Escrito assim - a seco, um título de uma só palavra e ponto de exclamação, sem
nenhuma contextualização ou paisagem - até parece um daqueles livros-testemunho
em que uma inocente europeia se apaixona por um muçulmano, acabando escravizada
algures muito longe de casa.
A história que tenho para lembrar também tem o seu lado
dramático. E é real. Passou-se na Índia, há dez anos, na véspera do meu
primeiro Diwali - e explica o facto de não ter uma única fotografia deste
evento supostamente auspicioso.
Depois de quase um mês a viajar com três amigos,
estava prestes a ficar on my own na Índia. O Diogo foi o primeiro a ir
embora, a seguir a visitarmos o Taj Mahal; os outros ainda ficaram para
conhecer Gwalior, Khajuraho... e Varanasi.
Foi no regresso a Jaipur, num comboio superfast que demorou vinte e
quatro horas para percorrer não-sei-quantos quilómetros... quantos são, de
Varanasi à capital do Rajastão? Não sei. É uma noite e um dia. Nunca hei-de
esquecer.
O drama começou ainda em Varanasi, na plataforma em que o comboio
estava parado. Oito da noite, tudo às escuras, faltava meia hora para partir, tanta
gente a entrar e a sair. E nós à procura da carruagem que vinha indicada nos
bilhetes.
"É esta!"
Entrámos, apesar das luzes continuarem apagadas - achámos estranho
mas "estamos na Índia", "tudo é possível", as desculpas do
costume. Sentámo-nos onde o bilhete mandava sentar, arrumámos as mochilas
grandes debaixo dos beliches e as pequenas no upper sleeper, junto às ventoinhas do
tecto, quem já viajou num comboio indiano conhece esta geografia.
Enquanto a confusão reinava no corredor às escuras, do
lado de fora apareceu um miúdo a fazer caretas, oito ou nove anos muito
fotogénicos, e nós nem um mês de Índia... que ingénuos. O Gonçalo começou a
tirar-lhe fotografias, eu e o Manel só a ver e a rir das palhaçadas - e nem
demos pelo tempo a passar, foram cinco, foram dez minutos, foi o tempo
suficiente. Quando as luzes se acenderam, o comboio começou a andar; o
miúdo ficou para trás e nós partilhámos os últimos sorrisos da noite.
Últimos: porque nesse exacto momento olhei para cima do
beliche, para a cama mais alta, onde tinha guardado a mochila... mas não a vi. Levantei-me calmamente para ver
se estava arrumada mais para trás... e eis que o coração inchou para o triplo do
tamanho, o ritmo cardíaco disparou, por momentos faltou-me o ar e o chão e o
mundo todo à minha volta. A mochila tinha desaparecido. Procurei onde era lógico procurar, fiz saber do
sucedido e quando percebi o que se tinha passado, o sangue gelou: fora roubado!
As caretas e as palhaçadas - que estúpidos! Enquanto ríamos da distracção lá fora, alguém passou por trás,
camuflado na confusão de escuro e gente e cheiros... caímos que-nem-patos!
Máquina fotográfica e alguma roupa, felizmente o passaporte
e cartões estavam comigo. Alguns livros, coisas práticas... e o meu diário de
viagem! Nem queria acreditar: o caderno onde tinha escrito a "crónica dos
100 dias", onde fazia um balanço dos primeiros três meses a viajar sozinho
pelo mundo.
Arranquei disparado pelo comboio fora, por corredores e carruagens, à procura de um
polícia, funcionários do comboio - alguém minimamente fardado a quem me pudesse
queixar. Encontrei quatro polícias a dormir, deitados como se o mundo fosse
perfeito e a sua profissão e funções um capricho social sem lógica, sem razão de ser. Tentei explicar-me,
falavam mal inglês mas não tiveram alternativa senão entender-me. Fui roubado! Acompanharam-me ao local
do crime, dois deles. Ouviram o relato mais três ou quatro vezes, inspeccionaram o que eu já tinha
inspeccionado e desistiram quase imediatamente. Disseram-me para apresentar queixa na esquadra, quando
chegássemos a Jaipur. E voltaram para as suas camas.
Será preciso descrever o meu estado de espírito nas
seguintes vinte e quatro horas? Acho que dispenso as palavras,
até porque algumas poderiam chocar os leitores mais sensíveis.
Mas só para dar uma ideia, passo a lembrar um momento que
diz-tudo:
Passou-se a noite, não-sei-como mas acabei por dormir.
Passou-se a manhã e meia-Índia pela janela, almoçámos - e ao princípio da tarde
o Manel levantou-se para ir fumar um cigarro à porta da carruagem. Pouco depois
dele se ter levantado, decidi acompanhá-lo (sou fumador por sugestão, é uma
chatice) e fui também para perto da porta. "Cravei-lhe" um Gold Flake, pedi o isqueiro emprestado, estava um "pica" presente, a
mostrar serviço, depois do "serviço" feito. Enfim.
Fumei meio-cigarro a ver a paisagem passar, e já quase no
fim o "pica" resolveu, sabe-se lá por que lógica ou raciocínio, avisar-me que
era proibido fumar. Tinha-me visto a acender o cigarro, fumei-o quase todo na
sua presença... mas só na fase final é que disse alguma coisa. Apontou para uns
gatafunhos em hindi e disse-me em inglês: "no smoking".
Quem sou eu para fazer frente à autoridade - por muito
revoltado que estivesse, naquele dia. Pedi desculpa, atirei o cigarro borda
fora, está resolvido o assunto. Pensava eu. Porque apesar de um silêncio de
trinta segundos, um minuto, dois... subitamente o agente da (in)segurança
encheu-se de coragem e voltou a apontar para o misterioso stencil na parede, o
único sem tradução em inglês, e repetiu sem emoção:
"No smoking."
Sim, eu ouvi à primeira. E apaguei o cigarro. Quer o quê,
este-agora?
"One hundred rupees."
"What?"
"One hundred rupees. Fine for smoking."
Mas ó amigo: viste-me a acender o cigarro e não disseste
nada. Fumei-o à tua frente e não disseste nada. E quando estava quase a
apagá-lo, de repente lembraste-te que, dos quatro ou cinco avisos escritos na
parede da carruagem, o único não-traduzido para inglês queria dizer "no
smoking"... hmmmm... algo aqui não bate certo.
"One hundred rupees", era só o que sabia dizer.
Irritado, apontei para um aviso em hindi. E depois para a
tradução em inglês. E repeti o gesto para todos os avisos:
"Hindi. English. Hindi. English. Hindi. English. This
one hindi... no english. Why?"
"One hundred rupees."
O momento que se segue está hoje, passado dez anos, envolto em incertezas e romance. Já contei que
rasguei a nota, que a atirei pela porta, que a guardei de novo no bolso. Na
verdade não me recordo ao certo do que fiz, estava tão irritado que não me lembro. Mas de uma coisa tenho a certeza: tirei uma nota do bolso - uma nota de
cem rupias, um Gandhi azul a sorrir numa paisagem azul - e estiquei-a em frente
aos olhos do corrupto que me tentava roubar:
"Estás a ver estas cem rupias? Estas não as vais pôr ao
bolso. Roubaram-me uma vez neste comboio, não me roubam segunda. Vai chamar o teu chefe, ele que me venha cá pedir as cem rupias."
E lá está: rasguei a nota, atirei-a porta fora, enfiei-a de
novo no bolso. Não me lembro. Mas não a dei ao polícia, disso sei eu. Ele saiu nervoso pelo
corredor e nunca mais voltou, claro está, nem com chefe nem com reforços nem
nada. Este estrangeiro não está para brincadeiras, é melhor não levantar ondas.
As vinte e quatro horas arrastaram-se naquilo que me
pareceram vinte e quatro vidas. Mas chegámos a Jaipur, como tinha-de-ser. Eram quase nove da noite e apesar de cansados fomos directamente para a esquadra junto à
estação. O hotel podia esperar.
E aqui começou outro drama: preencher a declaração. Tudo
feito à mão, claro. Em inglês e hindi. Todos os meus dados, do nome à
profissão, da morada à idade, nacionalidade, passaporte, visto, nome do meu pai, qual a minha
casta...
"Casta? Não temos castas, no meu país."
Mas isso não fazia sentido, para o oficial em serviço. Eu
tinha que ter casta. Expliquei-lhe que só na Índia é que funcionava este esquema, que
na Europa o conceito era inconcebível... mas ele insitia: a casta, qual é a sua casta, tem que ter casta, ou pelo menos o seu pai... ok: qual a profissão do seu
pai?
Já tenho casta.
Depois dos dados (só faltou dar o nome e a raça do meu cão, a cor do piriquito e que alpista lhe dou), a descrição detalhada dos eventos. E a
lista de tudo o que estava na mochila. E os dados e contactos das
testemunhas... foram três ou quatro páginas de tempo perdido, isto não vai dar em nada, isto não deu em nada, passaram-se dez anos e nunca deu em nada. Todos os
pormenores traduzidos em duas línguas, e:
"O melhor é ir para o seu hotel agora, volte amanhã de
manhã porque temos de fazer duplicado e triplicado" e sabe-se lá quantas
cópias... tudo à mão.
Obedeci. No dia seguinte, o Manel e o Gonçalo
foram embora para Bombaim, de onde voaram para Lisboa. Eu fui buscar a
declaração, três páginas cosidas com um cordel - tenho-a guardada como
recordação, é um tesouro de viagem, um dia destes partilho-a aqui.
Nunca mais vi o conteúdo daquela mochila. Só alguns dias
depois comprei uma máquina descartável - e os únicos registos fotográficos que
tenho do segundo mês na Índia são as poucas (e más) fotografias que fiz com essa máquina.
E voltando ao tema que serviu de mote para este post: do que não tenho fotografias, mas que guardo memória com
carinho e nostalgia, foi o meu primeiro Diwali. Nesse dia em que os meus amigos
foram embora, celebrava-se o Festival das Luzes na Índia. O Ishaak, que fora o
nosso driver nas voltas pelo
Rajastão, levou-me a dar uma volta de mota pelos arredores da cidade.
Atravessámos bairros e aldeias iluminados com velas acesas nos parapeitos das
janelas, e no chão e por todo o lado onde fosse possível acender uma vela.
Luzinhas de árvore de Natal a piscar (sem árvore), gente a rebentar foguetes e a
lançar fogo-de-artifício. Parecia um presépio vivo, mas a celebrar o Ano Novo,
e foi um dos momentos mais bonitos que vivi. Parámos em casa de um amigo do Ishaak,
entrámos e a família recebeu-nos com sorrisos e doces. Depois voltámos para o
centro, decorado a rigor, cheio de gente a festejar - não tenho uma única
foto dessa noite, mas guardo-a religiosamente na memória. Basta assim, pelos vistos.
3 comentários:
Lembro-me bem deste episódio há 10 anos atrás. Que viagem atribulada. Deve ser uma sensação horrível.
E esta não foi a única vez, tb na India (???) perdeste ou roubaram-te o passaporte, lembras-te?
E outra vez tb na India (????) perdeste o telemóvel no tuktuk.
Bem, esta é uma Senhora Crónica!!!
Como sempre, muitíssimo bem escrita e com um sentido de humor apuradíssimo...!
Esta, e muitas outras, ainda vão ter livro um dia!!!
Parabéns, Jorge!
Que viagem atribulada!
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