04/11/2013

ROUBADO!


Escrito assim - a seco, um título de uma só palavra e ponto de exclamação, sem nenhuma contextualização ou paisagem - até parece um daqueles livros-testemunho em que uma inocente europeia se apaixona por um muçulmano, acabando escravizada algures muito longe de casa.

A história que tenho para lembrar também tem o seu lado dramático. E é real. Passou-se na Índia, há dez anos, na véspera do meu primeiro Diwali - e explica o facto de não ter uma única fotografia deste evento supostamente auspicioso.

Depois de quase um mês a viajar com três amigos, estava prestes a ficar on my own na Índia. O Diogo foi o primeiro a ir embora, a seguir a visitarmos o Taj Mahal; os outros ainda ficaram para conhecer Gwalior, Khajuraho... e Varanasi.

Foi no regresso a Jaipur, num comboio superfast que demorou vinte e quatro horas para percorrer não-sei-quantos quilómetros... quantos são, de Varanasi à capital do Rajastão? Não sei. É uma noite e um dia. Nunca hei-de esquecer.

O drama começou ainda em Varanasi, na plataforma em que o comboio estava parado. Oito da noite, tudo às escuras, faltava meia hora para partir, tanta gente a entrar e a sair. E nós à procura da carruagem que vinha indicada nos bilhetes.

"É esta!"

Entrámos, apesar das luzes continuarem apagadas - achámos estranho mas "estamos na Índia", "tudo é possível", as desculpas do costume. Sentámo-nos onde o bilhete mandava sentar, arrumámos as mochilas grandes debaixo dos beliches e as pequenas no upper sleeper, junto às ventoinhas do tecto, quem já viajou num comboio indiano conhece esta geografia.

Enquanto a confusão reinava no corredor às escuras, do lado de fora apareceu um miúdo a fazer caretas, oito ou nove anos muito fotogénicos, e nós nem um mês de Índia... que ingénuos. O Gonçalo começou a tirar-lhe fotografias, eu e o Manel só a ver e a rir das palhaçadas - e nem demos pelo tempo a passar, foram cinco, foram dez minutos, foi o tempo suficiente. Quando as luzes se acenderam, o comboio começou a andar; o miúdo ficou para trás e nós partilhámos os últimos sorrisos da noite.

Últimos: porque nesse exacto momento olhei para cima do beliche, para a cama mais alta, onde tinha guardado a mochila... mas não a vi. Levantei-me calmamente para ver se estava arrumada mais para trás... e eis que o coração inchou para o triplo do tamanho, o ritmo cardíaco disparou, por momentos faltou-me o ar e o chão e o mundo todo à minha volta. A mochila tinha desaparecido. Procurei onde era lógico procurar, fiz saber do sucedido e quando percebi o que se tinha passado, o sangue gelou: fora roubado!

As caretas e as palhaçadas - que estúpidos! Enquanto ríamos da distracção lá fora, alguém passou por trás, camuflado na confusão de escuro e gente e cheiros... caímos que-nem-patos!

Máquina fotográfica e alguma roupa, felizmente o passaporte e cartões estavam comigo. Alguns livros, coisas práticas... e o meu diário de viagem! Nem queria acreditar: o caderno onde tinha escrito a "crónica dos 100 dias", onde fazia um balanço dos primeiros três meses a viajar sozinho pelo mundo.

Arranquei disparado pelo comboio fora, por corredores e carruagens, à procura de um polícia, funcionários do comboio - alguém minimamente fardado a quem me pudesse queixar. Encontrei quatro polícias a dormir, deitados como se o mundo fosse perfeito e a sua profissão e funções um capricho social sem lógica, sem razão de ser. Tentei explicar-me, falavam mal inglês mas não tiveram alternativa senão entender-me. Fui roubado! Acompanharam-me ao local do crime, dois deles. Ouviram o relato mais três ou quatro vezes, inspeccionaram o que eu já tinha inspeccionado e desistiram quase imediatamente. Disseram-me para apresentar queixa na esquadra, quando chegássemos a Jaipur. E voltaram para as suas camas.

Será preciso descrever o meu estado de espírito nas seguintes vinte e quatro horas? Acho que dispenso as palavras, até porque algumas poderiam chocar os leitores mais sensíveis.

Mas só para dar uma ideia, passo a lembrar um momento que diz-tudo:

Passou-se a noite, não-sei-como mas acabei por dormir. Passou-se a manhã e meia-Índia pela janela, almoçámos - e ao princípio da tarde o Manel levantou-se para ir fumar um cigarro à porta da carruagem. Pouco depois dele se ter levantado, decidi acompanhá-lo (sou fumador por sugestão, é uma chatice) e fui também para perto da porta. "Cravei-lhe" um Gold Flake, pedi o isqueiro emprestado, estava um "pica" presente, a mostrar serviço, depois do "serviço" feito. Enfim.

Fumei meio-cigarro a ver a paisagem passar, e já quase no fim o "pica" resolveu, sabe-se lá por que lógica ou raciocínio, avisar-me que era proibido fumar. Tinha-me visto a acender o cigarro, fumei-o quase todo na sua presença... mas só na fase final é que disse alguma coisa. Apontou para uns gatafunhos em hindi e disse-me em inglês: "no smoking".

Quem sou eu para fazer frente à autoridade - por muito revoltado que estivesse, naquele dia. Pedi desculpa, atirei o cigarro borda fora, está resolvido o assunto. Pensava eu. Porque apesar de um silêncio de trinta segundos, um minuto, dois... subitamente o agente da (in)segurança encheu-se de coragem e voltou a apontar para o misterioso stencil na parede, o único sem tradução em inglês, e repetiu sem emoção:

"No smoking."

Sim, eu ouvi à primeira. E apaguei o cigarro. Quer o quê, este-agora?

"One hundred rupees."

"What?"

"One hundred rupees. Fine for smoking."

Mas ó amigo: viste-me a acender o cigarro e não disseste nada. Fumei-o à tua frente e não disseste nada. E quando estava quase a apagá-lo, de repente lembraste-te que, dos quatro ou cinco avisos escritos na parede da carruagem, o único não-traduzido para inglês queria dizer "no smoking"... hmmmm... algo aqui não bate certo.

"One hundred rupees", era só o que sabia dizer.

Irritado, apontei para um aviso em hindi. E depois para a tradução em inglês. E repeti o gesto para todos os avisos:

"Hindi. English. Hindi. English. Hindi. English. This one hindi... no english. Why?"

"One hundred rupees."

O momento que se segue está hoje, passado dez anos, envolto em incertezas e romance. Já contei que rasguei a nota, que a atirei pela porta, que a guardei de novo no bolso. Na verdade não me recordo ao certo do que fiz, estava tão irritado que não me lembro. Mas de uma coisa tenho a certeza: tirei uma nota do bolso - uma nota de cem rupias, um Gandhi azul a sorrir numa paisagem azul - e estiquei-a em frente aos olhos do corrupto que me tentava roubar:

"Estás a ver estas cem rupias? Estas não as vais pôr ao bolso. Roubaram-me uma vez neste comboio, não me roubam segunda. Vai chamar o teu chefe, ele que me venha cá pedir as cem rupias."

E lá está: rasguei a nota, atirei-a porta fora, enfiei-a de novo no bolso. Não me lembro. Mas não a dei ao polícia, disso sei eu. Ele saiu nervoso pelo corredor e nunca mais voltou, claro está, nem com chefe nem com reforços nem nada. Este estrangeiro não está para brincadeiras, é melhor não levantar ondas.

As vinte e quatro horas arrastaram-se naquilo que me pareceram vinte e quatro vidas. Mas chegámos a Jaipur, como tinha-de-ser. Eram quase nove da noite e apesar de cansados fomos directamente para a esquadra junto à estação. O hotel podia esperar.

E aqui começou outro drama: preencher a declaração. Tudo feito à mão, claro. Em inglês e hindi. Todos os meus dados, do nome à profissão, da morada à idade, nacionalidade, passaporte, visto, nome do meu pai, qual a minha casta...

"Casta? Não temos castas, no meu país."

Mas isso não fazia sentido, para o oficial em serviço. Eu tinha que ter casta. Expliquei-lhe que só na Índia é que funcionava este esquema, que na Europa o conceito era inconcebível... mas ele insitia: a casta, qual é a sua casta, tem que ter casta, ou pelo menos o seu pai... ok: qual a profissão do seu pai?

Já tenho casta.

Depois dos dados (só faltou dar o nome e a raça do meu cão, a cor do piriquito e que alpista lhe dou), a descrição detalhada dos eventos. E a lista de tudo o que estava na mochila. E os dados e contactos das testemunhas... foram três ou quatro páginas de tempo perdido, isto não vai dar em nada, isto não deu em nada, passaram-se dez anos e nunca deu em nada. Todos os pormenores traduzidos em duas línguas, e:

"O melhor é ir para o seu hotel agora, volte amanhã de manhã porque temos de fazer duplicado e triplicado" e sabe-se lá quantas cópias... tudo à mão.

Obedeci. No dia seguinte, o Manel e o Gonçalo foram embora para Bombaim, de onde voaram para Lisboa. Eu fui buscar a declaração, três páginas cosidas com um cordel - tenho-a guardada como recordação, é um tesouro de viagem, um dia destes partilho-a aqui.

Nunca mais vi o conteúdo daquela mochila. Só alguns dias depois comprei uma máquina descartável - e os únicos registos fotográficos que tenho do segundo mês na Índia são as poucas (e más) fotografias que fiz com essa máquina.

E voltando ao tema que serviu de mote para este post: do que não tenho fotografias, mas que guardo memória com carinho e nostalgia, foi o meu primeiro Diwali. Nesse dia em que os meus amigos foram embora, celebrava-se o Festival das Luzes na Índia. O Ishaak, que fora o nosso driver nas voltas pelo Rajastão, levou-me a dar uma volta de mota pelos arredores da cidade. Atravessámos bairros e aldeias iluminados com velas acesas nos parapeitos das janelas, e no chão e por todo o lado onde fosse possível acender uma vela. Luzinhas de árvore de Natal a piscar (sem árvore), gente a rebentar foguetes e a lançar fogo-de-artifício. Parecia um presépio vivo, mas a celebrar o Ano Novo, e foi um dos momentos mais bonitos que vivi. Parámos em casa de um amigo do Ishaak, entrámos e a família recebeu-nos com sorrisos e doces. Depois voltámos para o centro, decorado a rigor, cheio de gente a festejar - não tenho uma única foto dessa noite, mas guardo-a religiosamente na memória. Basta assim, pelos vistos.

3 comentários:

LV disse...

Lembro-me bem deste episódio há 10 anos atrás. Que viagem atribulada. Deve ser uma sensação horrível.

E esta não foi a única vez, tb na India (???) perdeste ou roubaram-te o passaporte, lembras-te?

E outra vez tb na India (????) perdeste o telemóvel no tuktuk.

Clara Amorim disse...

Bem, esta é uma Senhora Crónica!!!
Como sempre, muitíssimo bem escrita e com um sentido de humor apuradíssimo...!
Esta, e muitas outras, ainda vão ter livro um dia!!!
Parabéns, Jorge!

kyta disse...

Que viagem atribulada!