Onde é que nós íamos, quando tive de interromper o relato do Transiberiano?
Ah: prestes a partir para Pequim, no último troço feito sobre carris - sobre a linha Transiberiana.
Tem piada. Tenho vindo a reparar num fenómeno que acontece a quase todas as pessoas que fazem esta viagem. Apesar das paragens serem essenciais na concretização da aventura e muito valorizadas por quem passa tanto tempo dentro do comboio; apesar de serem, de certa forma, o recheio da bola-de-berlim... os carris têm um efeito especial. Há sempre uma antecipação enorme, uma certa ansiedade, quando voltamos ao comboio. Cada um exterioriza de forma diferente, mas é como se, depois de uma aventura, voltássemos todos a uma espécie de zona de conforto. Ao ninho. E essa sensação cresce, desenvolve-se e alimenta-se ao longo da viagem.
Assim: como pequenas águias de depois de um voo experimental na estepe voltam à segurança do ninho ;) lá continuámos nesta odisseia sobre carris que se chama Transiberiano.
Por esta altura, o grupo já desenvolveu uma dinâmica própria. Já nos conhecemos bem uns aos outros, há piadinhas privadas que qualquer pessoa "de fora" não entenderia. Rimo-nos de coisas que só nós podemos rir - porque nós "sabemos". Já há alguma tensão entre este feitio e aquela maneira de ser. Já se estabeleceram laços. Melhor: já nos entrelaçámos, destinos e histórias e aquis e agoras.
Esta última viagem é especial. Não só pela carga que a experiência já carrega depois de quinze dias juntos, mas porque a meta que se segue tem qualquer coisa de fatal. Atravessamos o Deserto do Gobi. Entramos na China. Muda a bitola e assistimos a um momento já muito antecipado. Vemos o último pôr-do-sol, dormimos a última noite no comboio, embalados por aquele som que só conhece quem conhece. Aquele ritmo.
De manhã repetimos rituais. Sabemos que é a última vez. Crescem ansiedades, à medida que nos aproximamos de Pequim. É o destino final. É a meta de quase oito mil quilómetros de partilha. Cinco fusos horários. Encontros e desencontros, momentos e eventos, cara-feia e bonitos sorrisos.
O comboio pára: chegámos a Pequim. Saímos para a plataforma, pisamos o chão sonhado, a terra prometida. E olhamos para trás. Aquela linha começou em Moscovo. Atravessou um mapa inteiro, histórias e gargalhadas, cumplicidades, segredos.
Chegámos.
2 comentários:
Mais uma bonita crónica que nos faz "viajar" nesse mítico Transiberiano!!!
É incrível como acertaste em cheio nesse sentimento de voltar ao ninho... Antes da viagem o maior receio era o dos dias intermináveis no comboio e depois, por estranho que parecesse, era o nosso lugar de conforto. Mal entravamos no nosso novo quarto/carruagem já todos sabiam o que fazer. Era arrumar as malas, organizar a "despensa", levantar as camas de cima, enfim, personalizar o nosso quarto sobre carris... Saudades, Jorge, saudades... :)
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