28/08/2013

HÁ ENCONTROS ASSIM

Oiço ao longe o som seco e abafado de pancadas, como se alguém estivesse a bater a uma porta imaginária, em segundo plano de uma fotografia a preto e branco. Sinto o rosto quente, acho que estou a flutuar algures entre nuvens, não sei muito bem que sensação é esta, uma paz profunda... mas ao longe o barulho continua, cada vez mais insistente, mais alto: acordo.

Levanto-me da cama, onde é que eu estou, que quarto é este, em dois saltos estou como-que-por-magia junto a uma porta. E abro-a. Do lado de fora, à minha frente: duas raparigas com traços asiáticos, mas claramente de alguma ex-república soviética. Muito giras, as duas. Onde é que eu estou. Uma delas não pára de sorrir, a outra esforça um "wrong number" e diz numa língua que não reconheço, para a amiga, que não é ali, que o número está errado, deve ser isso.

Eu: ainda a voltar ao planeta, pergunto o que se passa, elas trocam impressões uma com a outra e quando estão prestes a ir embora oiço uma voz rouca chamá-las de dentro do quarto.

Elas sorriem:

"Papá?"

Viro-me para trás e vejo um velhote a levantar-se e a rir, a dizer qualquer coisa em estrangeiro, às miúdas. É o meu companheiro de quarto. Deve ter uns setenta anos, é do Cazaquistão, vai para Pequim de férias com a mulher e as filhas. E estas duas do lado de fora: devem ser as filhas.

"Muito giras", digo-lhe quando fechamos a porta e ficamos só os dois outra vez. Ele sorri e diz-me qualquer coisa que eu não percebo. Foi assim parte da tarde, ele a falar a língua dele e eu a minha, nem vale a pena tentar o inglês. Mas lá nos entendemos.

Espera lá: mas afinal, porque estava eu com um velhote cazaque no quarto?

Rebobinemos:

Urumqi. Diz que é a cidade que fica mais longe do mar, no mundo. Já a tinha "fisgada" no meu Imaginário há algum tempo - porque sim, por razão nenhuma, porque o nome soava a "qualquer coisa". Quando marquei o meu voo da China para a Turquia, há uns meses, fi-lo de maneira a passar uma tarde aqui. E no entanto, quando saí de Xian estava tão cansado que já não me apetecia nada ir dar voltas sabe-se lá por onde. Decidi ficar no aeroporto, durante as sete horas de escala entre Xian e Istambul.

Mas quando cheguei ao aeroporto, o Destino tinha uma surpresa reservada para mim. Um miminho. Mal aterrei em Urumqi dirigi-me ao balcão dos "connecting flights", para confirmar a hora do voo, o lugar, etc - e qual não foi o meu espanto quando a menina sentada do outro lado me diz que a China Southern Airlines tinha um quarto para mim, na cidade, com deslocação gratuita e tudo, onde poderia descansar durante a tarde.

Assim foi: deixei-me levar por esta cortesia e lá fui eu conhecer Urumqi. Deixaram-me à porta do hotel, combinámos a hora de regresso ao aeroporto, tinha cinco horas para não fazer nada, ou para passear, o que me apetecesse. Resolvi ir dar uma volta.

Mas não fui muito longe.

A cidade parecia muito pouco interessante, estava relativamente longe do centro, já não tinha muito dinheiro e pouca vontade de trocar mais euros, e a presença de alguns militares na rua dissuadiu-me de passear "à deriva" com uma mochila-tesouro, onde guardava o computador, máquina fotográfica, telefone, dinheiro, documentos, etc, etc, bla, bla, bla...

Ou seja: depois de dez ou quinze minutos às voltas sabe-se lá por onde, resolvi voltar ao hotel e ficar a descansar. Bem que precisava.

Na recepção avisaram-me que teria de dividir o quarto com outra pessoa. Se quiser um single tem de pagar um extra. Venha de lá o companheiro-mistério, então. E que companheiro. Quando entrei no quarto, dei de caras com o tal velhote, já não me lembro do nome. Como já disse: ele não falava uma palavra de nenhuma língua que eu conhecesse, e vice-versa. Mesmo assim conversámos um pouco.

Antes de adormecer, lembro-me de olhar para a cama do lado. O velhote já ressonava, baixinho.

Depois adormeci, acordei com as pancadas na porta, voltei a dormir e só despertei outra vez quando o telefone tocou, era a menina da recepção a avisar que "daqui a meia hora vêm cá buscá-lo".

Desci. Enquanto esperava pelo condutor alucinado que me ia levar de volta ao aeroporto, o velhote apareceu com a sua esposa. Fomos apresentados, ela disse qualquer coisa e eu respondi qualquer coisa. Convidaram-me para jantar com eles e eu agradeci, "tenho de me ir embora para Istambul". E quando finalmente chegou a hora, o senhor abraçou-me e desejou-me uma boa viagem, acho eu. E eu a ele.

Há encontros assim.

1 comentário:

Clara Amorim disse...

Há crónicas assim... Encantam-nos!!!