Saímos de Santiago ao fim da tarde e aos poucos anoiteceu, a
paisagem do lado de fora acompanhada por uma banda sonora de explosões e tiros
e gritos de socorro, tudo dobrado em espanhol, não se compreende como passam
filmes tão violentos no autocarro, bem que podiam optar por um programa mais
familiar. Claro está que o resultado foi uma criancinha que passou o tempo a
uivar - peço desculpa, mas não posso chamar de "choro" ao som que
emitia - e uma ameaça de dor-de-cabeça que só não se concretizou porque investi
logo nuns comprimidos mágicos.
Adormeci, portanto.
Dormi como poucas vezes durmo - de tal forma que, a meio da
noite, o autocarro parou algures na escuridão e assim ficou, imóvel no meio de
nada, ou assim quero acreditar, já não sei o que foi sonho, o que foi real. Sei
que entrou um esquadrão armado, tenho a certeza apesar de estar meio-a-dormir,
lembro-me de ver as suas fardas com umas iniciais tipo FBI. Entraram autocarro
adentro, fizeram a ronda ao corredor, para-a-frente-e-para-trás, saíram, voltaram
a entrar, não sei quantas vezes isto aconteceu... mas aconteceu. O Bunty nem
deu por nada, de manhã teimou que foi um sonho - mas eu sei que foi real. Principalmente a parte em que um OVNI aterrou mesmo à frente do autocarro, e os bichos verdes que saíram lá de dentro comeram de uma só vez os senhores do FBI.
Acordei a meio da noite, aterrorizado com um pesadelo que
afinal não era um pesadelo. O passageiro atrás de mim emitia sons
inexplicáveis, algures entre o grunhido, o vómito e o guinchar de um porco na
matança. Claro que não consegui dormir durante muito tempo - o Bunty, por sua
vez, ressonava baixinho, viajando em sonhos.
E quando finalmente voltei a adormecer, foi até de manhã.
Acordei com o beijo quente do sol no meu rosto e quando abri os olhos fiquei
incadeado com o azul do céu. Lá fora: pouco mais que rochas e terra. À nossa
volta, deserto. Uma paisagem triste e monótona, mas com qualquer coisa de
mágico, que apetece registar.
A quebrar a monotonia surgiam junto à estrada pequenos templos e campas,
rodeados de crucifixos, matrículas de carros, ramos de flores. Homenagens
modestas aos que morreram ao volante, pressuponho. Também vi a estátua de uma
mão, parecida com aquela que vi em Punta del Este, no Uruguai. Passámos por
algumas fábricas e muitos camiões, pequenas aldeias no meio do nada - mas acima
de tudo, um imenso vazio a caminho de alguma coisa.
Quando chegámos ao Pacífico, juro que senti a maresia a entrar
pelo ar condicionado. O postal à nossa volta ganhou logo outra frescura, e
apesar da cidade ser feia, tinha "qualquer coisa". Achei curioso a
quantidade de sinais de "tsunami - zona segura" na parte alta da
cidade, mas tendo em conta a quantidade de sismos que há nesta zona, com
certeza que tsunamis não serão assim tão raros...
Depois de uma paragem estratégica para largar passageiros e
carregar outros, em que aproveitámos para comprar almoço, prosseguimos viagem
para Calama, no interior do país, a caminho de Santiago. A paisagem não mudou
muito, o Pacífico ficou para trás - e a chegada a esse primeiro destino foi uma
experiência quase surreal. Logo à entrada e no pequeno percurso até ao
terminal, vimos lado-a-lado casinos e igrejas, centros comerciais e uma feira
popular, um templo chinês e uma tenda de circo, escolas de línguas, agências de
viagens e bares.
Comprámos logo um bilhete para o próximo autocarro para San
Pedro - não tínhamos grande interesse em explorar Calama - e por isso nem
saímos da estação. Sentámo-nos a comer, à conversa, a queimar tempo, até que
chegou o nosso transporte e voltámos à estrada.
Foram quase vinte e oito horas de viagem, entre a capital
chilena e o destino final. Chegámos a San Pedro de Atacama ao fim da tarde, já
o sol descia no horizonte, já as cores do deserto gritavam por fotografias.
Fez-me lembrar, de certa forma, a Capadócia. A chegada a Goreme é mais ou menos
do mesmo calibre.
Mesmo antes de chegarmos, a senhora sentada ao nosso lado
deixou o tricot de parte e meteu conversa. Em cinco minutos contou-nos a sua
história de vida, e pelo meio desafiou-nos a vir espreitar a sua guesthouse, ou
do ex-marido, ou dos filhos, não percebi muito bem.
Lá fomos com ela a coxear à nossa frente, por ruas de terra
batida, entre muros de adobe e muitas árvores, o sol já fora dormir e à medida
que escurecia, ficava cada vez mais frio. Acabámos por ficar na guesthouse da
senhora, apesar de não ser muito conveniente para nós. O lugar era muito giro,
mas ficava longe do centro e não tinha internet. Nós precisamos de internet.
Decidimos ficar uma noite e procurar outro lugar de manhã.
E quando saímos para jantar, apaixonámo-nos imediatamente
pela vila. Muito castiça, toda em lama e pedra e palha, com restaurantes muito
giros, velas acesas por todo o lado, gente na rua a passear, as estradas em
terra batida ou empedrado, parecia que estava num antigo filme mexicano.
4 comentários:
Fico a aguardar que a promessa se cumpra.
É um prazer lê-lo!
Como uma empanada, que são tão boas...
Promessa mágica, sem dúvida!
Depois de andar 26 horas de autocarro chegar a um sítio destes, isso sim é mágico. A ver vamos o que se segue ...
Bem vindos a Atacama....
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