicleta e olhei para trás: o Bunty estava estatelado no chão.

6 comentários:

Clara Amorim disse...

Tá bonito, tá...! ;)

Clara Amorim disse...

Bunty, é preciso chamar o INEM???

Anónimo disse...

ENTÃO?!

Lv disse...

Acabei de ler este relato e desculpa Jorge, mas acabei por me rir. Estou mesmo a imaginar tudo o que descreveste, e ainda bem que sei que já passou, mas não pude de deixar de sorrir quando escreveste que te viraste e que o Bunty estava estalado no chão.
O que mais irá acontecer .... .?

kyta disse...

Gargantas a lembrar Petra e um "desnorte" quase parecido com a minha aventura na Amazónia Chilena (Puerto Maldonado), sózinho e 3 horas perdido e a contar a água, e os animais....

kyta disse...

Perdão Chilena não, Peruana!