Tinha três lugares vagos - nós éramos quase quarenta
pessoas.
Isto vai demorar.
Qual Titanic encalhado no Atlântico, também nos Alpes,
durante o resgate dos passageiros do El Rapido, salvaram-se primeiro as
mulheres e as crianças. Vinte minutos depois, havia mais quatro vagas num
segundo autocarro e seguiram mais alguns. Mas se o salvamento continuasse a
este ritmo, quase que podia garantir que íamos passar a noite na montanha.
Felizmente, à terceira foi de vez: o autocarro seguinte vinha
quase vazio, e todos os passageiros "em terra" puderam finalmente
prosseguir viagem. Redistribuimo-nos nos bancos disponíveis e respirámos fundo,
sorrindo uns para os outros - mas quem não ia nada sorridente era o rapaz sentado
ao meu lado. Parecia ausente, quando me sentei e disse "bom dia", e
reparei que estava nervoso.
Só me apercebi das razões do nervosismo quando os guardas
passaram as mochilas pelo raio X, na alfândega - e perguntaram "de quem é
esta". Era do rapaz sentado ao meu lado.
Tínhamos demorado meia hora na fila para carimbar os
passaportes, à saída da Argentina, mais cinco minutos para dar entrada no
Chile. E como já estávamos à espera dos "filmes" com os produtos
proibidos no país (lembram-se do "drama" na primeira vez que
atravessámos a fronteira do Chile, há um mês atrás, na Patagónia?), desta vez
não trazíamos comida nenhuma. Mas o rapaz sentado ao meu lado trazia. Enquanto
esperávamos com os outros passageiros, todos em fila, que os cães cheirassem a
nossa bagagem de mão, assistimos à cena que se ia desenrolando junto à máquina
do raio X. Mandaram o rapaz abrir a mochila - e pouco depois os agentes da
alfândega estavam a tirar lá de dentro caixas disto e daquilo, nem consegui
perceber o quê, mas eram às dezenas de cada "qualidade".
Eu vinha sentado ao lado de um traficante.
Mandaram-nos subir para o autocarro, e durante quase uma
hora não avançámos um centímetro. Eu e o Bunty começámos a imaginar cenários de
um autêntico filme de acção, com perseguições, pancadaria, muitos tiros e
explosões. Imaginámos banda sonora e discursos patrióticos, juras de vingança
eterna, romances tórridos, suspense - e até monstros e efeitos especiais vários.
Mas o rapaz voltou para o autocarro, com um papel amarelo na
mão e cara de poucos amigos. Voltámos à estrada e enquanto descíamos em
ziguezague a montanha, rodeados de gigantescas máquinas, muito pó e capacetes
amarelos, sentimos os ouvidos estalar e fizemos as contas ao atraso. Já devíamos
ter chegado a Santiago.
O meu amigo Rodrigo, um chileno com quem viajara há dez anos
e que me visitou em Portugal há cinco, esperava-nos na estação. Só voltei a ter
rede no final da descida e pude então ligar-lhe, a avisar do atraso.
"Estou aqui à vossa espera, não faz mal. Despachem-se lá que temos uns Casillero del Diablo à espera, em casa!"
3 comentários:
Ora bem... Com cenas destas em plenos Andes, quem precisa de episódios de Game of Thrones?!!!
Quanto aos Casillero del Diablo... Não sei o que é, mas o nome promete! ;)
Casillero del Diablo... Excelente Vinho da casta Cabernet Saivignom...Boa pomada! Olha depois do Traficante lateral, bebe uma por mim! Salute!
Emocionante e intrigante quanto ao Casillero, mas acima encontrei a explicação...
Boa viagem, boa reportagem!
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