Levanto-me da cama, onde é que eu estou, que quarto é este, em
dois saltos estou como-que-por-magia junto a uma porta. E abro-a. Do lado de
fora, à minha frente: duas raparigas com traços asiáticos, mas claramente de
alguma ex-república soviética. Muito giras, as duas. Onde é que eu estou. Uma
delas não pára de sorrir, a outra esforça um "wrong number" e diz
numa língua que não reconheço, para a amiga, que não é ali, que o número está
errado, deve ser isso.
Eu: ainda a voltar ao planeta, pergunto o que se passa, elas
trocam impressões uma com a outra e quando estão prestes a ir embora oiço uma
voz rouca chamá-las de dentro do quarto.
Elas sorriem:
"Papá?"
Viro-me para trás e vejo um velhote a levantar-se e a rir, a
dizer qualquer coisa em estrangeiro, às miúdas. É o meu companheiro de quarto.
Deve ter uns setenta anos, é do Cazaquistão, vai para Pequim de férias com a
mulher e as filhas. E estas duas do lado de fora: devem ser as filhas.
"Muito giras", digo-lhe quando fechamos a porta e
ficamos só os dois outra vez. Ele sorri e diz-me qualquer coisa que eu não
percebo. Foi assim parte da tarde, ele a falar a língua dele e eu a minha, nem
vale a pena tentar o inglês. Mas lá nos entendemos.
Espera lá: mas afinal, porque estava eu com um velhote
cazaque no quarto?
Rebobinemos:
Urumqi. Diz que é a cidade que fica mais longe do mar, no
mundo. Já a tinha "fisgada" no meu Imaginário há algum tempo - porque
sim, por razão nenhuma, porque o nome soava a "qualquer coisa".
Quando marquei o meu voo da China para a Turquia, há uns meses, fi-lo de
maneira a passar uma tarde aqui. E no entanto, quando saí de Xian estava tão
cansado que já não me apetecia nada ir dar voltas sabe-se lá por onde. Decidi
ficar no aeroporto, durante as sete horas de escala entre Xian e Istambul.
Mas quando cheguei ao aeroporto, o Destino tinha uma
surpresa reservada para mim. Um miminho. Mal aterrei em Urumqi dirigi-me ao
balcão dos "connecting flights", para confirmar a hora do voo, o
lugar, etc - e qual não foi o meu espanto quando a menina sentada do outro lado
me diz que a China Southern Airlines tinha um quarto para mim, na cidade, com
deslocação gratuita e tudo, onde poderia descansar durante a tarde.
Assim foi: deixei-me levar por esta cortesia e lá fui eu
conhecer Urumqi. Deixaram-me à porta do hotel, combinámos a hora de regresso ao
aeroporto, tinha cinco horas para não fazer nada, ou para passear, o que me
apetecesse. Resolvi ir dar uma volta.
Mas não fui muito longe.
A cidade parecia muito pouco interessante, estava
relativamente longe do centro, já não tinha muito dinheiro e pouca vontade de
trocar mais euros, e a presença de alguns militares na rua dissuadiu-me de
passear "à deriva" com uma mochila-tesouro, onde guardava o
computador, máquina fotográfica, telefone, dinheiro, documentos, etc, etc, bla,
bla, bla...
Ou seja: depois de dez ou quinze minutos às voltas sabe-se
lá por onde, resolvi voltar ao hotel e ficar a descansar. Bem que precisava.
Na recepção avisaram-me que teria de dividir o quarto com
outra pessoa. Se quiser um single tem de pagar um extra. Venha de lá o companheiro-mistério,
então. E que companheiro. Quando entrei no quarto, dei de caras com o tal
velhote, já não me lembro do nome. Como já disse: ele não falava uma palavra de
nenhuma língua que eu conhecesse, e vice-versa. Mesmo assim conversámos um
pouco.
Antes de adormecer, lembro-me de olhar para a cama do lado.
O velhote já ressonava, baixinho.
Depois adormeci, acordei com as pancadas na porta, voltei a
dormir e só despertei outra vez quando o telefone tocou, era a menina da
recepção a avisar que "daqui a meia hora vêm cá buscá-lo".
Desci. Enquanto esperava pelo condutor alucinado que me ia
levar de volta ao aeroporto, o velhote apareceu com a sua esposa. Fomos
apresentados, ela disse qualquer coisa e eu respondi qualquer coisa.
Convidaram-me para jantar com eles e eu agradeci, "tenho de me ir embora
para Istambul". E quando finalmente chegou a hora, o senhor abraçou-me e
desejou-me uma boa viagem, acho eu. E eu a ele.
Há encontros assim.
1 comentário:
Há crónicas assim... Encantam-nos!!!
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